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O QUARTO TERMO EM LACAN & JOYCE

Paulo Medeiros


O que é que se passa em Joyce?
O significante vem rechear o significado.
Lacan, Jacques: 9 de janeiro de 1973




 


Alcançar um quarto termo como elemento Simbólico de uma determinada Cultura é uma operação difícil e tão complexa quanto a Cultura que o atingir. De modo geral, quase não nos damos conta disso, desse fator estruturante e estruturável de dada Cultura e da subjetividade de cada indivíduo que a ela pertence. É alguma coisa que, no comum de nosso cotidiano, pode até passar de modo imperceptível, ainda que referido todo o tempo. Lidamos, por exemplo, com o Simbólico, na diacronia da fala, em três tempos verbais com suas flexões: presente, passado e futuro; e na pronominação habitual, com suas variáveis eu, tu, ele. A fala, tanto quanto a escrita, torna esses fatores sucessivos, instaurando assim o que chamamos tempo, puro efeito da diacronia.

Há, como constatamos na clínica psicanalítica, outras formações linguageiras possíveis, sincrônicas, simultâneas, compondo uma só face entre o psiquismo e a fala do meio circundante. Tais formações, denominadas impropriamente inconscientes, transcendem ambas situações, fa¬zendo existir, nessa relação, formas lógicas estruturadas de modos diferentes, em combinatórias singulares. Podemos concluir, em princípio, que estejamos a lidar, no campo da subjetividade, com os mesmos termos extraídos do Simbólico da Cultura, ainda que cada sujeito esteja submetido a uma combinatória absolutamente singular, dependendo de como lhe foram transmitidos os desejos que determinarão seu modo de existir. Sob qualquer modo, porém, o efeito da fala sobre o sujeito falante é incômodo, produz mal-estar, indicando formas de exílio, seja de si mesmo, da natureza, dos outros e da própria Cultura que forja seu léxico e sua gramática.

Aprendemos na clínica, por exemplo, que os desejos podem se revelar na forma de sonhos como uma expressão isolada de sintomas mais amplos, cuja estruturação coloca em ato, em jogo, não só a estrutura da linguagem como tal, mas a relação do humano com a linguagem em sua lógica desejante.

Freud, o precursor desse nível de entendimento dos efeitos desejantes, formadores do psiquismo enquanto originários de um dizer que nos circunda e nos ultrapassa, colocou-se, simbolicamente, como Pai, num novo modo de relação, inaugurando um novo campo de saber, ao indicar haver uma dimensão de um saber que não se sabe a si mesmo. E o fundamento primeiro desse saber insabido diz respeito, justamente, à função primeira e precípua, como primeiro termo fundante, de alguma subjetividade possível, simultânea à formação de qualquer Cultura, que é a indagação sobre o que é um pai.

A resposta primeira, investigável pela ciência - o saber da Antropologia - pode ser vislumbrada em totens e em tabus. A Psicanálise, no entanto, em seus primórdios freudianos, para lidar com sua descoberta sobre a origem do psiquismo e da Cultura, indicando-os como concomitantes, simultâneos, mas não sincrônicos na diacronia, operacionalizou-a, basicamente, com três elementos estruturais, não necessariamente os mesmo termos no decorrer de sua formulação através de sua história, isto é, de sua diacronia.

Freud começou, primeiramente, trabalhando com os termos sistêmicos, denominados por ele de Sistema Psi, Sistema Phi e Sistema Ômega, empregando, na sua álgebra, letras gregas. Aplicando seus termos, Freud inaugurou, com a Psicanálise, uma nova lógica, a lógica da não-contradição afirmativa por via da negação, certamente surpreendendo filósofos, matemáticos e lógicos, ao contrariar princípios reguladores do bem pensar, estatuídos por Aristóteles.

A partir de sua primeira formulação lógica, Freud, atento sobremodo à sua experiência clínica, propôs novos termos: Consciente, Pré-consciente e Inconsciente; não satisfeito, em decorrência da práxis, renomeou a estrutura psíquica com outros termos: Isso, Eu e Supereu. E, esclareçamos, seus termos nem sempre são empregados de forma condizente com a sua proposição, seja na mídia, por escritores e intelectuais, e até mesmo por alguns psicanalistas.

