DO TOTEM À
LEI
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O Moisés de Michelangelo
de Freud
por
Paulo Roberto
Medeiros
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Uma estátua em movimento
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Diante da estátua marmórea de Moisés,
erguida por Michelangelo na igreja de San Pietro in Vincoli, de Roma, Freud
não conteve o desejo de interpretá-la. E interpretar uma obra
de arte era, para ele, transpor para a escrita impressões, no caso,
visuais, considerando sempre, no entanto, o fato aparentemente paradoxal de
que algumas das criações artísticas mais acabadas e
impressionantes podem escapar à nossa compreensão. E isto não
se deve a que os peritos em arte ou os entusiastas não encontrem palavras
quando nos ponderam sobre alguma destas obras de arte, muito pelo contrário.
Estas palavras são quase que textualmente as de Freud em suas considerações
sobre o assunto.
Nenhuma outra peça de estatuária havia impressionado tanto
a Freud, ao ponto dele imaginar-se estar a suportar o irado desprezo do olhar
de Moisés. Como seria sentir-se pertencente ao grupo daqueles que poderiam
ser fulminados por aquele olhar, àquela turba incapaz de se manter
fiel a convicção alguma, sem fé nem paciência,
que se regozijava intimamente ao obter de novo um objeto de crença,
um ídolo? Ali estava Moisés, o Libertador e Legislador dos
judeus, segurando as Tábuas da Lei, diante de um grupo que, naquele momento, só
lhe transmitia aborrecimentos, pois tendia a voltar às crenças
originárias de outros povos. Toda a análise de Freud incide
sobre aquele momento de ira de Moisés eternizado naquela estátua,
centrando toda a discussão sobre se Moisés estaria prestes a
quebrar as Tábuas da Lei ou, ao contrário, a preservá-las, tentando
inferir quais poderiam ter sido, na intenção do seu autor,
os movimentos propostos pela posição da estátua, que
em sua inércia majestática indicava, por um lado, algo referente
à perenidade, e, por outro, uma ação passageira. Causavam
espanto a Freud comentários de estudiosos da arte que nada encontravam
de admirável naquela obra, alguns só fazendo criticar a brutalidade
da figura; e, neste ponto, destacamos estas palavras do texto de Freud: a animalidade da cabeça; o molde animalesco da cabeça.
Mas Freud vislumbrou o efeito geral da figura, seu conjunto, sua relação
com as Tábuas da Lei e com os demais componentes da decoração
do túmulo do papa Júlio II. Isto numa primeira impressão,
aquela que revela a emoção interior do figurado, contraposta à calma exterior solene
a indicar algo de permanente. Num segundo momento vem a análise de
detalhes, aparentemente de somenos importância, assim como fazemos
num processo analítico, quando se ressaltam significantes do aparentemente
insignificante; Freud fez então incidir sua interpretação
sobre a relação da mão direita de Moisés com
a barba e com a posição das Tábuas
da Lei. Estas, de acordo com Freud,
estariam de cabeça para baixo, e sua conclusão a este respeito
foi inferida da observação de uma protuberância, uma saliência que há na borda inferior
à maneira, semelhante a um pequeno chifre, indicando qual deveria ser a posição
da escrita, permitindo deduzir como estariam as Tábuas. A conclusão
a que chegou Freud foi a de que o movimento imediatamente anterior de Moisés,
na intenção do autor, depreendido da estátua, era no
sentido de evitar que as Tábuas da Lei caíssem e se despedaçassem em decorrência
do movimento brusco, precipitado, de Moisés diante da indignação
colérica que o assomou pela infâmia da massa, contrapondo-se
então à opinião corrente que conferia à estátua
um início de movimento que antecederia à quebra das Tábuas da Lei.
Neste ponto encontramos em Freud um reconhecimento da Arte enquanto podendo
estar acima das divergências da História e da Escrita, ao admitir
a interpretação artística de Michelangelo, contrária
à versão tradicional, sendo que o próprio Freud nos permite
admitir sua identificação ao artista neste ponto de criação.
