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Réquiem por Paulo Medeiros

Fátima Quintas
fquintas84@terra.com.br

O adeus foi súbito, inesperado, impactante. E era sexta-feira de Carnaval, ao som de tambores rufando, a notícia chegava por telefone. Impossível acreditar. O que teria acontecido?! Não, a verdade não poderia ser tão rigorosa. Enganavam-se todos. As palavras estavam soltas, sem significado, ocas. No entanto, em poucos minutos, as emoções pareciam diferentes, aprisionadas pelo pranto que não desabava de uma única vez. O amigo, o companheiro de idéias, o interlocutor disponível acenava o último diálogo. Alto, porte majestático, elegância despojada, Paulo Medeiros escondia o menino que nele habitava. Tinha o olhar manso e um jeito muito próprio de expor os pensamentos, como se guardasse a crítica construtiva em algum bolso da algibeira, disposto a sacá-la quando necessário. Por dever de ofício - era psicanalista - e, sobretudo, por devoção asceta, sabia ouvir como ninguém, calava algumas vezes, outras apontava o cerne do problema. Monossilabicamente. Que cada um despertasse sozinho para as particularidades da descoberta individual - soberbamente pessoal -, de modo a concluir, através de um brando solipsismo, as inflexões explicitadas. Não impunha a sua vontade, tampouco se impacientava com isso. Gostava de compreender o outro, naquilo em que o humano pode ser compreendido. “Não me entendam tão depressa”, alertava. O psicanalista apaixonado não escondia o homem de letras, amante da ficção, ledor incansável, quase obsessivo, inconformado com o tempo que se esvaía tão inclemente, fugaz, usurpador. Sempre o encontrava com um livro à mão, entusiasmado com o estilo das abordagens ou justificando a repetição de algumas teorias ou postulados, mas encantado com os fantasmas da literatura. Debruçava-se sobre Joyce, o grande Joyce de Ulysses, coordenava grupos de estudos sobre o tema, apreciava a linguagem fragmentada do irlandês e, por vezes, gargalhava com as suas irreverências. Sonoras irreverências. Guimarães Rosa, um outro apego especial. E Machado de Assis e Clarice Lispector e os clássicos franceses e russos? Uma conversa agradabilíssima que se firmava em base de profunda sabedoria. Lia fervorosamente, bebendo as palavras com o êxtase da pureza estética. Não se contentava com pouco, sabia discernir os grandes literatos, Proust o animava na incessante procura de passados redescobertos. Dotado de uma oratória impecável, Paulo Medeiros participava de mesas-redondas, colóquios e simpósios. Foi assim que o conheci, há alguns anos, a dissertar sobre o humanismo com uma sofisticada eloqüência. Sim, a visão humanística completava a noção de apreensão do cosmos. Nunca se recusou a contribuir em seminários, embora acentuasse com freqüência a necessidade vital de recolhimento. Aqui, gostaria de fazer um parêntese: a relação que manteve com essa reclusão aponta uma coerência extremada entre o que verbalizava e o que vivenciava - o dizer e o fazer irmanados. Um homem que precisava de retiros para não se contaminar com a superficialidade do mundo. Assim viveu e assim morreu: sem alardes nem frenéticas aparições, ainda que os tambores de um Carnaval dionisíaco continuassem a rufar nos meus ouvidos naquela sexta-feira ingrata, a da sua morte. Costumava repetir: “Gosto dos pequenos grupos, mais de seis pessoas é multidão.” Guardava uma modéstia monástica. O que lhe agradava era mesmo a leitura silenciosa, em voz baixa, sussurrante. E na rede - morreu na rede - deleitava-se com o gozo do parágrafo assinalado. O refúgio se consolidava na morada distante, em Aldeia, a acompanhar o trinar dos pássaros e a deliciar-se com música erudita. Intercalava o dia entre o trabalho, a quietude da casa e a imensidão da biblioteca - não se continha diante de um livro imobilizado na prateleira. Comprava com sofreguidão títulos novos, jamais recusando o prazer do bom texto. A imagem plácida de Paulo Medeiros denunciava uma única inquietação: a do saber. Entregava-se de corpo e alma à psicanálise, à literatura, à filosofia. Tanto que fundou a instituição Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise (escrito desta forma, sem vírgula, assim ele desejava), com a finalidade de formar psicanalistas e de agregar estudiosos em temas afins, correlatos, interdisciplinares. Foi um homem com uma visão holística da vida, persecutor de múltiplos conhecimentos, nunca segmentados em blocos estanques. O Recife está mais pobre sem a figura profética de Paulo Medeiros. Mais pobre e mais triste, um vazio se espalha silenciosamente, do jeito dele, por todos os recantos da reflexão, como se a sua voz troasse de lado a lado, lembrando e relembrando que o cotidiano se faz de sustos e surpresas, desde a flor que nasce no canteiro do jardim ao choro miúdo dos que lamentam perdas. Ao sentir a dor da saudade, de uma saudade que se alonga em perene lembrança, resta-me repetir o poeta Fernando Pessoa:
“Há em mim,
Uma impossibilidade de existir
De que (abdiquei), vivendo.” »
Publicado no Jornal do Commercio,
Caderno Opinião, p. 9,
em 20 de fevereiro de 2008.

A publicação nesta página foi autorizada pela autora.

Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras
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