Leituras do
Seminário 18 de Jacques Lacan
DE UM DISCURSO QUE NÃO SERIA DO SEMBLANT
1971
Início: 04 de agosto 2020
Horário: terças-feiras, das 17:30 às 18:10h.
Funcionamento: 10 encontro quinzenais, via plataforma MEET.
Inscrições: para participar, os interessados
devem enviar uma solicitação para o e-mail: bs.freud@uol.com.br,
com seu nome, escolaridade, profissão, motivação
e instituição da qual faz parte.
Consideraremos as solicitações recebidas até
5 horas de antecedência do horário do encontro
para enviar a senha do ingresso.
Os participantes serão admitidos na reunião,
5 minutos antes do horário. Os ingressos encerram no início
da atividade.
Coordenação:
M.Glória Telles da Silva,
Maristela Leivas e
Luiz-Olyntho Telles da Silva.
Leia aqui algumas das contribuições
à discussão:
SEMINÁRIO
18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
13 de
janeiro de 1971
Capítulo
I. Introdução ao título desse Seminário
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
04.08.2020
• Esse Seminário
se constitui de 10 conferência (janeiro a junho de 1971) pronunciadas
na Faculdade de Direito. O mais breve de Lacan, até então,
exceto pela uma só aula do que seria o Seminário dedicado
aos Nomes-do-Pai, em 1964.
• Durante este Seminário, Lacan viaja
ao Japão.
• Lacan está interessado em explorar
a relação entre a palavra e o escrito, ou seja, entre
a letra e a palavra.
• Inicia escrevendo no quadro negro o título
do Seminário: De um discurso que não fosse do semblante.
• Depois retoma o que havia desenvolvido no
Seminário anterior (O avesso da psicanálise): Os discursos
são 4.
• O discurso do mestre não é
o avesso do discurso da psicanálise; o avesso seria como
dois lados separados; direito e avesso;
• Retoma o texto O Inconsciente, de
Freud, onde falou de dupla inscrição: Formulou duas hipóteses.
Primeiro a topológica e depois a hipótese funcional: na
primeira há uma inscrição da percepção
no inconsciente que representa a ideia e há uma inscrição
de uma representação desse elemento que será o seu
pensamento no pré-consciente. Aí estaríamos no
modo direito e avesso; na hipótese funcional, Freud atribuiu a
uma mesma inscrição que seria a representação
coisa no inconsciente e busca acesso através de um representante
da representação pela palavra para a consciência. Considerando
isto, Lacan elaborou a formalização dos discursos como torção.
Não são dois discursos contrários, mas um que pode
passar para o outro se há uma torção.
• Daí que Lacan vai usar da estrutura
da banda de Moebius para sustentar que esses dois
discursos, mesmo estando em dois lados opostos, um tem continuidade no
outro, passando por esse meio giro da torção;
• Um discurso não tem por referência
um sujeito. O discurso não é do sujeito, mas o determina.
• Salienta que num discurso, o sujeito está
ausente; por isso não se trata do seu discurso;
• Daí o equívoco de pensar que
há em falar de intersubjetividade; só se pode falar em
intersignificação;
• E afirma que um discurso é o que
se articula a partir de uma estrutura;
• Lacan pretende a subtração
da presença, pois nisso consiste a vacilação do
sujeito que só está quando um discurso se realiza;
• Menciona a revista Scilicet 2/3,
destacando dela dois traços: 1) ausência da presença,
sendo esta o que faz marcar o mais-de-gozar. Lacan pretende ir mais
além do que chama o incômodo das aparências, e isto
está na base de pensar um discurso que não fosse do semblant.
E destaca que a originalidade de seu ensino é o fato de que ele,
a partir do discurso analítico, coloca-se, em relação
ao público, em posição de analisante; 2) o segundo
traço refere a escrita sem assinar, aposta que está no
propósito da revista Scilicet, onde não
havia assinatura do semblant. E diz da sua aposta: nenhum discurso
pode ser autoral; ali isso fala.
• Repete, ao longo da primeira aula, oito
vezes o título do Seminário De um discurso que não
fosse (do) semblant para:
1) Dizer que esse é o discurso que
dá posição ao analista;
2) Dar nome aquele discurso que vai mais além
do incômodo da aparência (Um discurso só existe se
o denominamos e aí podemos interrogar-nos)
3) Dizer que ao enunciar de uma forma hipotética,
lembra a Freud no texto A denegação, quando examina os
juízos de atribuição e de existência; alí
diz que ao negar, estamos afirmando a existência e Lacan desliza
para dizer que na sua formulação, espera dar existência
a um discurso onde isso não fosse semblante, um discurso que possa
portar um outro saber que não o do semblante de discurso que está
para a lógica-positivista
4) E que esse semblante não pode ser
completado de nenhuma maneira por algum discurso;
• Para o discurso, na psicanálise,
não existe nada de fato. O fato que existe é o de dizê-lo;
vale dizer que o discurso só existe no momento em que é
enunciado; esse é o fato (a isso chama artefato); Entendo
que Lacan chama a atenção aí para o que reúne
seu público a escutá-lo, não importando o que será
dito, mas por saberem que algo será dito. Um discurso vale não
por ser discurso, mas por ser dito;
• Esclarece que não se trata de semblante
de discurso, já que isto está para sustentar uma posição
lógico-positivista, que submete um significado a prova do sim
ou não, e isto não tem sustentação desde a
experiência analítica, onde a verdade da interpretação
só sabemos pela consequência que desencadeia (só
se é verdadeiramente seguida. Entendo que Lacan aponta aí
que o efeito de verdade toca ao real (relacionado ao Édipo) e por
isso não é semblante; é sangue vivo.
• Lembra que no pensamento científico
partiu do que a natureza oferece de mais aparente, que se sustenta no
semblante, a observação dos astros (Descarte, Teoria
dos meteoros, 1637). E toma o trovão como a própria
imagem do semblante. E diz: O trovão é um sinal, mesmo
não sabendo sinal do quê (essa inscrição
do Trovão encontramos de forma brilhante no Finnegans Wake,
de James Joyce). Daí que todo discurso é semblante. E lembra
que os significantes também estão na natureza, estão
aí e não são uma coisa individual (lembra que a letra
A é uma cabeça de touro invertida);
• Termina essa primeira aula falando do ponto
mortal, o gozo, aludido por Freud no seu texto Mais
além do princípio do prazer. O gozo é efeito
de discurso. E o discurso do inconsciente é a emergência
de uma certa função do significante e, Um discurso que
não fosse (do) semblante teria de escrever as consequências
desse impossível de se inscrever.
Fica a questão: o que pode possibilitar essa torção?
|
Contribuição
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
04.08.2020
É, pois, da impossibilidade
de o sujeito analisante expressar-se na língua que está
à sua disposição para dar conta do que o atormenta,
que ele busca, na relação de alteridade que estabelece com
o analista, condições nas quais venha a criar, fazer com
a língua, por meio do erro, das falhas de seu próprio dizer.
Nessa condição do erro, do equívoco na fala – embora
não intencional, ainda que não ocorra sem uma causa –,
é nesse ato, pois, bem sucedido, como dizemos, que vai irromper
o sujeito, que ele cria na língua, por meio da simbolização
de um Real que insiste.
MARIA
TEODORA DE BARROS OLIVEIRA, rodopiano, pp.61-2
|
O título desse primeiro capítulo indica o reconhecimento,
por parte de Lacan, de uma certa ambiguidade concernente ao título
do Seminário: D’un discours qui ne serait pas du semblant,
traduzido por Vera Ribeiro por De um discurso que não fosse
semblante. Pois essa ambiguidade deixa seus primeiros traços
nessa tradução, que a leva a trocar o tempo e o modo
do verbo, a suprimir a contração da preposição
de junto ao artigo definido o, e a confundir semblant com semblante.
A diferença entre os tempos é sutil,
mas existe. Na frase de Lacan temos o présent du conditionnel,
formado com o mesmo radical do futuro simples e a desinência modo-temporal
do imperfeito, serait, que em português corresponde
ao futuro do pretérito simples, seria. A tradução,
não identificando a função do qui francês
– o pronome relativo que –, confundiu o tempo e o modo
do verbo do qual se serviu Lacan e usou, nesse lugar, o pretérito
imperfeito do subjuntivo, fosse, que tem por função
expressar dúvida ou desejo, nunca uma certeza, enquanto o futuro
do pretérito expressa uma incerteza e também uma surpresa
e uma indignação em relação a algo que poderia
ter acontecido posteriormente a um determinado passado.
Minha opção pelo futuro do pretérito
apoia-se, como se vê, em outra desinência. Ao longo do seminário
aparecerão as consequências de uma e de outra opção.
A preocupação de Lacan, contudo, mais
que com o predicado, parece-me ser com o substantivo – discurso – acompanhado
de seu complemento nominal – do semblant. E para dizer o que entende
por discurso, começa glosando não ser o dele. Pois eu
posso afirmar que também não é o meu em questão.
Ora, Lacan dedicara seu Seminário anterior
justamente aos discursos que, de forma reduzida, ele faz questão
de dizer, enumera quatro, marcando, para todos eles, uma estrutura tetraédrica
e constante, por cujo quadrípodos giram os diferentes discursos,
a começar pelo do mestre, sempre na mesma ordem, seguindo o da
universidade, o do analista e o da histérica, salientando o que
dissera no Seminário anterior, que o discurso do mestre não
é o avesso do da psicanálise. Trata-se antes de torções,
as quais buscam possibilitar o que Freud chamava de dupla inscrição,
como fica claro em seu estudo sobre a negação: ao
dizer esta não é minha mãe, a inscrição
inconsciente inscreve-se também na consciência. Lacan,
utilizando-se da cinta de Möebius mostrou a possibilidade
disso sem a transposição de uma borda.
O título do Seminário, ao ocultar
o sujeito, diz, de per se, que o discurso não
tem por referência um sujeito, mas sim que o determina. Partindo
da intersubjetividade, Lacan joga com a presença do outro: em
francês, a palavra presse serve bem para seu desígnio:
é também a pressão do plus-de-gozar.
E o radical inter, de intersubjetividade, de entre
um e outro é expresso pelos símbolos S1 – S2,
os significantes que dizem do sujeito na sua ausência, marcas do
inconsciente.
