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Frente à Irrupção do Real

Ricardo Landeira
21/03/2020
Tradução:
Maristela Leivas


Longe das guerras, das pestes, da fome, dos acidentes climáticos e da trepidação da terra, nosso país pacífico, como outros países, surpreendentemente deve fazer frente a esse Coronavirus Covid-19 e as diferentes consequências geradas.

É algo que irrompe em nossas vidas, perturbando hábitos, intercâmbios, deslocamentos, adoecendo, causando problemas econômicos, e muitas incertezas em relação ao futuro.

indicaram-nos uma série de precauções para evitar o contágio, tanto para nos defender de sermos infectados, quanto para não contaminar os outros. Agora sabemos, e, com toda a inexperiência de um povo que não enfrenta isso há muito tempo, tentamos fazê-lo.

O que quero dizer-lhes nesta comunicação, como também diz Lacan, é que não podemos recuar ante a irrupção do Real

Os seres humanos comuns, e não estou me referindo aos super-homens nietzschianos, mas a nós, diante de certos acontecimentos do Real, vemos a normalidade rompida, observamos que isso que vivemos como normal, que é monótono e repetido se quebra. Sabemos que essa monotonia não é outra que a da cena que reunimos no fantasma, no qual estamos instalados, e das nossas defesas neuróticas. A irrupção do real produz um corte nos hábitos e na lenta experiência de estarmos dando voltas, círculos em torno de um gozo no qual construímos uma cena e desde aí, nos defendemos.

Esse acontecimento do Real surge de uma causa que aparece surpreendentemente e, como não provém de uma cadeia de fatos dos quais se espera um certo resultado, não é calculável e se refere mais aos impossíveis da situação, pois surge desde algum vazio, vazio que toda situação contém, mas que está fora das leis regulares dessa situação, implica uma novidade radical, é uma ruptura na qual o exposto acima não pode mais ser sustentado como era. Então percebemos que qualquer ordem ou estrutura é mais precária do que parece. Tais estruturas abrigam em seu núcleo virtualidades negadas que, em algum momento, podem irromper, abrindo possibilidades alternativas.

Precisamente porque essas "virtualidades negadas", segundo Badiou, são ativadas numa situação transferencial desencadeadora. Por fim, a ideia de que o acontecimento apenas "ocorre" é problemática, posto que o acontecimento precisa ser "nomeado" e que lhe seja outorgado um significado definido para que se desdobre todo o conjunto de possibilidades. E com isso entramos no manejo social da irrupção.

Sabemos que no ser do falante há uma "servidão voluntária" que é introduzida pelo significante insensato da lei. Zizek Slajov, nos conta em, "O sublime objeto da ideologia", que os discursos sobre o social que operam através de uma totalização, por consenso, podem funcionar como uma "máquina simbólica" externa que é experimentada na economia inconsciente dos sujeitos como mandato traumático, sem sentido, não significante. Isso é assim porque a “máquina simbólica” funciona como o insensato significante da lei e o que causará é a submissão do sujeito ao mandato, submissão a um amo que tem o poder, que, nessa dimensão, é O poder. Aqueles de nós que não compartilham com isso, só teremos nossa parte de poder, desde que coloquemos o objeto faltante no corte, entre o Outro e nós.

Trata-se da posição subjetiva de cada um e, portanto, do ato que constitui a queda do objeto com o qual completamos a esse Outro onipotente, assim como a nós mesmos. Nós, psicanalistas, temos que realizá-lo a partir de um social descompletado, nem mais nem menos do que o que acontece conosco e a castração.

Há dois termos que é necessário integrar para que, a partir da psicanálise, possamos propor algo diferente: a falta de um objeto e o impossível. E uma questão-chave para saber como estamos posicionados nisso é, onde colocamos nosso próprio desejo entre nós e o social? E a outra é, que lugar damos ao impossível da relação entre falantes-seres?

A realidade social, como se diz, é como aquelas colagens feitas com diferentes texturas, através da coleção de restos, com variedade de cores e até de palavras. A realidade social é, portanto, uma criação; que, como a artística, uma vez produzida, se impõe ao sujeito.

Temos que criar as condições para que um ato analítico que faça um corte possa ser produzido a partir da psicanálise, colocando em suspenso o senso comum vigente, que leva à produção de consensos sociais e que, a partir de seus clichês vazios e repetitivos, funcionam como essa "Máquina simbólica” que contém em si mesma o significante insensato, ou aquela lei que é imposta a partir de um real não simbolizável. Nos tempos atuais, a pura repetição da mídia, a toda hora, dos significantes "guerra", "isolamento", "quarentena", com que os associamos? A contagem diária de mortos ou feridos, a qual cena nos leva? Frente ao quê estamos, que a distração não é possível?

Com essa irrupção do Real, ou nos colocamos à mercê de um Outro que ataca nossa existência, ou avançamos através da invenção e criação, mais além de nossos hábitos e defesas.

Com Lacan, podemos pensar como "um ato verdadeiro é inseparável da modificação na posição subjetiva, uma modificação que impede o sujeito de se reconhecer nele", porque o ato se desdobra em relação ao que o sujeito do ato não é.

Concordo que o potencial criativo dos sujeitos para realizar o ato está nos elementos de sua estrutura, elementos que serão ativados e, desde aí, a criação. Mas quero destacar algo que considero muito importante: um ato ocorre em uma situação de transferência que o torna possível. Lembro a Freud, ao fazer referência a sua experiência durante a Primeira Guerra Mundial, quando disse que, em circunstâncias extremas, os neuróticos remitiam ou suspendiam seus sintomas. Eles conseguiram agir de forma diferente. Sempre há uma transferência em jogo desde aquele que realiza o ato. Seja ela com um analista ou com outros seres falantes. E o que quero dizer, é que no contexto desta transferência é onde se desencadeia a ativação de elementos heterogêneos da estrutura.

A pergunta para o Outro não é mais o que temos que fazer, senão o que quero fazer nesta situação. Sabendo que uma coisa é ter medo a uma possível morte, e outra muito diferente, é o terror e o pânico masoquista diante da certeza de uma morte, o que nos aproxima de uma iminência,  no maior parte dos casos, imaginada.

Entre a criação e a paralisia, entre sustentar o desejo ou ser um puro objeto, vítima de um Outro obscuro, estão as alternativas.

Um antigo conto árabe diz que um homem caminhava perto de Bagdá, e surpreendentemente encontrou a peste. Tão logo o homem se recuperou do susto, estabeleceram um diálogo. O homem perguntou:
- Para onde você está indo?
A peste respondeu rapidamente:
- Vou a Bagdá, matar 10.000 pessoas.
Algum tempo depois, eles se reencontraram na estrada:
O homem indignado, censura a peste entendendo ter sido enganado:
 - Você me disse que iria matar 10.000 pessoas e matou 40.000!
- "Não", começa a peste, "eu matei apenas 10.000, os outros morreram de medo.
Por fim, consideramos boas as recomendações de não contagiar ou e ser contagiado, mas o que não é dito é que a primeira coisa que temos que atentar é, em qual posição subjetiva nos colocamos diante da irrupção do Real, esta ou outras? É ali que reside a base de nossa defesa. Sabemos que o terror, o pânico e a depressão, diante do que sentimos como perdido, no nível corporal, nos deixam mais expostos a uma redução em nosso sistema imunológico.

Parafraseando a Neruda quando disse: "Se nada nos salva da morte, ao menos que o amor nos salve da vida", hoje podemos dizer assim: - se nada nos salva da morte, a menos que nosso desejo nos salve de uma vida decepada.

Claro, sem deixar de lado, o amor.