Ao reconhecer a interpretação do artista que, com sua liberdade
criativa, beira ao sacrilégio, ele mesmo propôs que a Psicanálise,
sua criação, pudesse interpretar a obra artística, o
que, admitamos, possa ser considerado sacrilégio pelos artistas. Há
muita coisa em jogo nesta posição de Freud, não somente
no que diga respeito à relação da Psicanálise
com a Arte, mas também, no caso da abordagem que Freud fez de Moisés
e da religião judaica, com implicações para com todas
as demais áreas do conhecimento humano. Aqui, de modo específico,
além da Arte, com a História e com a Religião. Admitindo
a versão que atribuiu a Michelangelo, aceitaria outras interpretações
para a história do povo judeu, inclusive a que ele próprio
elaborou, uma interpretação, aliás, que nos permite
pensar no quanto possa estar imbricada com a própria construção
teórica da Psicanálise. Do seu texto sobre onirologia - um
registro possível de sua própria análise - até
o seu Moisés e o monoteísmo, passando pelo totemismo e pelo
tabu, podemos ler em todo o percurso de sua elaboração teórica
uma relação entre sua própria história e a de
seus ancestrais na sua busca de uma elucidação para o enigma
paterno.
Naquele momento de contemplação daquela estátua podemos
conjecturar pelo menos duas possibilidades: a primeira, a de que o próprio
Freud estaria irado e colérico diante dos rumos da história
do movimento psicanalítico devido às diferenças teóricas
entre ele, Adler, Steckel e Jung; a outra, a de que se sentiria frente ao
olhar do pai que lhe estaria a exigir fidelidade à história
sagrada do seu povo, representada pela Bíblia de Philippsohn, que
dele recebeu de presente por duas vezes, cuja dedicatória era um chamamento
a que Freud reconhecesse no saber do seu povo uma sabedoria maior que a que
foi por ele adquirida por meio da ciência, o saber sobre a Lei de Deus, do Pai.
Inspirando-se então em Moisés, aquele que trouxe, por duas
vezes, as Tábuas da Lei, testemunho de uma nova aliança, ele, Freud,
um novo Moisés, traria uma nova ciência, que lhe permitiu, inclusive,
interpretar as intenções de Michelangelo, afirmando a seu respeito
que havia ousado, em nome da Arte, modificar o tema da Torá, quebrada
de acordo com a História Sagrada, mantida intacta pelo artista. Para
Freud, Michelangelo impediu a Moisés quebrar as Tábuas da Lei em sua ira; e, ao contrário, se sua cólera,
num determinado momento, constituiu-se numa ameaça a elas, ele conteve
sua ira a fim de preservá-las.
A interpretação de Freud permitiu-lhe indicar o sublime no
humano, o limiar fronteiriço entre a animalidade colérica que
se expressa como paixão humana e sua contenção em função
de um propósito relacionado a uma causa superior. Com isto, diz-nos
Freud, Michelangelo acrescentou algo novo e sobre-humano à figura de
Moisés, e a enorme massa corporal e a prodigiosa musculatura da estátua
são unicamente um meio somático de expressão da mais
alta realização psíquica possível a um ser humano,
que é a do domínio das próprias paixões em benefício
de uma causa a que se consagrou.
Foi com esta leitura que Freud interpretou haver naquela estátua
traços de sentimentos dominantes na expressão do rosto, de
movimento reprimido na parte média, e o pé indicando a posição
inicial da ação esboçada. Nenhuma análise mais
pormenorizada da animalidade da cabeça, do molde animalesco
da cabeça é feita, sendo
referidos de passagem e nada mais. Mas é neste ponto que começa
o nosso trabalho de investigação, e sobre tal morfologia é
que ousaremos alguma coisa, mesmo sabendo dos riscos envolvidos em algumas
suposições. Continuemos, pois, e esperamos que Moisés,
Michelangelo e Freud sejam condescendentes para com as idéias aqui
transcritas, tanto quanto você, leitor, leitora, também o seja.