A passagem pelo discurso da universidade
leva a marca do incômodo, por sua neutralidade, provocada pela
busca da pureza da inter significação. Uma pureza que
esconde o uso da língua como artefato, um recurso de Lacan
para dizer que o fato só existe pelo fato de dizê-lo. E,
uma vez tornado fato de discurso, pode-se fazer com ele qualquer coisa,
de uma obra de arte a uma mentira, às vezes como expressão
de verdade, embora os exemplos do último caso, desde Epimeteu,
não abundem.
Para dizer do semblant, galicismo já
incorporado pelo dicionário Houaiss, com a conotação
de exterioridade enganosa, Lacan contrapõe-se ao positivismo lógico,
requerente, para sua comprovação, de uma verificação.
Na psicanálise, nascida sob o signo de Édipo, de modo diferente,
sabemos da verdade de uma interpretação por suas consequências.
Na psicanálise, a interpretação desencadeia a verdade.
É o que nos permite dizer, parafraseando um título dos Escritos,
que o desejo é a sua interpretação. E o efeito dessa
verdade, se não é semblant, e sim sangue vivo, sangue
de Édipo, ele não refuta o semblant.
O discurso como artefato é o nosso dia-a-dia,
enquanto o sustentável é o da ciência, o qual começa
pela aparência dos astros. Ocupa-se dos meteoros: o vento, a chuva
e o arco-íris. O trovão – indicador do raio, do dardo de Zeus –, é signo do nome do pai, muito
bem representado no Finnegans Wake com palavras de uma centena
de letras, indicando sempre novos inícios. O trovão é
a imagem do semblant e o que importa mesmo é que o significante
é igual ao status do semblant. Trata-se, enfim, da relação
com o real genesíaco, desse real que sempre está.
É nessa medida que não há semblant
de discurso. Discurso é semblant na natureza (porque
está na natureza) e um sujeito só pode ser produto da
articulação significante. Sua forma genitiva objetiva
– por sua atuação passiva – o determina, diferente do
genitivo subjetivo, cujo princípio é ativo. Assim, o sujeito
não determina a articulação significante, antes
é por ela determinado.
O reconhecimento da emergência do discurso
do inconsciente, desde um real impossível, enquanto expressão
do que não cessa de não se escrever é o que teria
alguma chance de ser um discurso que não seria falso, para dar
uma outra tradução possível às palavras
de Lacan.
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SEMINÁRIO XVIII, de Jacques Lacan
:
De um discurso que não seria
do semblant
20 de janeiro de 1971
Cap. II: O homem e a mulher
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
18.08.2020
• Inicia esta aula
retomando uma questão colocada na aula anterior: aonde quero
chegar? Lacan faz uma torção e prefere explorar essa
questão pelo seu avesso: de onde eu parto? ou, de onde quer
fazer seu público partir. E explora dois sentidos: partir para
ir a algum lugar com ele e também, saírem de onde estão.
• Relaciona este aonde eu quero chegar com
pergunta Che voui? e da importância que tem
numa análise manter essa pergunta em suspenso, pois respondê-la
de imediato produz uma inércia, o mesmo que dizer que não
leva a lugar nenhum. Mas, como alí não fala desde o lugar
de analista, diz que vai responder essa questão (de onde eu parto?).
• Vou destacar três pontos que considerei
essenciais dessa aula:
1º - Lacan disse no Seminário anterior, O
avesso da psicanálise, onde trabalhou e apresentou seus quatro
discursos, que havia deixado um lugar sem nomear (o do agente
do discurso), justo o lugar que dá nome ao discurso, dependendo
de qual elemento ocupa esse lugar. Ele vai então dizer, nesta
aula, que este é o lugar do semblant. O semblant
(seguindo a indicação de Luiz-Olyntho para o uso dessa
palavra que há em português e é mais adequada que
semblante) vem a ser a função primária da verdade
de um discurso: aquele que fala diz a verdade; destacando justamente que
a revolução de Freud foi mostrar que o que faz sintoma, a
dimensão do sintoma, no dizer de Lacan, é que isso (o inconsciente)
fala; Por isso, a promoção do sintoma é tão
importante, dirá que é mesmo decisivo. Só quando há
um sintoma, há demanda para análise.
Vai também nos lembrar que a força que tem um
discurso, é justo porque está marcado pelo elemento que
ocupa este lugar. E ressalta que, especialmente no discurso do mestre,
em torno do qual se organizam diversas civilizações, este
tem sua força, não tanto pela violência - como poderia
se presumir que ocorreram mas assim ditas sociedades primitivas -, mas
por ter seu motor em um significante fundamental: é dali que o
significante fala. Dito de outro modo, se um homem tem tanto valor quanto
outro, o que eleva o seu discurso a um lugar de mestre é a força
de seu dizer.
E nos diz que o fato da verdade ocupar o lugar que fica abaixo
da barra do lugar do semblant, não significa ser o contrário
do semblant. Simplesmente indica que a verdade é
a dimensão, diz-mansão (mansão do dizer, que fica
melhor em francês, dit-mansion) e que essa diz-mansão
da verdade é o que sustenta o semblant. Ou seja, na posição
daquele que emite um discurso, há uma dimensão da verdade.
Isso é o que faz a força de cada elemento que nomeia um
discurso. Daí que, o que fala do lugar do semblant, aparenta uma
verdade, já que a verdade suporta o semblant.
• Retoma ainda dois pontos da primeira aula:
1) que discurso é o (arte)fato, e 2) que semblant é
o contrário do artefato. Aonde vai com isso? Nos indicar que
as Ideias, como propôs Platão, compõem uma realidade
que emana do discurso que dela construímos e isso graças
ao significante que, mesmo sendo buscado na natureza, tem um valor de
função e não de signo. Preserva o que não
é dizível, ou seja, o real.
• O discurso científico, o discurso
articulado, tem sua referência no impossível, que é
o real; já que é o real que faz furo no semblant, e por
isso está sempre estimulando sua produção. O limite
do discurso científico, do discurso, é o que não
pode ser dito.
2º - Lacan dirá que o que nos concerne na psicanálise
é o campo da verdade, que resiste e não é permeável
a todos os sentidos, pois lidamos com o fantasma que é consequência
do discurso; ou seja, o sujeito ($) quando interrogado pelo pequeno
a, o mais-de-gozar, só pode produzir como
efeito seu fantasma (essa é a formula do fantasma $<>a);essa
é a verdade do sujeito, logo, impossível de ser toda dito,
pois o que nos interroga é da ordem do Real.
3º - O mais importante desta aula, ao meu entender, está
na parte 3 onde Lacan trabalha a diferença entre sexualidade e
as relações entre o homem e a mulher, reportando-se a
Freud. Deixa claro que sexualidade está para o universo do biológico
e isso nada tem a ver com o que Freud descobriu como sendo o que move
as relações entre o homem e a mulher, que é outra
coisa; daí sua enunciação polêmica para dizer
que entre humanos não há relação sexual.
Para explorar esse tema, toma como contraponto (e recomenta
a leitura) o livro de Robert Stoller Sexo e gênero (1968), um
livro de um psiquiatra e psicanalista americano que dedicou-se a estudar
o tema do transexualismo (na revista Scilicet 4 há um artigo,
Contribuição da psicanálise ao transexualismo,
que toma como referência este livro de Stoller), onde, para Lacan,
está colocado o desejo, a qualquer custo de mudança de
sexo. O interessante é que Lacan toma aí uma posição,
apontando para a desconsideração, nestes estudos de casos,
da face psicótica, dessas estruturas, uma vez que o autor desconhecia
o conceito de forclusão. E agrega: É próprio do
destino do seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres
e que o que define o homem é sua relação com a mulher
e vice-versa. Pode-se dizer que, para Lacan, a definição
de gênero homem ou mulher se dá sempre na presença
de uma diferença que se instala na relação entre
uma e outra posição. Jamais como definição
intrínseca.
• Portanto, a relação sexual está
fundamentalmente para a ordem do semblant, na medida em que o
que move a identidade de gênero, homem e mulher, situa-se, desde
muito cedo, em identificar-se com um dos sexos. Lacan diz: Para o
menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem, e que esse semblant
sexual é veiculado por um discurso, para os seres de fala, o que
faz com que as vezes, ao invés de cortejar uma mulher, o homem possa
violar a mulher; ou seja, nem sempre o homem ou a mulher conseguem sustentar
o semblant todo o tempo. E, afirma, que no limite do
discurso está o real e aí pode se apresentar a passagem ao
ato, o sair da cena, quando ocorre o rompimento do laço discursivo
com o objeto plus-de-gozar, fazendo diferença com o acting,
que é trazer à cena o semblant.
• Destaca então que o mito do Édipo
designa o impossível do gozo, por isso mítico, de gozar
de todas as mulheres, e só pode ser apreendido desde sua contingência
orgânica que conecta-se com os objetos pequeno a: seio,
excremento, olhar e voz, sendo o falo, enquanto significante,
o que normatiza esse gozo e que está, por isso, solidário
a um semblant. Vemos aí Lacan nomear quatro objetos e um significante
e que esse conjunto é o que organiza a relação gozo
e semblant entre homem e mulher. Vai dizer assim: A identificação
sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher,
mas em levar em conta que existem mulheres, para o menino, e existem homens,
para a menina. Para os homens a menina é o
falo, e isso os castra. Para as mulheres menino é o falo, e isso
o que as castra.
• A tudo isso chamou de operação
semblant, onde a mulher é para o homem a hora da verdade.
Para o homem, gozo é semblant. Para a mulher, ela sabe que gozo
e semblant são disjuntivos. Gozo e semblant podem se equivaler
na dimensão do discurso, mas são distintos.
• E termina esse ponto falando do provérbio
Cherchez la famme, procurem a mulher. E agrega:
para ter a verdade de um homem, seria bom saber quem é sua mulher,
ou, para pesar uma pessoa, não há nada como pesar sua
mulher. Já para a mulher...bem, não é a mesma coisa,
visto sua enorme liberdade com o semblant.
• Termina a aula com um dito no mínimo
surpreendente. Diz que talvez só seja lacaniano por ter estudado
chinês no passado. Refere-se a Mêncio (Meng Tzu, mestre Mêncio,
370 a.C – 289 a.C. Foi discípulo de Confúncio), cujo discípulo
diz: se não encontrardes algo do lado do discurso (yen)
não o procureis do lado do vosso espírito (ou coração,
hsin). E se não encontrardes do lado de vosso
espírito, não o procureis do lado de vossa sensibilidade
(tchi).
|
Contribuição
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
18 de agosto/2020
Quando alguém se prepara para
um discurso, é costume tomar precauções com o objetivo
de melhor comunicar-se com o público. Nesta aula de Lacan, não
é diferente. Reparem em sua abertura com uma denegação:
- Não foi para me garantir. Um recurso nada frequente
em seu Seminário. Pois então, suponho que sua intranquilidade
deriva do tema a que se propõe. Eu, pelo menos, fico muito intranquilo!
