Abertura

Quem somos

Membros

Atividades

Formação

Freudtag

Biblioteca

Contato

COMENTÁRIOS AO SEMINÁRIO:

INTERPRETAÇÃO:
POESIA E PSICANÁLISE
DE
BEATRIZ DURÓ

O Seminário de Beatriz Duró é muito interessante. Começa discriminando a interpretação psicanalítica da exegese e da hermenêutica.

Embora todas elas participem do mesmo radical latino, com o sentido de mediador - onde ainda destaca o sentido latino do sufixo praeter: fora de, por diante de -, enquanto o exegeta se ocupa da interpretação de textos sagrados com o mesmo sentido para toda a comunidade, e o hermeneuta da explicação das partes obscuras de textos, tanto jurídicos como sagrados, uma vez que para o vulgo a lei não é clara, o psicanalista, quando interpreta, aponta ao sem sentido (p.10).

Ocupada desde muito com mulheres que escrevem, aqui dedica sua atenção a obra de uma poetisa brasileira, morta precocemente, e que preferia ser chamada de poeta: Ana Cristina Cesar.

Meu propósito, com estas notas, é destacar alguns aspectos do trabalho de nossa colega, um trabalho tão cuidadoso, mencionar algumas associações que me ocorreram e ver se, quem sabe, se poderíamos armar algumas outras questões.

Assim, um primeiro destaque é a importância da hermenêutica. Não são poucos os que confundem a interpretação psicanalítica com a hermenêutica. Quanto desse mal entendido se deve ao livro de Paul Ricoeur, De l’interpretation: essai sur Freud, não sei dizer. O que importa é que aqui Beatriz Duró deixa claro para que serve a hermenêutica. Quando Freud diz que o analista deve tomar o texto do analisante como a um texto sagrado, seu objetivo é o de dar o mesmo valor a todas as palavras do texto, pois é só assim que se poderá chegar a seu valor significante.

Depois, quando começa a examinar a poesia de Ana Cristina, o que não faz sem tomar em conta o Lacan do Seminário sobre as psicoses -

A poesia é criação de um sujeito que assume uma nova ordem de relação simbólica com o mundo.

- ela retoma o Cocteau de sua epígrafe, lembrando que na abertura de seu filme, Sangue de um poeta, diz, entre outras coisas, que cada poema é um escudo a decifrar. Um escudo? Não lhes surpreende? Escudo?

Pois se tomarmos o escudo pelo valor dado a ele pela heráldica, vamos encontrar, bem no seu centro, o que se chama de um point d’abîme, um ponto de abismo, por onde aquele a quem o escudo representa se conecta a todas as gerações que o antecederam.

E nesse ponto, através do poema Fagulha, onde aparecem os versos
Eu queria apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
e
Eu não sabia
Que virar do avesso
era uma experiência mortal.
Beatriz Duró destaca o eu não sabia, o mesmo de Édipo. É verdade. É possível ver em Édipo uma ascendência, mas o exame desse reverso moebiano pode ser mortífero (p. 14). Talvez por seus avatares, quero dizer, pelas dificuldades desse olhar ao infinito, possamos pensar na importância da presença do analista, pois o encontro que aí se dá, será sempre da ordem do falho (p.15) e do horror (p.16). O horror! O horror! Como diz Joseph Conrad ao final de O coração da treva.

O exame de sua carta testamento, quando Ana C. diz:

É preciso mais uma vez uma nova geração que saiba escutar o palrar dos signos.

Frase que me lembra de São Jerônimo, quando o pai dos tradutores diz ser preciso escrever para uma geração que ainda não nasceu, e que talvez nem nasça. A frase de Ana C. é da mesma ordem. Trata-se aqui de um imperativo, aludindo, portanto, a uma ética, uma ética de paciência pela qual Ana C. parecia não poder esperar.

Outro ponto interessante é o que alude ao real dos interstícios das palavras (p.21). Uma vez havia me parecido que a tão falada inteligência, tinha a ver com uma capacidade de inter legere, de ler entre as linhas; mas agora aparece um real que não está apenas entre as linhas, mais que entre as palavras, está mesmo nas entranhas das palavras, dos diastemas a separar uma letra da outra. Estou de acordo com a proposta de Beatriz Duró (p.22). É para estender-se, não é mesmo?

A propósito do título do poema de Ana C., Nada, esta espuma, encontrei um estudo seu, intitulado Traduzindo o poema curto (incluído em uma primorosa edição do conjunto dos textos de crítica e tradução desta autora, promovida pelo Instituto Moreira Salles, em conjunto com a Ed. Ática, feita por Fernand Paixão, em 1999)¹  . Aí aparece um estudo de um poema de Mallarmé ao qual ela apela para exemplificar as dificuldades de tradução. Trata-se do poema Salut, criado por seu autor para ser dito em um jantar de jovens poetas. Incluirei a seguir o poema de Stéphane Mallarmé e, ao lado, a tradução de Augusto de Campos.
 ¹ CESAR, Ana C., Crítica e tradução. São Paulo, Ática, 1999, p. 411.
Salut

Rien, cette écume, vierge vers
À ne designer que La coupe;
Telle loin se noie une troupe
De sirènes mainte à l’envers.

Nous naviguons, ô mês divers
Amis, moi déjà sur La poupe
Vous l’avant fastueux que coupe
Le frot de foudres et d’hivers;

Une ivresse belle m’engage
Sans craindre même son tangage
De Porter debout ce salut

Solitude, récif, étoille
À n’importe ce que valut
Le Blanc souci de notre toile.

Brinde

Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.

Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;

Uma embriaguez me faz arauto.
Sem medo ao jogo do mal alto,
Para erguer, de pé, este brinde

Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
Um branco afã de nossa vela.


Será a espuma um recurso para encobrir a especificidade do real? A maldade de escrever que por aí se insinua tem a ver com a tentativa de visitar os mundos infernais? – Penso que sim, mas a tentativa de Ana C. tem a ver mais com a voz de Juno ou com a de Freud?

Luiz-Olyntho Telles da Silva
Porto Alegre, 18 de junho de 2008
 


Visite o Seminário de B. Duró



Conheça o Programa de 2008



escreva aqui seus comentários