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Os chifres e o resplendor
Há um detalhe que se sobressai, destaca-se para
o olhar naquela estátua de Moisés, que são os chifres em sua cabeça.
A Psicanálise costuma deduzir de traços pouco estimados ou inobservados,
do resíduo da observação, coisas secretas ou encobertas.
Isto é o que nos ensina o próprio Freud quanto ao método
de trabalho psicanalítico, e o faz ao afirmar que o crítico
de arte Morelli, que usava o pseudónimo de Ivan Lermolieff, aplicava
tal procedimento em suas análises. Foi a partir da metodologia crítica
que Freud aproximou a Psicanálise da Arte.
Acontece que o próprio Freud não levou na devida consideração
um detalhe importantíssimo naquela estatuária, justamente
ele que com seu gênio escreveu coisas sobre Moisés impensáveis
para um judeu comum. Por que será que Freud não analisou um
detalhe que tanto se destaca e que ele próprio indicou no seu texto,
só que de passagem? É também curioso notarmos haver uma
discrepância entre versões quanto a uma citação
que Freud fez sobre o assunto. Numa das versões, a da Editora Delta,
a citação do crítico de arte Max Sauerlandt está
assim: Sobre nenhuma obra de arte recaíram
julgamentos tão contraditórios como sobre este Moisés.
Já na simples interpretação da figura encontramos as
maiores contradições..., no que confere com uma versão espanhola,
a da Editorial Biblioteca Nueva, ao passo que numa outra versão, brasileira,
da Editora Imago, lemos: Nenhuma obra de arte no
mundo foi julgada de modo tão diverso quanto o Moisés com a
cabeça de Pan (o grifo é
nosso). A simples interpretação
da figura deu origem a pontos de vista completamente opostos. E aqui, poderíamos dizer, também está
sendo apresentado mais um, com este escrito.
O detalhe a se destacar é o desta citação trazida por
Freud: o Moisés com a cabeça
de Pan, que confere com uma versão
alemã da Editora Imago: über diesen
panköpfigen Moses. Porém,
pode-se questionar tal versão, salvo se enquanto alusão ao motivo
a ser apresentado nestas linhas, e causa impressão o fato de Freud
ignorar a questão, que é, como veremos, importante, e que foi
deslocada para outro ponto da estátua sem que Freud se indagasse sobre
tal motivo artístico. Freud prestou bastante atenção
nos detalhes, inclusive e, sobretudo para os detalhes ao redor das Tábuas da Lei, e ali fez incidir sua atenção sobre
os chifres que há naquelas Tábuas, ao ponto
de inferir qual estaria sendo o movimento de Moisés, se o de levantar-se
ou sentar-se, baseado na posição em que as sustinha, indo de
encontro a opiniões de vários críticos e comentadores
justamente a partir de sua observação minuciosa daquele detalhe.
Contudo, não teceu considerações sobre o mesmo detalhe
que se encontra na cabeça de Moisés, apesar das várias
menções feitas por comentadores citados pelo próprio
Freud. O que não foi analisado por Freud ali?