Falar sobre o homem e a mulher, um tema tão comum, nunca é
fácil para quem não quer ser um mero charlatão.
Vejam que também se preocupa com os que ouvem mal, no fundo
da sala. Está bem, existem os fatores objetivos de acústica,
mas também existem os subjetivos: não é raro os
alunos pouco confiantes buscarem o fundo da sala. O entendimento requer
conhecimento e referências anteriores, e o mestre quer seus alunos
mais próximos de si.
Aonde quero chegar? é uma pergunta pelo
desejo do Outro, equivalente ao Che vuoi?, de Cazzotte. E, justamente
por ser uma pergunta importante, é preciso deixá-la em
suspenso, tal como ele argumentará, ao final da aula, com Baltazar
Gracián, ressaltando a importância do silêncio.
Mas, enfim, o que Lacan quer é que todos passem para a frente,
para junto dele.
1.
Na aula passada, falara do semblant, e agora o retoma como função
primária da verdade, essencial para designar essa função,
sem a qual é impossível qualificar o que se passa no
discurso. Quando traduzimos ao português a fala da Verdade, o
je parle, transparece aí, mormente, o falo. E é na
fala que se pode reconhecer o movimento revolucionário de Freud
ao colocar em primeiro plano a função dos sintomas, tal
como sugerira Marx, de quem foi contemporâneo (quando Marx morreu,
Freud já contava 27 anos). E trata-se do sintoma como o que não
funciona no Real. E o interessante é que o sintoma fala até
com os que não sabem ouvir, mas não diz tudo, nem para
os que sabem.
Interessante também que a função dos sintomas
não é uma invenção, nem de um, nem de outro,
mas algo que vem ronronando, há séculos. Quando Lacan
usa esse verbo, ronroner, ele pode fazê-lo tranquilamente
porque seu sentido primeiro, em francês, é uma referência
ao ruído contínuo de qualquer geringonça, e depois
vem a respiração do gato. Em português, a respiração
do felino vem em primeiro. E quando fala no discurso, destaca o lugar do
agente como definidor. Assim, podemos dizer que a função
primária da verdade é sustentar o semblant.
S1
_____
$
Aqui fala o Lacan-analista-chinês: é desde sua cultura
chinesa que ele reconhece a importância do mestre, um mestre que
não foi formado pela Sorbonne nem por Oxford, nem por Salamanca,
mas de um mestre que aprendeu da vida, no silêncio das meditações.
É nesse sentido que o discurso do mestre não vinga pela
força; é diferente da violência, algo muito distante,
porém, da cultura ocidental que primeiro dava bolos nos alunos
distraídos e que, depois, se desinteressou deles. Agora, se isso
era assim por tratar-se de uma cultura primitiva, não temos como
saber. Lacan diz arcaica, e toma a raiz grega, ἀρχή. Contudo, a denotação
primeira de arché é origem, princípio.
E, então, leio assim: no princípio tem que estar o discurso
do mestre. Os outros seguirão o estilo.
O interesse primeiro pelos outros discursos será uma forma de,
como ele diz, de noyer le poisson, de afogar o peixe,
uma forma de tapeação.
Então sua fórmula: o que chamamos de revolucionário
consiste no deslocamento do discurso. E o discurso gira sobre suas
quatro patas, aqui chamadas de godets. Está
bem, godés são as forminhas onde o pintor mistura suas
tintas, e Lacan as usa, muito provavelmente, para destacar o diferente
colorido de cada discurso. Mas godets são também
as pregas das saias plissadas usadas pelas meninas para ir ao colégio
e que os homens elegantes seguem usando nas camisas próprias
para os momentos de gala, e que servem para dizer dos desdobramentos do
discurso, cujo semblant é sempre sustentado por uma verdade.
Aproveitando-se de outra pergunta indireta – Será Lacan um idealista pernicioso?
–, reforça a importância
do semblant. Primeiro porque o discurso é o artefato, aquilo
possível de tomar a forma que se queira, e o semblant é
o contrário do artefato. Depois, porque o conhecimento já
não deriva da percepção direta, como propunha Berkeley,
para quem ser est percipi,
e sim de um discurso. E do discurso de Aristóteles ele vai dizer
que se comporta como um místico por destacar a importância
da ousia, i.e., do Real. Acredito que se possa aproximar
isso da arché, pois a ousia conota einai,
a essência, a substância (de substare). Trata-se de
algo da ordem do indizível – isto é o místico –,
mas de algo que se busca argumentar.
Será, então, idealista? Não, porque para o idealismo
o mundo só pode ser compreendido a partir de sua verdade espiritual.
E também não é nominalista, pois seria um absurdo
para ele não acreditar nos universais e teria de renunciar ao materialismo
dialético, i.e., teria de renunciar à
compreensão de que a matéria está em uma relação
dialética com o social e com o psicológico, mas o importante
é assinalar que o discurso científico só encontra
o Real na medida em que depende do semblant. A articulação
algébrica do semblant é o único
aparelho por meio do qual designamos o Real, na medida em que o Real é
o que faz furo nesse semblant articulado que é o discurso científico
que só tem como referência a impossibilidade a que conduzem
suas deduções.
2.
Os prolegômenos acima são para diferençar a psicanálise
da ciência, pois o que do Real nos concerne, difere de sua posição
na física. Trata-se de algo que resiste e que se chama o fantasma,
relação que é rompida no discurso do mestre
por uma impossibilidade a ser resolvida no discurso do analista,
quando o $ estará em frente
ao semblant do plus-de gozar. Então aparece aonde
Lacan quer chegar: ao plus-de-gozar pressionado, uma espécie
de passer au
caviar, um método de censura usado na Rússia
de Nicolau 1º, com o sentido de denegrir, algo que não tem
nada a ver com o que Freud chamou de discurso do líder, mas que,
sem dúvidas, o destaca. E aqui ele recorre, por engano, ao final
do capítulo VII, A identificação, de
Psicologia das massas e análise do eu, de Freud,
quando se trata do final do capítulo VIII, Estar amando e
hipnose, para resgatar daí o esquema da introjeção
do líder no lugar do Ideal do eu e o exemplo que dá é
o do bigode de Hitler, tomado como modelo do traço unário,
do einziegerzug, para a identificação,
compreendido aqui como
plus-de-gozar, vale dizer como a faceta
de gozo do traço unário, sua subjacência sexual.
É o que acontece com o discurso.
3.
Para Lacan, a sexualidade é importante desde o ponto de vista
do que ele chama de rapport sexuel, onde rapport
tem três sentidos: o mais antigo é o de relato, depois
vem o de proporção e, finalmente, o de
relação. É nesses sentidos que o rapport
não existe, quer dizer, que não existe de forma definitiva.
Os infindáveis romances de amor estão aí para provar
que o relato definitivo nunca foi escrito; as proporções
entre o homem e a mulher são desequilibradas e não existe
a relação absolutamente satisfatória: nem bem se
termina uma e já se pensa na seguinte.
E, para examinar a diferença dos sexos, conforme ao seu estilo
de ir aos estremos, parte das posições transexuais, lembrando
que Robert Jesse Stoller, em suas Pesquisas sobre a identidade sexual a
partir do transexualismo, de 1979 (o Seminário é de 1971,
mas a indicação... o original é de 1968), deixa
de fora, completamente, a face psicótica desses casos. Ele não
toma em consideração a forclusão lacaniana.
No final, o que importa, é isso: o que define o homem é
sua relação com a mulher, e vice-versa. Para o menino,
na idade adulta, trata-se de parecer homem para a mulher; trata-se da
dimensão do semblant, uma dimensão comum, lembra
Lacan, aos vertebrados tetrápodes (os que tem quatro membros),
nos quais, na maioria dos casos, o macho é o agente da exibição.
A mulher é o alvo dessa exibição: ela depende dessa
exibição para sua excitação. Essa exibição
pode surgir também no discurso e é nesse nível
que, para ela, tratar-se-ia de um discurso que não seria do semblant.
Então, sem a cortesia animal, acontece o rapto, a violação,
que está tanto para o homem como para a mulher. – No acting-out,
é o semblant que passa à cena.
O discurso é o que permite o plus-de-gozar, tomado aqui
como o que está interdito no discurso sexual. E então ele
solta uma de suas invectivas picantes: Não há
ato sexual. E, quanto a mim, só posso entender que esteja se
referindo ao ato como sendo definitivo, porque os outros existem, e fazem
a fortuna dos motéis.
O mito de Édipo, o hipermito, como enuncia Lacan, mostra
como o Real se encarna no gozo sexual como impossível, quer dizer,
como algo que não sessa de não se escrever. É assim
que o Édipo designa o ser mítico, cujo gozo seria o de todas
as mulheres.
Então, para haver identificação sexual, não
basta se acreditar homem ou mulher, é preciso levar em conta
que existem mulheres para o menino, e que existem homens, para a menina.
Em outras palavras, o homem precisa acreditar-se junto à mulher,
e a mulher precisa acreditar-se junto ao homem. E o importante é
que, para os homens, a menina é o falo, e é isso que os
castra; para as mulheres, o menino é o falo, e isso é
o que as castra.
E esse falo, ele é o Real do gozo sexual, equivalente
ao nome-do-pai.
É depois de todas essas premissas que Lacan perguntará
pelo lugar fundador do semblant. Como resposta, dirá
que a mulher é a hora da verdade para o homem. O homem se prepara
por toda a vida para esse enfrentamento, muito mais difícil do
que enfrentar um rival. Lembrei de Acteon morto por seus próprios
cães quando quis alcançar Ártemis/Diana.
É que enquanto, para o homem, semblant equivale a gozo,
para a mulher há uma disjunção entre esses dois
elementos; ela sabe que é semblant. E quando
queremos saber do homem, Lacan recomenda: - Cherchez la famme;
ela é a verdade do homem, embora, aqui, contudo, a recíproca
não seja verdadeira, porque a mulher tem uma enorme liberdade com
relação ao semblant. E como, neste momento do seminário,
há muitos risos, Lacan acrescenta: - A mulher consegue dar
peso até a um homem que não tem nenhum.
4.