Seguindo os mesmos princípios, mas, redefinindo-os, com novos termos, o discípulo mais importante de Freud, Lacan, introduz, com o auxílio de disciplinas das quais Freud não pôde dispor em seu tempo, novos termos, os quais nunca abandonou nem foi por eles abandonado, no decorrer de seus mais de trinta anos de ensino público na formação de psicanalistas. Denominou-os Simbólico, Imaginário e Real. Até aí a originalidade de Lacan – não pouca – foi a de se tornar o mais lúcido e culto comentador de Freud na história, ainda breve, da Psicanálise.

A nossa história, a história da Psicanálise, é, ainda, muito jovem, comparada a outras disciplinas, e, sobretudo, se comparada à Arte e à Literatura. Nessa história, destacaria hoje, aqui, pelo menos três fatores inerentes ao discurso psicanalítico no decorrer desse tempo: o primeiro fator é o de estar a Psicanálise, enquanto discurso, subordinada ao Simbólico da Cultura que a circunda, permitindo-lhe, portanto, avançar, quando surge alguém como Lacan; segundo, relacionado ao anterior, é que Freud nos oferece muito mais material originário de sua experiência clínica do que ele próprio, em sua vida, pôde conceituar; e, terceiro, não menos importante, o de que os termos empregados conceitualmente pelo campo freudiano foram tomados de empréstimo de ou¬tros campos, sobretudo o da Literatura, como Édipo, por exemplo, o de Sófocles.

Lacan, então, tanto quanto Freud, trabalhou sob a égide de três termos conceituais para lidar com o psiquismo, acrescendo Lacan porém, pelo menos mais um, um quarto termo, e isso faz muita diferença no modo como acompanhamos a experiência humana em sua estruturação mais íntima, a do desejo.

O que nos ensina a Crítica Literária senão aplicarmos a uma obra os próprios princípios que ela fornece para sua construção? É o que Lacan nos propõe em relação ao trabalho e à obra de Freud, acentuando que o que há de mais elevado no humano é a dimensão simbólica, ao mesmo tempo em que essa própria dimensão simbólica ultrapassa o humano em sua singularidade, colocando-se alhures, mantendo estruturas próprias. Há, nessa ordem simbólica, um dinamismo no modo particular pelo qual ela intervém para impor sua coerência, sua economia autônoma, ao ser humano e à sua vivência, só que, ao faze-lo, cria anomalias, discordâncias, sendo esse o princípio fundamental que encontramos nas descobertas psicanalíticas. Foram essas anomalias, designadas, no discurso médico, como sendo psicopatológicas, que requereram, no devido tempo, tratamento na Cultura, fazendo surgir a Psicanálise como método terapêutico. Não fora esse tempo requerido - essa diacronia dos males da alma - e a Literatura, por exemplo, muito mais antiga e afeita aos tratos das questões propostas pela alma, já teria ocupado esse lugar, ou, talvez, a Filosofia, haja vista o ensino socrático. Se tal não ocorreu, abriram, no entanto, caminho a uma nova ciência da alma, a Psicanálise.

Estamos, na verdade, sempre diante das possibilidades de uma combinatória infinda com os elementos que podemos designar como sendo tropos de linguagem. No começo, encontramos a proposição lacaniana dos seus três conceitos fundamentais, Simbólico, Imaginário, Real, aplicados à fala, não a uma fala qualquer, mas a uma fala articulada numa situação muito especial, situação criada para permitir-lhe ser analisada. Na situação analítica devem ser apreciadas todas as tonalidades discursivas sobre tudo o que se passa num sujeito como efeito de toda sua história, como se esta se presentificasse nessa relação especial. Tudo o que Freud fez, ocorreu numa conversa desse teor, íntimo, existencial, com um interlocutor; o mais, a fala douta, científica, e toda a tralha que a acompanha, repousa no nível egóico, no nível de um eu que assim se refere e a organiza.