Indagamo-nos, pois, sobre algo passível de leitura naquela estátua
para além da leitura feita por Freud na ocasião. Pode haver
algo além do imaginativo adorno desconfortante e jocoso com que pares
ornam com ímpares as frontes uns do outros. De início há
um mal-entendido próprio à linguagem, mesmo em se tratando do
que a Cultura consolidou enquanto sagrado, as chamadas Escrituras Sagradas originárias do judaísmo. Se os críticos
de arte citados por Freud houvessem prestado um pouco mais de atenção
para o fato provavelmente se dariam conta de que Michelangelo pôde haver
utilizado uma versão latina, a Vulgata, que confundiu duas expressões em hebraico,
bem próximas graficamente, qâran e qeren, quase homográficas. Porém qâran
quer dizer resplandecer, irradiar e qeren quer dizer chifre. Nas Escrituras, no livro do Êxodo, lemos: Depois disto desceu Moisés do monte Sinai, trazendo
as duas tábuas do testemunho; e ele não sabia que o seu rosto
lançava de si uns raios, que lhe tinham ficado da conversação
que tinha tido com o Senhor
(verso 29). Na tradução da Vulgata,
da sua cabeça cresciam
chifres, ao invés de seu rosto
resplandecer. Esta é uma versão mais plausível - a do
mal-entendido semântico - do que a de considerar que Pan haja inspirado
Michelangelo ao ponto de que as duas personagens, Moisés e Pan, pudessem
se equivaler, sobretudo se considerarmos a natureza libidinosa de Pan, um
contraste flagrante com a sobriedade do profeta Moisés. Além
do mais, a morfologia da imagem do próprio Pan pode estar relacionada
à mesma origem que deu lugar à de Moisés de Michelangelo,
origem que é a exposição de motivos deste trabalho.
Podemos, pois, começar aceitando esta versão, a do mal-entendido
semântico encontrado na tradução latina dos termos semíticos.
Porém, há mais do que isto para ser averiguado, pois o mal-entendido
indicado na análise filológica deixa transparecer algo latente,
subjacente na força contida na própria língua semítica
encontrada pelos javistas, algo de verdadeiro que surge e através do
que poderíamos considerar um lapso bem-sucedido da tradução
latina.
Toda a análise feita por Freud da estátua de Michelangelo
refere-se a qual teria sido a reação de Moisés diante
do alarido do seu povo, do povo que lhe devia obediência e que estava
sendo conduzido por ele para a Terra Prometida, resultado de um pacto, uma aliança com um
deus que deveria ser por eles adorado, e unicamente a Ele, o Único,
o Um. Na presença daquele Deus, Moisés passara quarenta dias
e quarenta noites, e, dizem as Escrituras, nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés,
com quem o Senhor houvesse tratado face a face (Deut. 34:10). Entre o Um e os outros interpôs-se
a ira de Moisés, guardiã da Lei, no intervalo contrastante entre, por um lado o haver
estado face a face com o novo Deus, e, por outro, o povo retornando aos seus
antigos deuses. Toda a ira de Moisés é contida em função
da escrita feita pelo novo Deus, para salvaguardar esta escrituração,
registro de uma nova aliança. Não era a Torá
que deveria ser quebrada, mas sim os antigos deuses é que deveriam
ser destruídos. Há na cabeça
de Moisés - e é isto
o que deve ser frisado - o reflexo, captado por Michelangelo, da presença de ambos os deuses, o novo e o antigo. Do novo a marca da luz sob a forma do resplendor,
qâran, cujo rosto precisou ser coberto para poder ser
olhado pelos semelhantes; do antigo restaram-lhe as marcas dos chifres, qeren, traços
do Bezerro de Ouro ainda lembrado pelo povo de Israel.
O Imaginário requer uma imagem de deus, e providencia uma fundida
de todo o material metálico precioso oferecido pelo povo, na forma
de um deus ancestral, o Bezerro; o Simbólico promove sua substituição,
um novo pacto, uma nova aliança testemunhada pela Lei escrita pelo
Deus da letra; e o Real impõe a impossibilidade de se falar no antigo,
exigindo a destruição completa dos vestígios que ele
próprio impõe enquanto retorno do que não cessa de
não retornar. Ambas as dimensões, a imaginária e a simbólica,
procuram atender de formas diferentes ao Real que insiste em reaparecer, vislumbrado
através do gozo da adoração, alguma coisa de inexprimível
de uma marca originária que resiste ao Simbólico que a Torá
tenta traduzir.