Essas são verdades de sempre, faladas boca a boca. Quando surgem
na literatura, ditas por alguém que sabe o que diz, é
preciso prestar atenção, como por exemplo Baltazar Gracián,
no seu L’homme de cour, de 1646, no qual destaca a
importância da prudência e da dissimulação
(uma variação do proposto por seu contemporâneo, o Cardeal
Mazarino: contém-te e abstém-te, equivalentes a simula e
dissimula, estando a simulação no lugar da prudência,
com o sentido de conhecer-se a si mesmo e a dissimulação
no sentido de conhecer ao outro.) Para tanto, diz Gracián, o silêncio
é o santuário da prudência, recomendando a imitação
de Deus, esse Deus que mantém todos os homens em suspenso, e assim
ser um santo, palavra que para ele tem o mesmo sentido do ideograma chinês
shénshèng, 神聖 [神, Deus e 聖, santo], que quer dizer sagrado.
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SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não
seria do semblant
10 de feveiro de 1971
III. [O] Contra [d]os linguistas
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
1º de setembro de 2020
• Lacan começa
esta aula comentando sobre a greve1
que ocorria em Paris neste dia e diz: Não faltarei à presença
de vocês. Lacan fala de seu compromisso com seu público,
e que o que o leva a manter sua aula é a cortesia ou o yi,
em chinês, ou seja, responder com imparcialidade; é uma
das quatro virtudes fundamentais.2
• Lacan propõe ao seu público
uma conversa familiar, diferente do que havia pensado em falar, em
função de um artigo saído no jornal que tratava
sobre os investimentos na Universidade, sobre o qual não parece
muito de acordo. Diz que sua guinada é o modo de levar em conta
a greve.
• Refere então que sua relação
com a Universidade é marginal, embora lhe deva respeito por
ter sido acolhido por ela. Menciona então os muitos ruídos
incidentais, ecos e murmúrios que têm chegado a ele desde
o campo universitário da linguística. E faz referência
especialmente a um artigo de um linguista, que havia saído há
2 anos na revista La nouvelle revue française (nº
163 de 10 de janeiro de 1969) [o linguista é Georges Mounin, e
o artigo chama Quelques traits du style de Jacques Lacan], onde
ele faz muitas críticas ao modo como Lacan empregou a linguística
no campo da psicanálise. Mounin chamou o uso feito por Lacan dos
conceitos lingüísticos de coloração estilística,
eque só é justificada pelo contexto intelectual da época.3
• Lacan lê neste artigo a sineta que
teve que ouvir, embora seja surdo, indicativo de que seu lugar não
é sob a marquise da universidade.
• Daí passa a questão que considera
relevante colocar neste momento: Será que se é estruturalista
ou não quando se é lingüista? E, daí, se
diz funcionalista, referindo que o estruturalismo é uma coisa
que serve de rótulo para dizer da seriedade daqueles que se reservam
o direito de falar sobre a linguagem. E busca examinar a relação
da linguística com o que ele ensina. Diz que é em torno do
desenvolvimento lingüístico que sustenta o eixo do seu ensino
e se faz um uso metafórico da linguística, acusação
desdenhosa de Mounin, é por reconhecer que só existe linguagem
metafórica. Coisa que os linguístas parecem ignorar. Daí
considerar abusivo reservar aos linguístas o direito de falar da
linguagem. E mais adiante, em dois momentos, diz:
A linguística só pode ser uma metáfora
que se fabrica de propósito para não funcionar e que
a psicanálise desloca-se com todas as velas desfraldadas por
essa mesma metáfora. [pg.44 e 50]
• Sustenta que, fala como psicanalista e se
tem um público que o escuta é porque algo ele sabe. E
aí coloca nos seguintes termos o seu saber: Digamos que...Eu sei
a que me ater, e faz diferença do enunciado, Sei onde me posiciono
[pg. 40].
• Argumenta que ninguém sabe o que
diz ao dizê-lo, ninguém tem o mapa, mapping, para
dizer onde estamos. Entendo que aí Lacan aponta a duas vertentes.
A primeira ao fato de que não somos donos de nosso dizer e nunca
podemos afirmar uma posição definitiva, na medida em que
só sabemos do resultado ao final, seja de uma frase, de uma cura,
de uma vida. Aí saberemos onde chegamos, logo, onde estamos. Do
contrário, estamos sempre no caminho, sem saber bem aonde vamos
chegar. A outra vertente, é o fato de que é só pela
relação com o Outro que podemos situar onde estamos.
• Aí se detém no discurso da
ciência, que repudia esse onde estamos, o incerto desse lugar,
já que a toda hipótese formulada busca a verificação
da sua verdade, mas, alerta Lacan, isso nada prova a verdade da hipótese,
pois na lógica, se pode tirar uma conclusão verdadeira de
uma premissa falsa.
• Ninguém pode afirmar: Sei o que digo.
Isso foi o que a descoberta freudiana nos ensinou. Nenhum discurso é
dono da verdade. Ninguém sabe ao certo o que diz. Só sei
que nada sei, já dizia Sócrates E a causa disso está
na própria estrutura da linguagem.
• Diz que para a linguística ele está
se lixando, o que lhe importa é a linguagem, já que é
com ela que lida quando faz uma psicanálise. [pg.43]
• O referente de um discurso é sempre
real, por isso impossível de designar, e toda designação
é metafórica. O significante evoca um referente, mas nunca
o certo e assim construímos uma linguagem.
• Lacan então trabalha o ideograma
japonês wei, dizendo que pode significar tanto
agir ou ter a acepção de como,
servindo de conjunção para construir metáforas,
ou seja, para referir-se a outra coisa. O verbo transforma-se numa conjunção.
Diz Lacan: Quando uma coisa se refere a outra, da-se a maior amplitude,
a maior flexibilidade ao uso eventual desse termo, wei, o qual,
no entanto, significa agir [pg. 44/45]. E diz que isso lhe ajudou
a generalizar a função do significante. E lembra a frase
de Fausto, de Goethe: no princípio está a ação,
dizendo que é o mesmo que diz São João: no começo
era o verbo; para dizer da força que está contida no
ato inaugural da palavra.
• Fala, então, da articulação
dupla, (conceito que o linguista Andrés Martinez formulou e que
fala dos dois níveis – morfemas e fonemas – que se articulam nas
palavras) e faz uma crítica a que numa língua como o chinês,
essa articulação é bem mais bizarra, já que
os fonemas, sozinhos, já tem significação e quando
se juntam para formar uma palavra, esta não tem nenhuma relação
com o que os fonemas significam.
• Menciona também dois conceitos criados
pela linguística: competência e performance.4
• Discorre sobre o discurso do capitalista5,
onde há uma troca de lugar dos elementos do semblant e
da verdade. O sujeito, colocado no lugar da verdade
no discurso do mestre, ocupa o lugar do semblante no
discurso do capitalista, onde o S1,
significante mestre, fica sob a barra, no lugar da verdade.
(ver ao lado)
• Essa inversão, indicativa da relação
do mestre moderno (o capitalista), leva a uma ligação
cruzada do sujeito com o produto, mais-de-gozar, fazendo nascer o sujeito
sem limites, por estar nessa ligação cruzada em que o gozo
não cessa de se inscrever, o que levaria ao consumir-se na busca
incessante de produzir o gozo, onde o suporte do mais-de-gozar é
a metonímia. Na conferência de Milão, Lacan dirá
que o discurso capitalista é loucamente astucioso e destinado a
explodir.
• Isso se desprende de um discurso desenvolvido
(o discurso do capitalista). Mas o que é um discurso desenvolvido
para Lacan? Depois vai falar em lógica subdesenvolvida. Outra
interrogação para muitos.
• Diz: quando um discurso está suficientemente
desenvolvido, alguma coisa, da qual nada se sabe, e que tem relação
com o que chamou do hsing, da natureza, e ming, decreto
do céu, causa interesse. Em nosso campo, isso é o sintoma:
O sintoma: é por ele que vocês se orientam, todos
vocês. A única coisa que lhes interessa e que não
e um completo fiasco, que não e simplesmente inepta como informação,
e aquilo que tem o semblante de sintoma, isto é, em principio,
coisas que nos dão sinal, mas das quais não compreendemos
nada. É só isso que há de seguro: há coisas
que nos dão sinal e das quais não compreendemos nada [pg.
49].
• Por fim, nisso da natureza, no sintoma que
não funciona, tem algo de insatisfatório.
Notas:
1. Greve, vem do francês grève,
terreno de areia ou cascalho a beira do mar ou beira-rio. Era na Place
de Grève (hoje Place de l'Hôtel-de-Ville), na margem do
rio Sena, e Paris, onde se reuniam os trabalhadores sem emprego ou insatisfeitos
com seu trabalho, deu origem a palavra greve.
2. Na minha pesquisa, encontrei que Yi é justiça,
e faz parte de dois conjuntos de conceitos fundamentais: o Sizi, com
quatro elementos: (Zhong (忠, lealdade), Xiao (孝 , a piedade filial),
Jie (节, continência) e o Yi, e também do Wuchang, com cinco
elementos: Ren (a Humanidade), Li (ritual), Zhi, (conhecimento) e Xin
(integridade) e Yi (justiça). Podemos equivaler o responder com
imparcialidade, de Lacan a justiça
3. Cardoso, Maurício José d’Escragnolle.
Retorno sobre a influência de Saussure sobre Lacan. Artigo publicado
na revista Analytica (São João del Rey), v.1, n.1, de junho/dezembro
de 2012,
4. Na obra Aspectos da Teoria da Sintaxe, publicada em
1965, Chomsky define como competência o conhecimento que o falante-ouvinte
possui da estrutura da língua e desempenho como o uso concreto
que ele faz da língua, mas o considera uma realização
imperfeita oriunda de fatores físicos e psicológicos.
5. O matema deste discurso foi apesentado na conferência
de Milão, em 1972: http://espace.freud.pagesperso-orange.fr/topos/psycha/psysem/italie.htm
|
Contribuição
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
1º de setembro/2020
Lacan não tinha o costume de batizar
cada uma das aulas de seu seminário com um título. Deduzo então
que cada um dos títulos das aulas constituintes de seus Seminários
seja coisa de seus editores. Não é má ideia! Ajuda o
leitor a situar-se no tema a ser desenvolvido.
Neste 3º capitulo pareceu-me conveniente modificá-lo, justamente
para dar uma noção mais precisa do tema a seguir, pois,
nele, Lacan, para os linguistas, é quase só elogios. Então,
o que proponho é substituir o proposto "Contra os Linguístas",
por O contra dos linguistas. O que Lacan faz, neste momento, é
valer-se da crítica que lhe fazem os linguistas para dizer o que
pretende: a importância da metáfora na construção
da linguagem.
