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Pandemia, o Outro social e o uso dos meios tecnológicos na clínica psicanalítica[1]1

p/ Luisa Bertolino

    Ao longo da história da psicanálise, os analistas têm se servido dos meios de comunicação ao seu alcance para sustentar sua clínica, muitas vezes como resposta às contingências que impediam o encontro no consultório, e, outras, para realizar alguma intervenção em particular. Desde Freud, que trabalhava a distância, via epistolar, mais adiante com o uso do telefone, até nossos tempos, quando empregamos dispositivos virtuais na clínica, controles ou para trocas em reuniões, seminários e outros encontros para a formação.
     Não obstante, em muitos casos, tem sido os efeitos da irrupção do COVID-19 em nossa sociedade o que tem legitimado o uso de recursos virtuais para sustentar a prática clínica. O discurso social nos tem levado a empregar estes meios, seja como uso exclusivo, ou como meio alternativo. Muda o ‘contexto social’, que inclui ao coletivo dos analistas, e atender mediante o tele trabalho passa, de algo raro ou pouco usado, ao mais comum e menos questionado.
    A partir de um acontecimento novo, se faz ‘necessário’ aceitar que esta seja uma prática válida para sustentar uma análise. Os que temos decidido seguir as recomendações oficiais de distanciamento social, nos encontrando ou não no que se denomina grupo de risco, ou, inclusive, os que seguimos recebendo aos pacientes no consultório, observamos que alguns têm tomado essa medida de distanciamento para a análise, quando, no entanto, freqüentam outros lugares.
     Desde que lugar os que não nos encontramos no chamado grupo de risco, estamos aceitando que esta seja a forma para as curas que dirigimos, tendo em conta que analistas e analisantes, vamos a outros espaços como supermercados ou redes de cobranças, nas que a possibilidade de ‘contato’ seria igual ou maior que a do espaço do consultório (onde inclusive podem-se tomar as medidas sanitárias recomendadas de higiene do lugar, desinfecção, ventilação, distância de dois metros, disponibilidade de álcool gel, tirar os sapatos antes de entrar, até uso de máscaras)?
    As decisões de seguir a recomendação de ‘ficar em casa’, tem sido decisão ou resultam da obediência ao Outro social?
     Tomo as palavras de Ricardo Landeira em seu texto Descompletamiento de lo social: Cuando de lo social se trata, el sujeto puede quedar atrapado del Outro, y éste se le presenta a modo de un saber sin falta sobre el mundo, un saber impuesto que puede excluir la dimensión de verdad personal. (Revista Signos, Volumen 1 – Número 1)
     O coronavírus irrompe em nossa sociedade, e medidas recomendadas, não obrigatórias,2 têm surgido nas direções de nossas curas. É que o discurso Amo se impôs em nossa clínica?
     Antes da irrupção da pandemia, se um paciente no houvesse dito que decidiu ficar em sua casa, e que só iria continuar sua análise via virtual, haveríamos aceitado? Minimamente nós perguntaríamos que é o que estava em jogo na decisão e haveríamos pensado se aceitaríamos essa condição, se fosse o caso.
     Não o faríamos agora também?
   Os que não nos encontramos no grupo chamado de risco e podemos implementar no consultório as medidas sanitárias recomendadas, devemos aceitar o tele-trabalho em todos os casos? Sempre que um paciente nos diz que decide, por respeito às recomendações oficiais, não comparecer ao consultório, devemos aceitar que não compareça?
    Não deveríamos pensar se as recomendações gerais atendem a situação singular de cada análise e perguntarmos qual o lugar ocupa o cumprimento ou descumprimento da mesma?
    Ao não cumprir, poderíamos ficar enredado nesse Outro em que se converteram as recomendações de distanciamento social, obedecendo a um mandato, convencidos de que esta é ‘a’ maneira de trabalhar hoje?
    Os analistas dirigem curas e vamos definindo uma estratégia em cada caso. Às vezes é necessário que com um paciente se dêem determinadas condições que com outros não. Poderíamos ir à casa do paciente, convocá-lo a determinado lugar, chamá-lo por telefone em um momento não esperado; intervenções que não são as mais habituais, mas que para caso em particular poderia ser necessário realizar para propiciar determinadas operações. Se essas variações as repetíssemos em todos os casos, seguramente diríamos que em muitos deles, essa intervenção não somente pode não ter um efeito analítico, senão serem um obstáculo nesse tratamento, propiciando a ativação de certos mecanismos que longe estariam de sustentar uma análise.
    Como sabemos, para decidir de uma análise, são os efeitos os que contam. Então, a que nos referimos quando dizemos que não há diferença entre analisar no consultório que fazê-lo via virtual ou por chamada? Não há diferença? A via virtual permite a análise do mesmo modo que no consultório?
     Poderíamos pensar que pode existir um caso no qual o que está em jogo em uma análise determine nesse tempo a necessidade do encontro com o analista ao vivo, em pessoa, em um mesmo espaço físico?
    Tomo de novo as palavras de Ricardo Landeira no texto que mencionei anteriormente: La apuesta ética del psicoanálisis lacaniano es que la consecución del deseo de un sujeto lo lleve hasta la castración del Otro. Que en lo social significa hacer de las ‘realidades impuestas’ y luego apropiadas, una ficción descompletada. Hay que darle un lugar a lo imposible en la relación entre los hablantes-seres, para que esas imágenes o significantes no lo cubran totalmente. Para que haya un limite estructural.
     Deveríamos nos indagar o quê está em jogo quando se decide continuar o trabalho de uma análise mediante vídeo-chamada ou no consultório, e nos perguntar pelas variações que podem implicar o uso desses dispositivos, além das recomendações oficiais, que no Uruguai não são obrigatórias.
   Que lugar adquire as recomendações sanitárias na transferência analítica?
     Que passa nos casos nos que a presença orgânica do analista ou o manter ‘o olhar aos olhos’ pode ser determinante para sustentar a transferência?
    Como incide a presença do corpo real? Não haverá casos em que o consultório possa ser necessário para sustentar a análise, quando a palavra não é suficiente?
   Nem todas as análises podem ser continuadas mediante vídeo-chamadas. Dizer que a decisão de não continuar um tratamento até que se possa voltar ao consultório é um pretexto para não continuar com a análise, é uma generalização.
    A questão não está no meio que utilizamos, se não na posição subjetiva e na estratégia clínica indicada para a estrutura do analisante, o que não implica que as características do meio em questão e as diferenças que dizem respeito às do consultório não possam incidir na cura.

Notas:
1.  Texto publicado na pagina WEB da RED http://www.redlacaniana.com.uy em 19/06/20 e traduzido ao português por Maria da Glória S. Telles da Silva.
[1] Contribuição para os inícios de Los cuerpos, los consuloórios y el teletrabajo en Psicoanálisis. Agradeço a Álvaro Tulaniche e Cecília Bach pelas trocas que deram lugar a este grupo dos Viernes em Zoom.
2.  No Uruguai.


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