E é assim que no próprio Moisés de Michelangelo, majestático em seu furor
contido, em seu momento de passagem da paixão à sublimação,
da impulsão de quebrar as Tábuas
da Lei à sua preservação,
causa maior, nele encontramos, enigmáticos, aqueles chifres em sua
cabeça, como marcas destoantes a quebrar a solenidade majestática
de um ser humano em uma representação artística perfeita.
Ali estão, na sua cabeça, as marcas de uma reciprocidade especular
entre o Deus Javé e o Bezerro de Ouro. Qual a origem daquele adorno
em seu semblante tão nobre? Mitológica e mítica é
a resposta imediata, pois à época em que se deu a formação
da nação oriunda do monoteísmo judaico, isto há
cerca de pelo menos três mil anos, travaram-se violentas lutas de vida-ou-morte
naquela região em nome dos deuses locais, cuja epopéia está
registrada sob o nome de Escrituras Sagradas na tradição judaico-cristã,
homólogas, digamos, aos hinos homéricos, além de outros,
como os de Gilgamés também, sumeriano. Portanto, os conflitos
de hoje, registrados pela imprensa a todo momento, são antigos, provavelmente
iniciados por volta de 1200 antes desta era, e tais lutas duraram pelo menos
duzentos anos, após o que os chamados javistas dominaram a região
chamada de Terra Prometida.
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Os deuses ex-sistem
Os deuses provêm das contingências histórico-culturais,
apesar de o deus de Moisés ser apresentado como resultado de uma
revelação, isto é, enquanto uma aparição
de sua própria iniciativa. Um dos efeitos da idéia de uma religião
revelada e de um deus que É, que Existe, elaborada com elementos da
ontologia grega foi o sistema aristotélico-tomista. Em tal sistema
Deus existe e o sujeito
ex-siste.
Esta fórmula lógica - a do sujeito - foi a adotada também
por Lacan, sendo que a elaboração lacaniana seguiu uma vereda
imediatamente anterior a Tomás de Aquino, uma vertente agostino-anselmiana,
a de Richard de Saint Victor, que viveu por volta do ano de 1150 nos arredores
da Paris da época. Para aquele teólogo, de origem escocesa,
o termo ex-sistere implica não só a possessão do
ser, mas também uma certa origem, indicada pela preposição
ex adjunta ao verbo composto. Então, indagava,
o que é existir [ex-sistere] senão
ser de alguém, ter de alguém seu ser substancial? Isto é, provir de.
Mantendo tais premissas, retornemos ao local hoje denominado oriente médio,
ali onde deixamos os deuses da região promovendo os conflitos tribais
da época. Creio que possamos pensar a origem dos deuses enquanto
estando relacionada às interpretações e ao desejo de
influir nos eventos naturais: nascimento, morte; sol, chuva; dia, noite;
plantar, colher; etc... Façamos uma analogia: entre morrer por inanição
nos sertões nordestinos e apelar para os antônios conselheiros,
os padim cíceros e os freis damiões, não está
aí uma possibilidade de criação de milagres à
sobrevivência e à inteligibilidade mesmo irrazoável,
pelo menos, para nossa leitura? Se transpusermos imagens tão familiares
para as regiões circundantes do mediterrâneo oriental de há
três mil anos, poderíamos encontrar ali o mesmo espírito
entre tais povos, uma busca por compreensão e ação
frente às intempéries, face ao ciclo da natureza e da luta
humana pela sobrevivência. Imaginemos cada tribo daquelas conduzindo
um ou mais deuses por estandarte demarcatório de territórios
conquistados ou por conquistar. Imaginemos, tal como um filme dirigido por
um Kurosawa, as doze tribos de Israel dizendo-se obedientes à voz
de deus Javé invadindo palmo-a-palmo certos trechos da região
considerados como a terra prometida por aquele deus.