A crítica dos linguistas, na verdade, de alguns linguistas,
é que Lacan, da linguística fazia um uso apenas metafórico.
Uma das justificativas para tal, está na diferença entre
sei a que me ater e sei onde me posicionar.
Parece-me como se o importante fosse o objeto da observação,
mais do que a posição do observador. O discurso da ciência,
diz ele, repudia esse onde me posiciono. É porque a hipótese
não se comprova que Newton teria criado a expressão hypotheses
non fingo; ele não a simula porque, enfim, como diziam os
escolásticos, ex falso sequitur quodlibet,
de uma premissa falsa podemos concluir uma apódose verdadeira.
O cientista precisa ter a coragem de abrir mão da hipótese
quando se comprova errada.
Por outro lado, o importante é ater-se ao objeto em questão.
No caso, ao inconsciente. Daí sua formulação de
saber que o que se diz é o que não se pode dizer.
Lacan é socrático no seu só sei que não
sei. Para compreender o inconsciente há que valorizar o significante
na construção da linguagem, pois não há
metalinguagem, e é pelo referente nunca ser o certo que se constrói
a linguagem.
Estamos todos lembrados de Lacan tomar suas bases na linguística
de Saussure, invertendo seu signo linguístico, mas mantendo,
porém, o valor da imagem acústica do significante e identificando
esta imagem com o Real impossível de designar. É na busca
de tornar possível esse impossível que se forma e desenvolve
a linguagem, mesmo embora essa linguagem esteja prenhe de enganos. E são
justamente esses enganos que o levam a buscar apoio na Teoria das Descrições,
de Russel: é porque as descrições do objeto são
sempre enganosas, como mostra a lógica da linguagem-objeto, que
nunca estamos certos sobre o referente.
É então que Lacan lembra de suas aulas de chinês,
da função metafórica dos ideogramas. Pois bem,
como eu não sei chinês, e meu conhecimento dessa língua
é apenas enciclopédico, minha crítica fica sempre
com uma dúvida. Quando ele está falando da ação,
na parte 2, falando da inação, do wúwéi,
無為 [onde 無 quer dizer
não e 為 traduz-se por para],
diz que todas as palavras [em chinês] são
monossilábicas, enquanto a enciclopédia diz que sim,
que o chinês é considerado uma língua monossilábica,
porque cada sílaba tem um sentido, mas as palavras, em geral,
ela acrescenta, são dissilábicas, aliás como vemos
em seu próprio exemplo. Quando a escrita foi estabelecida, na China,
por imposição do imperador Qin Shi Huangdi, no terceiro século
a.C., os dialetos permaneceram e, para um mesmo signo, ideias, sentido e
pronúncias diferentes foram mantidas, e o valor final para sua compreensão
vem dado pelo sentido do tema da conversação. É a isso
que é preciso ater-se.
Em português, também acontece algo assim. A mesma palavra,
com a mesma pronúncia, pode ter sentidos opostos, dependendo
da entonação e do contexto. Formidável
é um exemplo: pode significar tanto algo maravilhoso, como algo
desprezível, dependendo do que ela é for mi, como
canta Charles Aznavour. Com a palavra bárbaro
acontece o mesmo, assim como com tantas outras. E sobre a importância
do valor silábico, lembrei de um exemplo de Freud, quando quer
lembrar do nome da capital de Monte Carlo e a palavra não lhe
vem à consciência, ficando retida na memória. Em seu
esforço para lembra desse termo, lembrou-se do Rei Alberto, de
suas façanhas, de seu grande amor pelo mar que resultou naquele
importante museu oceanográfico, construído sobre o penhasco,
e de cujas janelas sempre se vê o mar. Lembrou também,
junto de Monte Carlo, de Piemonte, Albânia (logo substituída
por Montenegro), mais Montevidéu e Cólico. Reparou então
que quatro das cinco palavras continham a sílaba mon,
sem nenhum significado, mas cujo reconhecimento foi o suficiente para lembrar
o nome da capital: Mônaco. A sílaba final estava em Cólico.
Mas lembrou também que Mônaco é a palavra italiana
para Munich, que em português dizemos Munique,
cidade que estava ligada a um episódio de sua vida ao qual atribuiu
a função inibitória da lembrança.
Na parte três, Lacan trata do discurso do capitalista,
no qual, a partir do discurso do mestre, há uma inversão
entre os lugares do semblante e da verdade.
As consequências têm a ver
com a relação do sujeito, $, com o gozo,
a, o que, a bem dizer, interfere no propósito
primeiro de um discurso que é o de fazer laço social,
pelo menos o laço social que se espera de uma análise, na
qual o reconhecimento do outro esteja em primeiro plano. O exemplo que
aí nos dá é o de Nixon, uma espécie de máscara
do verdadeiro Houphouët-Boigny, esse político, presidente
da Costa do Marfim, que construiu uma fortuna de algo entre sete e onze
bilhões de dólares às custas da miséria de
seu país. Richard Nixon, em todo o caso, diz-se, foi analisado,
o que bem mostra os efeitos de uma análise levada a efeito sob o
signo da perversão; e estou dizendo perversão onde Lacan
diz tratar-se de algo da ordem do incurável.
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SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não
seria do semblant
17 de feveiro de 1971
IV. O Escrito e a Verdade
Contribuição
de
Maria da Glória S. Telles da Silva
15 de setembro/2020
• Lacan
inicia essa aula apresentando uma formulação de Meng-Tzu
(Mêncio) escrita no quadro-negro.
• Ele segue ocupado com a questão: qual
é a função da escrita?(pg. 52)1.
Sobre a inscrição, dirá que ela designa o seguinte:
Tudo o que está
sob o céu [T’ien hsia], não é outra coisa
que a designação da fala, [yen, que pode ser
entendida como a natureza], a natureza do ser falante (pg.54),
que se identifica pela linguagem, e que em relação à
natureza do animal, tem uma diferença infinita. Quanto aos
efeitos do discurso que está sob o céu, destaca a função
da causa, que é o mais-de-gozar. E os ideogramas tse
ku, refere-se a em consequência da causa.
• Nesta aula, sua preocupação
é com a causa.
• Aí, Lacan
novamente afirma que a linguagem adquire sua importância, na medida
em que tudo a que se refere é sempre de modo indireto, ou seja, o
mesmo que disse na aula anterior a respeito do uso metafórico da linguagem.
•
Faz uma critica ao livro The Meaning of Meaning2,
O sentido do sentido (1923), do educador Ivo Armstrong
Richards e do lingüista Charles Kay Ogden, ambos ingleses, que,
sustenta o princípio, a partir do positivismo-lógico, de
que o texto tenha um sentido apreensível (pg.54)
e que uma coisa que não tem sentido, não
pode ser essencial no desenvolvimento de um discurso (pg. 55), logo,
não podemos tirar proveito do que, a priori, não tem sentido.
Ora, Lacan mostra que se assim fosse, primeiro que não mais poderíamos
nos valer do discurso matemático, que, de todos, é o desenvolvido
com maior rigor. E, lógico, em nosso campo, se déssemos
valor a esse princípio perdemos fio da meada [pg.55].
• Daí
dirá que o essencial é atentar à função
do escrito.
• Situa, então, o discurso do analista
como sendo a lógica da ação, da ação
do analista, logicamente, e diz que o fato de ter escrito o discurso é
o que fez muitos não entenderem o que estava ali. Aí faz
uma diferença entre o escrito e a fala. Esta, a fala, abre caminho
ao escrito, e o escrito exigirá inserir nele uma fala para que
possamos entendê-lo.
• Lacan parece estar de acordo ao provérbio
em latim Verba volant, scripta manent, e diz que mesmo
que se escreva uma porção de coisas que ninguém entenda,
está escrito. E justifica assim o nome que deu ao seu
Escritos. Escritos que levam a grafos, a esquemas, que só
podem ser compreendidos com um discurso que tem seu estilo, sempre particular,
qual seja, fale, fale e combine coisas, pois é a fala que abre
a trilha desses grafos. Só o tagarelar abre a Caixa de
Pandora, de onde saem todos os dons da linguagem (pg. 58), dirá
Lacan. E agrega que, como a função definida pelo discurso
analítico não é livre, mas ligada por condições
que são as do consultório analítico, cujo motor está
ligado ao Sujeito suposto Saber, que define, não
só a transferência, mas o fato de supor que o psicanalista
sabe o que faz.
• No seguimento de diferenciar o escrito da
linguagem, Lacan lembra que o escrito é segundo, vem depois da
linguagem falada, mas que só se constitui a lógica a partir
do escrito. Daí que pensar a relação3,
só é possível com a escrita.
a
b
•
Nesse modelo de escrita, predomina a lógica da dualidade, e Lacan
dirá que isso vem do modelo dos signos chineses yin e yang
(os princípios femino e masculino). Com o discurso analítico,
mais especificamente, a função do falo, torna insustentável
a bipolaridade sexual. O falo não se refere tanto a representar
a falta de significante (como alguns acreditam, diz Lacan), mas a sua função
de fazer obstáculo a uma relação, e esse obstáculo
se refere a sua relação com o gozo, que nada tem a ver com
a função fisiológica sexual, mas desse gozo que tem
relação com o real: o gozo feminino. Volto ao que Lacan disse
na segunda aula: para os homens, a menina é o falo, e é
isso que os castra. Para as mulheres, o menino é a mesma coisa, o
falo, e ele é também o que as castra [pg.33].
• A inscrição
do falo está diretamente associada a passagem do SER ao TER, sendo
essa passagem condicionada à castração, que é
o instaura a lei sexual, substituta de tudo que está no campo
da relação sexual. Esta lei, diz Lacan, é coerente
em todo o registro do que se chama desejo e do que se chama proibição.
O proibido é o que aciona o desejo.
•
Da questão falo, desejo, lei sexual, Lacan desliza para mito freudiano
do Totem e tabu, e vai valer-se do esquema das proposições
universais e particulares, afirmativas e negativas de Chalrles Sanders
Pierce para abordar, de forma lógica, a questão de não
há um universal da mulher, logo, o [pg.64]. Logo,
o mito Totem e tabu, de um pai da horda que goza de todas as mulheres,
está fundado sob a estrutura da ficção. Como, segundo
J. Bentham4, a verdade tem estrutura
de ficção, temos ai uma verdade.