Pois bem, as dimensões a que nos referimos foram, então, no começo, apontadas como sendo dimensões na fala, nessa fala íntima, pessoal, de uma transferência intransferível, que é uma fala diferente da fala cotidiana, social, ou discursiva, no sentido do conhecimento e do saber. Aos poucos, Lacan vai relacionando seu modelo estrutural lingüístico, o qual, aliado a outros recursos, lhe permitiu daí extrair uma escrita, ela própria uma imitação da escrita matemática, denominada por ele matêmica.

Bem, o que gostaria simplesmente de frisar hoje, aqui é que se, para Lacan, comentar um texto era como fazer uma análise, o aprimoramento de sua escrita e a sua elaboração conceitual de, pelo menos, dois termos deveram-se à escrita joyciana. Guardo forte impressão, impressão essa que me apraz tentar transmitir-lhes, de que a escrita joyciana serviu a Lacan, e muito, na elaboração de seus próprios conceitos, sobretudo o mais-um, além do terceiro, um quarto elemento de sua teoria, a ser acrescido formalmente aos três anteriores, denominado por ele Nome-do-Pai, ou seja, a metáfora das metáforas, aquela que permite o enodar e entrelaçar todas as demais metáforas possíveis.

Na escrita joyciana encontramos, não material clínico, pois não é tarefa da Psicanálise psicanalisar ou psicologizar o autor, mas material de uma escritura especial, muito diferente, tão diferente que, após nossa experiência de leitura de textos de Joyce, impõe-se-nos, necessariamente, uma pré e uma pós-escrita joyciana. Creio que, de certo modo, a escrita joyciana foi, para Lacan, tão fundamental quanto a sofoclesiana o foi para Freud.

A escrita joyciana tenta romper com os ditames dos limites impostos pela diacronia, elaborando, com todo rigor, uma escrita sincrônica, sob a metáfora de um todo irrompendo, pela via da singularidade de um sujeito, num único dia, como se um evento, único, contivesse todos os eventos, de todos os dias, de toda a história, de todas as falas. O Real seria o todo de tudo, invadindo o não-todo parcial de uma narrativa, uma narrativa acossada, porosamente permeada por todas as falas, em todos os idiomas, em todos os tempos. Esse Real, na escrita joyciana, é tão invasivo no Simbólico que requer o abrandamento de uma nova dimensão de leitura pela via Imaginária na busca de sentido. A metáfora das metáforas, se assim podemos dizer, proposta pela Psicanálise, denominada Nome-do-Pai, estaria aí, nessa escrita, segundo Lacan, substituída por um Ego, ou seja, por uma suplência possível, no caso, para a Metáfora Paterna.

O assim denominado não-sentido é tão marcante a ponto de fazer com que muitos leitores busquem um Imaginário que permita ler tal escrita pela via do sentido, através da materialização de um sujeito da narrativa, buscando até mesmo dados biográficos do próprio autor para formar esse sujeito. E isso para tentar introduzir um sujeito numa narrativa que, propositadamente, o elide. Enfim, a dimensão Real, na escrita joyciana, está tão presente na dimensão Simbólica que parece exigir a formação de um Imaginário formidável pela via de uma busca por sentido.

A escrita de Joyce nos conduz à Odisséia de um único dia, mas não numa concisão, e sim, ao contrário, numa profusão. Será possível imaginarmos uma palavra a conter todas as palavras? Uma fala contendo todas as falas? Um dia contendo todos os dias? Um evento contendo todos os eventos? Um infindável que se finda? É a isto que proponho a idéia de um Real in toto, um Real antípoda da realidade, um Real irreal, que contenha o todo de todas as coisas e no qual nada mude, estando tudo aí, mas cujo todo enquanto todo seja inacessível, só sendo acessível pela via dos fragmentos simbólicos. Isso é um pouco do muito que podemos aprender, lendo Joyce. Se há loucura nisso, certamente há aí método, sim, porque se existe algo em que nós, psicanalistas, acreditamos - como escreveu Shakespeare, Though this be madness, yet there’s method in it. – é que há método na loucura, método e gozo, é que podemos escrever, a partir da leitura da escrita joyciana.




IV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco
Recife, 4 de outubro de 2003

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