Naquela área existiram pelo menos três deuses muito influentes:
o Marduk, babilônico; El, cananeu; e, para
nossa cultura, o mais famoso, Javé, judaico. Marduk predominou de modo tal que o mito
cosmogônico de Hesíodo deriva do mito babilônico Enuma eli's. Freud,
no entanto, levou mais em consideração a origem egípcia
na formação cultural religiosa judaica do que a força
do sincretismo naquele cadinho cananeu. E é justamente esta vertente,
a cananéia, a que está na origem dos chifres na cabeça
do Moisés de Michelangelo. Por mais civilizados que possamos parecer
permanecem traços totêmico-animistas de nossas origens, como
os que foram registrados por Michelangelo.
A Arte, a Religião, a Mitologia, bem como as tradições
populares estão, em cada registro que fazem, permitindo múltiplas
leituras. Nas tradições, por exemplo, aí estão
os chifres de El seja nas touradas espanholas, nas vaquejadas nordestinas,
nas festas do litoral catarinense, ou mesmo no inocente churrasco gaúcho.
E o bumba-meu-boi? Na Mitologia, basta reportarmo-nos aos exemplos gregos
e fenícios, havendo o tão difundido mito do Minotauro, apogeu
do culto taurino, de origens bem mais remotas que o período minóico,
tão remotas quanto a história da domesticação
de outras espécies feita pela espécie humana, na qual os primeiros
animais domesticados teriam sido os mesmos que no presente continuam a compor
as criações de gado.
Essa incursão taurina visava apresentar àqueles que ainda
não o conheciam, o deus El. El foi o deus supremo na mitologia cananéia,
aquele que reinou soberano sobre todos os demais deuses e o que conferia a
sabedoria e a vida eterna aos mortais. Aquele deus, sob a forma de um touro, uniu-se a Asherat do Mar, gerando
setenta filhos, sendo o mais importante de todos o denominado Baal, deus das alturas,
dos relâmpagos e dos trovões, deus do mais desejado dentre todos
os elementos naturais, as benfazejas chuvas que fertilizavam solos áridos.
O El cananeu e o Zeus cretense, tanto quanto Asherat do Mar e Europa são equivalentes, sendo que os deuses cretenses
são posteriores aos babilônicos e cananeus.
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O deus de Athaliah
O sinal da presença do deus El ao nível
semântico é facilmente encontrável em nossa língua.
Por exemplo, o nome Emanuel, o deus cristão, que, como sabemos, quer dizer
Deus conosco, um dos nomes de Jesus. Mas o deus que mais aparece nos textos
das escrituras hebraicas é Baal, e não El, ainda que um dos nomes do deus judaico seja Elhoim, como veremos
um pouco mais adiante.
Um exemplo literário recente que eternizou a presença de Baal entre nós
está uma peça dramática de Racine, Athalie (1691), uma
personagem da Judéia, Athaliah, onde ela foi rainha há dois mil e novecentos
anos. Lacan nos trouxe essa peça em pelo menos três de seus Seminários:
As estruturas freudianas das psicoses,
As formações do inconsciente e A transferência em sua
disparidade subjetiva, sua pretensa situação, suas excursões
técnicas. Abordemos um pouco
dessa história referida por Lacan, a de Athalie como se escreve em
francês. Em hebraico creio que seja mais correto pronunciar Athaliah, que pode
ser traduzido mais ou menos como sendo ou uma expressão de louvor ou
de aflição: Athal, Grande, Iah,
é Javé; mas também
poderia significar aquela a quem Javé
afligiu. Ambas as fórmulas
poderiam ser atribuídas a Athaliah : a primeira por haver Javé provado
ser maior que Baal; a segunda por o Senhor Javé a haver
afligido sobremaneira.
Athaliah foi rainha de Judá entre 842 e 836 antes da
nossa era. Foi filha do rei Acab, de Israel, e de Jezabel. Foi esposa de Jorão,
rei de Judá, e seu filho Ocozias reinou em Jerusalém. Estamos
pois diante de figuras nobiliárquicas importantes na história
do judaísmo. Este seu filho foi assassinado por um outro rei que sucedeu
a seu avô no trono de Israel. Foi morto por ordem do deus Javé. A história
não é de fácil recomposição, requerendo,
como toda história antiga, uma leitura entremeada por elementos da
mitologia cultural daquelas tribos.