•
Encaminhando para o final da aula, traz a questão da verdade:
de onde se interroga a verdade? É que a verdade
pode dizer tudo o que quiser. É o oráculo. [pg.66] Lembra
o seu escrito A coisa freudiana, onde já havia
enunciado que a verdade fala eu.[pg.66] No referido
texto, Lacan formula um pouco diferente. Lá escreve: eu, a verdade,
falo.5 Isso tudo é
para chamar a atenção de que só temos acesso a verdade,
ou melhor, só podemos dizer que algo é mentira ou verdade,
a parir do escrito, pois quando se fala, é muito difícil
apontar a contradição. Na fala, a verdade só irá
aparecer desencadeada, ou seja, no momento em que ela irrompe da cadeia
discursiva como, por exemplo, via lapsos, ou atos falhos.
• E vai
concluir com uma pontuação interessantíssima. A
liberdade só existe e se justifica pela inexistência da relação
sexual. O desejo insatisfeito está sempre a impossibilitar a conjunção
perfeita do homem com a mulher. Diz assim: Se houvesse um homem para
quem A mulher existisse, seria uma maravilha, teríamos certeza
de seu desejo. [pg.70] À essa elucubração feminina,
responde-se com a formulação romântica Era fatal,
estava escrito! Ou seja, isto só existe no escrito.
_____________
Notas:
1. Por isso o interesse de Lacan nos ideogramas
chineses, pois eles são sinais gráficos que representam
palavras ou conceitos. Não é uma leitura direta.
2. O significado do significado: um estudo da influência
da linguagem sobre o pensamento e da ciência do simbolismo (1923),
livro de CK Ogden e IA Richards. Richards apresenta uma teoria contextual
de Signos: que Palavras e Coisas estão conectadas por meio
de sua ocorrência junto com as coisas, sua ligação
com elas em um 'contexto' em que os Símbolos passam a desempenhar
um papel importante em nossa vida [até] a fonte de todo nosso poder
sobre o mundo externo(47). Neste sistema de contexto, Richards desenvolve
uma semiótica tripartida - símbolo, pensamento e referente
com três relações entre eles (pensamento para símbolo
= correto, pensamento – referente = adequado, símbolo– referência=
verdadeiro) (11). Símbolos são aqueles signos
que os homens usam para se comunicarem e como instrumentos de pensamento,
ocupam um lugar peculiar (23). Toda simbolização discursiva
envolve [...] entrelaçar contextos em contextos mais
elevados (220). Portanto, para que uma palavra seja entendida é
necessário que forme um contexto com outras experiências.
3. Uma relação é um
vínculo ou uma correspondência. No caso da relação
matemática, trata-se da correspondência que existe entre
dois conjuntos: a cada elemento do primeiro conjunto corresponde pelo
menos um elemento do segundo conjunto. Quando a cada elemento de um conjunto
corresponde unicamente um ou outro, fala-se de função. Isto
significa que as funções matemáticas são sempre,
por sua vez, relações matemáticas, mas que as relações
nem sempre são funções.
4. Filósofo e jurista inglês (1748 – 1832),
5. Lacan, J. La cosa freudiana . In: Escritos.
Siglo Veintiuno Editores, Argentina,1987.
|
Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
15 de setembro/2020
Lacan continua, neste capítulo, o relato
de seus amores com o chinês. Ajuda-lhe a ressaltar a importância
do escrito frente a sua interpretação particular da linguagem.
Digo particular porque, da langage, o Petit Robert diz
ser um sistema de signos vocais (parole) e, eventualmente, de
signos gráficos (écriture). Sim, os signos gráficos
são eventuais, mas não excluem o escrito da linguagem.
O registro disso me parece importante justamente para reforçar a
importância da escrita.
No segundo logograma da primeira frase do mestre Meng, 下, tiān,
Lacan traduz esse ideograma como parole, a fala, mas
também, como ele mesmo diz mais adiante, pode ser traduzida
como linguagem. Aliás, toda a frase da primeira coluna
da direita
pode ser lida como A linguagem do mundo também
é.
Em todo o caso, o importante é que o escrito serve como
uma referência estável, tal como reza o ditado medieval,
verba volant, scripta manent. E uma variante desse
mesmo brocardo é muito exemplificadora:
Sit verbum vox viva licet, vox mortum
scriptum,
scripta diu vivunt, non ita verba diu.
(É verdade que a palavra é
viva voz e que o escrito é voz morta,
Mas o que é escrito vive muito
e o que é dito, nem tanto.)
A importância da linguagem é que
tudo o que se refere a ela, vem de um modo indireto. Haja visto a dificuldade
com as traduções: o que na tradução brasileira,
e ao espanhol também, 則故, aparece como Tse ku,
na versão francesa, de Staferla, aparece como Zé
gù, uma versão mais próxima da pronúncia
atual.
Então, como parece impossível dizer exatamente
o pretendido, o escrito fica como uma referência fixa sobre a
qual se pode discutir. Para Lacan, em Zé gù trata-se
da consequência [則] da causa [故].
Mas gù também pode ser traduzido por portanto,
o que deixa o conjunto sem sentido, enquanto para causa, motivo, o
chinês usa os ideogramas原因,Yuányῑn,
formado por 原,Yuán, original,
e por 因, Yῑn, porque.
Daí que a segunda
Coluna também pode ser traduzida como
então acabou.
2.
Na parte dois começa dizendo que o discurso do analista
é a lógica da
ação e
que é difícil de entender justamente
por estar escrito, afirmando que a fala abre o caminho para o escrito.
Pois foi buscando um exemplo disso que lembrei da construção
da Torá: Quando Moisés a recebeu no monte Sinai,
uma parte chegou por escrito e outra por via oral, que não se podia
escrever, sendo repetida, de geração em geração,
por 400 anos, até ser compilada na mesma língua em que a
Torá foi escrita, a hebraica, constituindo
a parte do Talmude conhecido como Mishná, que contém
a lei fundamental. As discussões sobre esta geram a Guemará,
que são as opiniões e os ensinamentos dos antigos sábios.
Neste exemplo, também usado por Lacan alguns anos após este
Seminário, em 1978, parte-se de um escrito. Nós, aqui, também
estamos partindo de um escrito; melhor, estamos partindo de uma fala,
sobre um escrito, que gerou outro escrito, e outra fala.
Tempos atrás, quando me detive neste tema das origens,
imaginei também que se partia de um escrito: imerso na natureza,
o homem começou a construir sua cultura lendo os rastros deixados
pelos animais e mesmo pelas intempéries. Membro da espécie
animal que é, quis deixar rastros também, ou, quiçá,
escondê-los atrás de outros mais sofisticados, e para isso
inventou a escrita. Daí, à Babel, um passo.
A psicanálise propõe um caminho inverso: com a
regra analítica busca-se os rastros escondidos. E isso é
possível graças a livre associação. Lacan
a toma como falácia, porque sabe que ela não é
livre, mas não podemos esquecer que quando Freud a propôs,
ela veio no sentido de ser livre de uma imposição, não
era mais a hipnose. O analista não proporia nenhum estímulo.
Antes, atenderia a indicação de Anna O.: - Deixe-me
falar! Esse é o sentido freudiano da livre associação.
Mas Lacan, leitor de Freud, lembra que as associações são
ligadas. É interessante que, para chegar a isso, ele tome os termos
freudianos de energia livre, própria do sistema ics,
e de energia ligada, própria do sistema cs/pcs.
Quanto à transferência possibilitadora dessas associações,
Lacan menciona uma suspeita de que o SSS seria uma base insustentável
para ela. Pois estou de acordo com ele. Também acredito que
o SSS seja uma boa base para a transferência, embora minha argumentação
seja um tanto diferente da dele: entendo que, para o analisante, a
suposição seja de que o analista sabe dele (e muitos
acreditam que devam corresponder a esta expectativa), enquanto que
o saber do analista é, ou deveria ser, da teoria analítica
que lhe serve, não para reencontrá-la no discurso do
analisante, mas sim para possibilitar ao analisante suas próprias
descobertas concorrentes ao desser, ao desêtre.
3.
Neste caminho, há como que um tropeço na questão
da sexuação. As diferenças em torno ao falo não
terminam de gerar novas questões. Como diz Lacan, não
por acaso justamente na parte três, a linguagem tem seu campo
reservado na hiâncias [na abertura] da relação
sexual, tal como o falo a deixa aberta. E a continuação
de sua frase é surpreendente: o que ele [o falo]
introduz não são dois termos que se definem
pelo masculino e pelo feminino, mas a escolha que há entre termos
de natureza e função muito diferentes que se chamam
ser e ter. É por aí que passa a castração
simbólica.
|
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não
seria do semblant
10 de março de 1971
V. O Escrito e a Fala
Contribuição
de
Maria da Glória S. Telles da Silva
29 de setembro de 2020
•
Não é por acaso que no título dessa aula, o escrito
está colocado antes da fala. Lacan já havia dito que a
fala é primeira e depois vem o escrito. Nessa aula, Lacan parece
apontar que essa relação é um pouco mais complexa
do que parece. Estamos sempre as voltas da questão: o que vem primeiro,
o ovo ou a galinha?
•
Como se relacionam essas duas ordens de representação?
Essa parece ser o eixo dessa aula. Vai examinar a questão de como
a leitura de um escrito tem influência na criação
de uma língua. Para tanto, examina a relação da língua
japonesa, e seus ideogramas, com a língua chinesa. O diferente modo
de escrita leva a diferente pronuncias, logo, gera uma fala diferente.
Afirma que nunca falamos senão a partir da escrita
[pg.86] e, indo ao grão da questão, aponta a uma relação
dialética entre fala e escrito, onde é possível
que seja na leitura do que está escrito – lembrem que Lacan diz
que o significante está na natureza – que se geram palavras, ou
seja, se gera mais fala. Assim disse:
Por ser a
representação da fala, (...) a escrita é algo
que se constata não ser uma simples representação.
Representação também significa repercussão,
porque não é nada certo que, sem a escrita, houvesse palavras.
Talvez seja a representação como tal que cria essas palavras.
[pg.84]
•
Lacan inicia essa aula examinando a relação da fala com
o que chamou acoisa. Alerta que o ato de falar é indicativo
de que a coisa (em si) da qual eu falo esteja ausente, ou seja, desde
o efeito da castração quando, perdido a coisa, o objeto pequeno
a, fica a marca dessa ausência que Lacan escreve como acoisa,
tudo junto.
• Questiona o Dasein heiddegeriano, como
presença do Ser, já que, para Lacan, a única
maneira de ser aí é colocar-se entre parênteses.