Parte da sua história está narrada no Quarto Livro dos Reis
encontrado nas chamadas Escrituras Sagradas, e, sob uma perspectiva de literatura
comparada, Athaliah foi uma personagem que transmite a força de
uma Medéia, não se atemorizando diante de atos terríveis,
de assassinatos brutais que perpetrou para vingar-se da morte do seu filho.
Mas por que seu filho, e também seu marido, seus pais e, por fim, ela
própria foram mortos? Neste ponto retornemos à morfologia do
Moisés de Michelangelo. Todas essas histórias são
histórias épicas, dizem respeito à epopéia dos
deuses que viviam em batalhas, sobretudo, no nosso caso, os deuses Javé e Baal. E em nossas
considerações estamos deixando de abordar um outro aspecto importante
relativo a tais histórias, que era o sacrifício de primogênitos,
sendo para nós o mais célebre filicídio o de Jesus,
ou Emanuel. O culto ao deus Baal foi reintroduzido entre os
Judeus pelos pais de Athaliah, continuado pelo marido e por ela. Esse culto
permaneceu por um longo e indeterminado período na história
dos Judeus. A ordem dada por Javé, o deus de Moisés, e que prevaleceu sanguinolentamente,
era exterminar todo e qualquer adorador de outro deus, sobretudo Baal, representado
pelo bezerro de ouro. Por isto Athaliah e os seus foram mortos.
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Os nomes sagrados do deus do judaísmo
Falar sobre Baal conduz-nos aos nomes de Deus no judaísmo,
e foram pelo menos sete. O primeiro deles foi El, sempre empregado
com artigo precedente: O El ; ou acompanhado por algum atributo: El Hay, Deus Vivo,
El Hashamaim, Deus do Céu, El Elhoim, Deus dos
deuses. Este nome, El, foi o primeiro, a mais antiga e a mais difundida
designação encontrada em todas as línguas semíticas,
cuja origem torna-se difícil precisar, mas sabemos pertencer, como
já vimos, à mitologia cananéia, originando-se esta, por
sua vez, como a grega, de várias fontes primevas, sendo a mais próxima
a mitologia babilônica referente aos deus Marduk. Baal era filho
de El, e não subsistiu na formação
cultural religiosa judaica, havendo sido combatido sem tréguas pelo
profeta Elias, contemporâneo de Athaliah e de
seus pais, devendo-se a ele o extermínio dos adoradores de Baal. Elias é
um nome composto pelos nomes de dois deuses, EL e IAH, significando alguma
coisa como Deus (El) meu (i) Javé (Iah), isto é,
Meu Deus é Javé. Ambos, El e Javé, apresentam-se juntos contra Baal.
O segundo nome é Elohim, da mesma raiz, El, significando Deus dos deuses, um indício
provável do henoteísmo judaico, ou seja, a adoração
de um único Criador, como no Gênesis, mas admitindo-se outros.
Este nome deve indicar um período de passagem entre o politeísmo
e o monoteísmo. Elohim seria Um dentre outros.
O terceiro e último deste primeiro grupo de nomes é Adonai, traduzível
simplesmente por Senhor, indicando aquele-que-julga-e-governa, derivações
do verbo dûn : julgar, governar. Dos três deste grupo era
o mais importante, e as vogais, inexistentes graficamente em hebraico, irão
compor um outro nome, o que se tornou o nome próprio de Deus, como
veremos nos próximos parágrafos.