[pg.72]
•
Leio nesses comentários de Lacan sua a aproximação
a esse conceito hegeliano da Aufhebung, a superação
conservadora, que aponta que a essência da coisa está ali,
mesmo na sua ausência. Mas, só se há ausência,
outra coisa, a palavra, pode surgir. Nunca falamos senão
de outra coisa para falar da acoisa. [pg.72] Diz Lacan. E afirma:
a fala sempre ultrapassa o falante, o falante é
um falado
[pg.73]
•
Tudo gira em torno de como representar esse furo que está no
nível da acoisa, já que nunca podemos falar da
acoisa de modo direto.
•
E, conclui a parte 1 da aula dizendo que a acoisa, justamente
não se mostra, se demonstra. [pg. 73] Daí seu
valor a escritura.
•
Lembra, então, o grafo da Subversão do Sujeito
para dizer que se a escrita serve para alguma coisa, é justamente
na medida em que é diferente da fala. Escrita e representação
de palavras, [pg,79] e lembra que já Freud havia indicado
algo disso com sua Wortvostellung (representação
de palavra), porém, Lacan diz que há uma diferença
em relação a Freud, na medida em que para Lacan a representação
de palavras é a escrita. [pg.80]1
•
A escrita tem a capacidade de, numa única demonstração,
conter diversos elementos que compõem, que presentificam, pelas
letras – que ele diz que é o cumulo do escrito [pg.76]
–, a lógica da existência do ser. Mas a escrita, necessariamente,
vai repercutir na fala, que só pode, diacronicamente, interpretar
o escrito. Mas nem tudo não se pode escrever. Daí sua afirmativa
de Lacan de que não há relação
sexual, já que esta é a própria fala, mas
não há nenhum modo de escrevê-la. [pg.77]
•
E por quê demonstrar? Muitas vezes se mostram coisas que as pessoas
não vêem. Daí que vai, no final da aula, remeter
ao texto da Carta roubada, de Poe (que ele prefere chamar de a carta
não reclamada). Há coisas que estão aí,
mas não podemos vê-las. A carta, recebida pela rainha, é
tomada como sinônimo do falo que circula, do seu conteúdo
nada sabemos.
•
Para dizer do quanto nada sabemos de como escrever a relação
sexual, Lacan faz um paralelo com a escrita do campo gravitacional de
Newton. É algo que sabemos que existe, mas não vemos. Diferente
do campo eletromagnético que gera imagem. Porém, Newton
escreveu uma formula para descrever o campo gravitacional o que permitiu
fazer uma série de proposições e cálculos
que gerou avanço científico. Com essa fórmula, foi
possível ir à lua.2
•
Sabemos do falo, esse significante que representa o desejo do homem,
ou melhor, representa o vestígio da coisa que, como se inscreve
como falta e gera, assim, o desejo, na medida que ele vai estar sempre
no lugar onde se supõem que completaria a relação
sexual e só aparece na própria fala para em seguida desvanecer.
• Escrever a relação sexual seria,
então, algo como fixá-la em uma fórmula. Assim
que esse passo segue como um desafio para a psicanálise.
_________________
Notas:
1.Uma das escritas que ainda não
foram plenamente decifradas são os glifos da Ilha da Páscoa
(Chile). Lacan cita o estudo de Alfred Métraux. Mais recentemente
(1996), o antropólogo americano Steven Fischer diz ter decifrado
textos dos pascoenses. Segundo Fischer, os escritos rongorongo
são uma espécie de canto cosmológico utilizado
pelos sacerdotes da ilha, no século 18. Durante seis anos, o antropólogo
estudou tábuas de escrita rongorongo guardadas em museus. Foi
o texto de uma tábua de 1,26 m por 6,5 cm, do Museu de História
Natural do Chile, que forneceu a Fischer os elementos para compreender
a escrita. O antropólogo chegou à conclusão de que
cada uma das partes em que se dividia a tábua, inclusive os ideogramas,
estava separada por um sufixo (parte da palavra que vem depois do radical
e que serve para flexioná-la). O sufixo era a representação
estilizada de um pênis, o que na língua rongorongo serve como
elemento aglutinador dos ideogramas - isto é, os liga uns aos outros
para dar sentido ao texto. Na primeira frase da tábua, um pássaro,
seguido de um pênis, de um peixe e de um sol, pode ser traduzida
como: Todos os pássaros copularam com os peixes e
de sua união nasceu o sol. (fonte: Folha de São Paulo,
14 de junho de 1996).
2. A teoria da gravitação
de Newton afirma que os corpos se atraem mutuamente em razão de
sua massa, mesmo que não estejam em contato direto. Foi com essa
ideia de ação a distância que Newton conseguiu dar
uma explicação para o “sistema do mundo” e a fórmula
é
|
Contribuição
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
29 de setembro de 2020
Introdução
Lacan sabe mesmo como épater le bourgeois.
Ora, perguntar se está presente quando fala em seu Seminário?
Verdade que 12 anos depois, em 1983, no filme Flashdance, de Adrian
Lyne, a personagem Alexandra Owens, interpretada por Jennifer Beals, uma
operária da indústria do aço que à noite vai
dançar em uma boate, sobre seu momento bailarina diz que é
como se ela não estivesse ali, como se não fosse ela. Um
momento de despersonalização? Não! Como diz Lacan,
trata-se da interpretação de uma ausência, trata-se
da abrangência da achose, cuja representação
é sempre difícil. Lembrou-me da representação
do zero: embora intuído ainda antes da era cristã, por babilônios
e astecas, que o representavam ou por um espaço vazio ou por um
desenho de um homem com a cabeça para trás, a representação
atual só apareceu, na Europa, no século X. A dificuldade
para sua aceitação devia-se ao fato de abrir caminho para
os números negativos, resultantes das subtrações.
Na achose, o que é subtraído é o petit
a. E, se ele não está, o que resta no lugar é o
ato sexual visto como castração. Alguns anos atrás,
40 anos atrás, ao criticar um artigo de um analista didata, da IPA,
no qual comparava os efeitos da análise, como os efeitos de ficar
da fila, esperando por atendimento, e que os resultados eram os mesmos, disse
de seu reconhecimento de que em sua análise não havia
lyse, não havia a lisina propiciadora da cura. Lacan o diz aqui
de uma maneira mais arguta: Anagramaticamente, ele diz que n’a lyse,
a menos que concerna à castração.
E o lero lero filosófico, se não
serve para muita coisa, diz ele, acabou produzindo o Dasein, a
clareira do ser, que ele diz traduzir-se ao francês
por présence, a presença. Então Lacan lembra
que, ao tratar da Carta Roubada, de Poe – antes de tudo um escrito
–, ele termina por jacular Mange ton Dasein, o que
deixou o Ministro em má situação. E esse ser-aí,
essa presença, ele o desencarna por meio da epoché,
que, para ele, é o equivalente a colocar entre parênteses.
Está bem, mas temos de lembrar que a epoché, é
antes de tudo, uma suspensão do juízo, um repouso mental que
pode chegar até a ataraxia. Mas que esse, enfim, é o jeito
de ser-aí. Persiste o recurso metafórico para dizer como
são as coisas e mais ainda as achose.
1.
Lacan diz aqui que, de certo modo, a escrita mais precisa é
a do grafo.
E isso é assim pq a fala pode apoiar-se
nela. O grafo permite que tenhamos uma percepção sincrônica
do todo do qual falamos diacronicamente. Quando falamos do significante
da falta no Outro [S(A/)], por sobre o grafo, vemos que ele não
é sem sem a fórmula da demanda [$<>D], por exemplo.
Para dizer da importância do escrito, Lacan lembra de James
Février e seus estudos sobre Palmyra, uma cidade situada no centro
da Síria, desde 2000 anos antes de nossa era, onde foram encontrados
textos de Armoritas, Arameus e Árabes, além de Palmyreano,
os quais permitiram ao historiador1
muitas leituras. Mal sabia Lacan que, nesse presente século, as maravilhas
dessa cidade foram quase todas destruídas, entre os anos 15 e 17.
E, claro, também lembra da importância, para tudo isso, da
geometria euclidiana.
2.
Se há pouco Lacan equivalia o verbo e a ação,
aqui, agora, ficará com São João. Afinal, a presença,
na qual está interessado, é logocêntrica.
E essa fala, à qual se refere, é como se tivesse
a força mágica de um abracadabra, não fosse o tempo
medido para tal em éons. Então, se existe relação
sexual, tem de ser na própria fala, porque, para escrevê-la,
ainda não se encontrou forma, uma esperança, contudo, não
abandonada por Lacan. Por isso cita François Jacob2,
um médico geneticista que ganhou o Nobel de medicina e fisiologia,
por seus estudos genéticos, em 1965. Ele descobriu nas bactérias
genes reguladores, capazes de controlar outros genes, os estruturais.
Enfim, tudo é animal!
3.
Lacan agora insiste com exemplos de escritas geradoras de fala,
e apoia-se nos estudos de Alfred Métraux3
que, em 1940, publicou o seu A Ilha da Páscoa, com
sua tentativa de decifração da escrita rongorongo
da língua rapa nui dos pascuenses, enfatizando
que não foi por não ter tido sucesso que não teve
importância. Muitos estudos seguintes apoiaram-se nos seus.
Um close das inscrições do Tablete
Pequeno de Santiago, mostrando partes das linhas 3 (embaixo) a 7
(acima). Os glifos das linhas 3, 5 e 7 estão de cabeça
para cima, enquanto os das linhas 4 e 6 seguem de cabeça para baixo.
Similarmente, ele também apoiou-se nos
estudos de Freud. Então dizer que Freud não concorda com
ele, é só uma piada, e de mau gosto. Quando Freud, em seu
estudo sobre o inconsciente usa a expressão representação
palavra, é para diferençar da representação
afetiva. Uma diferença importante para dizer sobre o que a repressão
tem poder de ação e onde é inócua.
Depois, quando se refere aos estudos Xu-Shen, autor do Shuō
wén Jiě zì [说文解字 – explicar palavras], diz
dos primeiros estudos sobre a estrutura dos caracteres chineses. Não
preciso dizer que a tradução desse seminário ao
português deixa muitas dúvidas. Verdade que a leitura dos
logogramas chineses, por Lacan, também. Então não
sei, se quando ele usa o signo wen [文] e o traduz como o signo
da civilização, ele está se referindo ao que é,
ou ao que ele pensa que é! Se tivesse que traduzir esse signo,
diria simplesmente texto. Mas reconheço que com a palavra
texto podemos dizer muitas coisas diferentes.