Passemos agora a um segundo grupo de mais três nomes: Shaddai ou El-Shaddai vem primeiro,
traduzível por O Onipotente, de natureza violenta, empregando a força
para consecução de seus propósitos; El Yon ou Elyon traduz o verbo
subir, uma das formas de designação para O Altíssimo,
O-Mais-Alto, o Deus-do-Alto ou Deus Altíssimo. Talvez para amenizar
atributos de arbitrariedade, violência e impiedade, aparece um último
nome neste agrupamento, Qadosh, um atributo divino mais suave, próprio para
indicar sentimentos puros e nobres a Deus, traduzível simplesmente
por Santo ou Santíssimo.
Finalmente o sétimo nome, o mais importante, originário da
tradição sacerdotal mosaica, Javé, o mais sagrado dentre todos os nomes do Deus judaico,
aquele que indica a essência divina, um termo puramente semântico,
verbal, que procura dar conta, na linguagem, da essência da natureza
abstrata, da natureza divina. Pronuncia-se Javé em decorrência de uma composição
por consoantes, Y H W H, pronunciável como Yahwé ou Yahwá, derivações
do verbo ser. Tal pronúncia deve-se à junção dessas
consoantes às vogais do nome Adonai, acima referido. De acordo com a narrativa bíblica
há o conhecido diálogo entre Moisés e seu Deus: Quando eu encontrar os israelitas e lhes disser: O Deus de
vossos pais enviou-me a vós, eles me perguntarem: Qual é o nome
Dele?, o que eu lhes direi? E Deus disse a Moisés: Eu sou o que sou.
Assim dirás aos israelitas: Eu sou enviou-me a vós. Deus apresenta-se, então, em sua essência
verbal, isto é, enquanto um trait d'esprit, um dito espirituoso.
Na cultura cristã, enquanto uma versão greco-romana do judaísmo,
não encontramos mais a incidência de tais termos, mas equivalentes:
o termo Pai equivaleria a El, enquanto que Kyrios, Senhor, equivaleria a Javé, Adonai e Shaddai. Assim, no cristianismo, via versão paulina,
helenística, os sete nomes sagrados de Deus foram reduzidos a dois:
Theos e Kyrios, Deus e Senhor. Mas o substrato do registro originário,
o traço perdido advindo da mitologia cananéia permanece até
nossos dias. O El primevo tornou-se Deus, Deus Pai, Senhor; seu filho
Baal tornou-se Filho, Kyrios,
Senhor, Emanuel, Deus conosco. Os
cristãos continuam a adorar El, que tinha originalmente a forma de um touro.
E é assim, depois deste passeio, que retornamos à morfologia
da estátua do Moisés de Michelangelo, a qual indica o quanto
uma forma primeva pode subsistir, permanecendo num tempo lógico sempre
presente, na forma de chifres no caso, isto por meio de um tempo cronológico,
renascentista, na forma indelével que a Arte lhe dá.
Finalmente, concluindo esta parte deste trabalho, indico-lhes a possibilidade
de encontrarmos na letra sua continuidade, sobretudo se considerarmos na
grafia da primeira letra do alfabeto hebraico, Aleph, sob uma forma
de desenho, os traços de uma cabeça de touro.
Podemos afirmar, enfim, que Freud conhecia, claro, bastante bem, todas essas
histórias, como já havia escrito a Fliess: Afirma-se que também nosso velho deus foi adorado como
touro antes da sublimação imposta pelos persas.Isso dá
margem a toda sorte de idéias, que são prematuras demais para
serem escritas. (4.VII.1901).
À indagação de Jorge Luis Borges sobre o tema: Como será meu redentor? – me pergunto. Será um
touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será
como eu? (A Casa de Astérion),
talvez possamos retornar às proposições psicanalíticas,
fundadas da Letra ao Pai, relembrando seus Nomes, passar às formas
de seu esquecimento, de sua preclusão e de sua renegação.
____________
Texto
apresentado ao Ciclo de Palestras
ARTE
E LITERATURA
Promovido
por
FUNDAÇÃO
IBERÊ CAMARGO
Sob
curadoria de
DONALDO
SCHÜLER
em
Porto Alegre, 7 de junho de 2003
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