Em suma, importa o que está escrito. Como se lê, será
sempre uma outra questão. Verdade que Lacan diz da importância
da palavra para poder dizer do escrito: a palavra também tinha
que já estar disponível. Tempos atrás, escrevendo
sobre o assunto, disse que o escrito podia ser o rastro de um animal,
um cheiro, um desenho de estrelas no céu. Não por nada o
mestre quando fala desses passos, registra-os em éons. Para
exemplificar a questão da leitura, menciona a leitura japonesa
dos ideogramas chineses, pois a língua japonesa tomou os caracteres
chineses (Kanji) para sua escrita. Por isso, em japonês, há
duas maneiras de ler. Quando a pronúncia repousa estritamente sobre
o fonema do caractere chinês e não evoca em nada o japonês,
uma vez que não significa nada nessa língua, diz-se On-Yomi.
Mas há também uma tradução japonesa historicamente
fixada, na qual buscam dizer o que o caractere chinês quer dizer.
Essas duas escrituras, chamadas Kun-Yomi (Yomi = leitura),
coexistem, lado a lado em um texto. Os caracteres chineses são acompanhados,
redobrados, da escrita de sua pronúncia, logo de sua leitura. É
por isso que Lacan, em Lituraterre, escreve que no Japão o
sujeito está dividido, como em todo lugar, pela língua, mas
um de seus registros pode se satisfazer com a referência à escrita,
e o outro à fala. O On-Yomi é a referência
à letra, enquanto que o Kun-Yomi faz referência ao Outro
da fala.
Depois dessa diferenciação, Lacan
dirá que não há metalinguagem porque sempre falamos
a partir da escrita.
4.
Por fim, uma breve alusão ao seu texto sobre A carta roubada,
na qual equipara a carta ao corpo da mulher, ao corpo da Rainha, por
que não!
__________________
Notas:
1. James Février: Histoire de l’écriture,
Paris, Payot , 1948.
2. François Jacob, O Rato, a Mosca e o Homem. São
Paulo, Companhia das Letras, 1998, 160p.
3. Alfred Métrux. A Ilha da Páscoa. E. Fermi,
1940 (1ª ed.).
|
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não
seria do semblant
17 de março de 1971
VI. De uma função para não
escrever
Contribuição
de
Maria da Glória S. Telles da Silva
20 de outubro de 2020
Não
existe nenhum caminho lógico
Para a descoberta das leis do Universo;
O único caminho é a intuição.
ALBERT EINSTEIN
|
•
Nesta aula, Lacan ocupa boa parte dela retomando seu seminário
A carta roubada, de 1966, no caminho de examinar a função
do falo, articulada a um certo discurso [pg.90], buscando sua relação
com a letra. Segue ocupado em estabelecer a relação da fala
e do escrito e, mais especificamente, ao que há de especial
na função do escrito em relação a qualquer discurso
[pg. 93].
•
Para o discurso, diz Lacan, uma estrutura de quatro elementos pode sustentar
a possibilidade da sua inscrição. Isso é o
que ele fez quando escreveu os seus quatro discursos. Já a inscrição
da letra, que marca a impossibilidade de escrever a relação
sexual, parte do fato que da letra/carta, nada sabemos, a não
ser que ela tem um sentido, que é chegar ao seu destino, mesmo
que, em última instância – e isso serve para qualquer carta
– nada se compreenda dela. O importante é o efeito que a carta produz
ao passar de mão em mão. Nada se sabe de seu conteúdo,
apenas que a carta feminiza, ao declarar aquele que a possui, como um ser-em-falta.
Isso, na medida em que o que a possui nada sabe do que ali está
escrito, apenas sabe que detê-la lhe dá poder. Eis sua função
fálica. Esse nada saber da letra, equivale a condição
de alienação a esse significante da falta, o falo.
•
Sobre essa relação entre o nada saber e o como escrever
a relação sexual, faz Lacan se aproximar da interrogação
sobre se tudo o que se pensa está fundado na lógica, que
gerou o raciocínio matemático, ou se resta uma intuição
original da qual nada sabemos dizer?
•
Dessa distinção entre intuir e raciocinar, Lacan vai aproximar
a questão do espaço euclidiano, fundado nas três
dimensões (ALP) para dizer que este pode sustentar um discurso,
na medida em que podemos tomar até quatro elementos no espaço
e verificar que podem estar a uma distância igual um do outro. Porém,
dirá Lacan, se tomamos cinco pontos, a teoria euclidiana não
se sustenta mais. Daí, é preciso invocar uma quarta dimensão
espacial, algo ainda não provado, sendo, até o momento,
apenas intuído.
Hipercubo,
conhecido também como Tesseract, que é delimitado
por figuras tridimiencionais.
•
Para além do tetraedro, a intuição
já tem que se apoiar na letra [pg. 95], dirá Lacan.
O que isso quer dizer? Suponho que essa letra a que se refere Lacan é
justo esse significante que não podemos designar para definir A
mulher. E, faz uma conexão entre a carta de Poe - com sua função
feminizante, já que a carta existe para uma mulher (a Rainha),
tornando impensável dizer A mulher -, com o mito escrito
de Totem e Tabu, que também remete a impossibilidade de que o pai
possua todas as mulheres. Essas duas impossibilidades,
assim como a relação sexual que não pode ser escrita,
aponta a essa estrutura que está para além das dimensões
espaciais reconhecidas, e que regem a lei que nos submete a castração,
essa que interdita o gozo sexual, produzindo a fala.
•
O gozo sexual só extrai sua estrutura da interdição
que incide sobre o gozo dirigido para o próprio corpo...para o
corpo do qual saiu o próprio corpo, ou seja, o corpo da mãe[pg.101].
Aí coloca Lacan a relação entre interdição/gozo/estrutura/e
o impossível da escrita.
•
Nesse impossível de escrever A mulher, essa que não
existe, temos justamente a letra, que reduzida a sua condição
de operador lógico, é inscritível e pode gerar uma
formulação. Aí Lacan faz toda uma caminhada pelas
categorias proposicionais de Aristóteles, para invocar sua função
lógica e destacar o não todo x cumpre a função
de x. Isso que não se pode escrever da função
de x vale para afirmar que existe o inscritível e que o que se escreve
– daí a função essencial na origem da escrita –
só responde ao não-mais-que-um [pg.100], ou seja,
só escrevemos e só somamos de um em um.
• Segue
afirmando que a função mulher [p.100], que tem relação
com o gozo sexual, é inscritível. Esse é o elo que
liga o mito do pai da Horda (o pai que goza de todas as mulheres, o que
é impossível) - um mito escrito -, com o gozo sexual que
não pode ser escrito, apenas interdito. Daí deriva a importância
de interditar esse gozo do corpo da mãe, instaurando a única
lei que institui todo o alcance da fala: a castração.
|
Contribuição
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
20 de outubro de 2020
Introdução
A abertura dessa aula é dedicada a chamar a atenção
dos alunos para a importância da leitura de A Carta Roubada,
de Poe. Para tanto, ele começa fazendo os estudantes rir. É
como se ele seguisse a orientação de Balthasar Garcian
y Morales: Pense como a minoria e fale como a maioria.
1.
Ocupado com a função do falo, a atenção,
aqui, está dedicada a um detalhe da descrição –
feita pelo Chefe de Polícia –, do Ministro D: who dares all
things, those unbecoming as well as those becoming a man. Na tradução
de José Paulo Paes, que a tradutora do Seminário muito
teria aproveitado, se a conhecesse, a descrição do ladrão
está assim: [um tipo] que se atreve a tudo, tanto ao que
é próprio quanto ao que é impróprio de um homem.
Se a formulação deve ser tomada em bloco, conforme a recomendação
do Mestre, então a tradução de Paes obedece mais
ao nosso jeito de falar, circunstância em que a dignidade sempre
vem na frente, como um ideal. Quanto ao verbo To dare, contudo, estou
de acordo; ainda que atrever-se esteja correto, ousar é
sua primeira tradução e, no caso, a de maior pertinência.
Embora sinônimos, atrever-se deriva de trĭbŭĕre
sibi, atribuir-se (a capacidade de fazer algo), enquanto ousar
deriva de audērĕ, desejar, querer, como em audērĕ
sapere. A impropriedade apontada tanto pelo Prefect, como por
Lacan, não se refere tanto ao ousar as things, mas, sim, antes,
a ousar, quer dizer, a desejar all tings. O problema, que lhe afeta
o caráter, está em querer tudo, pois reparamos o destaque
dado por Lacan à importância de poder mirar, o que pressupõe
um alvo. Depois de roubar a carta, o Ministro prolongou-se
na sua posse por dezoito meses, findo os quais ele já nem se lembrava
dela. Lembrar-se-ia apenas quando a Rainha, agora devolvida à sua
posse, mudasse de posição. Uso o verbo prolongar valendo-me
da sugestão de Lacan ao criticar a tradução de Baudelaire
de purloined por volée, roubada,
quando valoriza o prefixo pur que aparece também, por exemplo,
em purpose, propósito e também do francês
antigo loigner, mais o prefixo latino pro, que permite
dizer, em português, carta prolongada, o que dá a
entender a importância do en soufrance da carta, mas que certamente
leva a perder o impacto do roubo. É preciso saber no que mirar.
Por isso, título é uma coisa, conteúdo é outra.
Assim, quando nos defrontamos com um ditado do tipo vive mais quem ousa
mais, seria preciso acrescentar o alvo em questão. Há também,
a propósito, uma certa similaridade acústica entre ousar
e ousia. Embora Lacan não faça aqui esta
transposição, mais adiante, no último apartado desta
aula, ele irá dizer que a importância da ousia, quer
dizer, da essência, está na lógica, na discriminação
lógica.
2.
Examinada no texto de 1956, a tradução do título
de Poe, por Baudelaire, volta a ser discutida, de forma mais clara, nesta
aula de 1971, quatorze anos depois. O que teria permitido a posse da carta,
pelo Ministro D, prolongada por tanto tempo? Como na física, Lacan,
ao tempo, associa o espaço e os estudos de geometria desenvolvidos
desde Euclides, ainda que dissociados dos conhecimentos filosóficos,
até encontrar-se com Luizen Egbertus Jean Brouwer, um matemático
holandês que valoriza a multiunidade. Há o um, e outro um,
e outro um; múltiplos um e não múltiplos de um. Mas
Brouwer é também um intuicionista, ainda que valorizando a
intuição de modo diferente do de Kant. O modo matemático
da polícia, preciso, examinando todos os pés de mesa, forro
dos estofados, cantos e frestas, não tinham ajudado a encontrar a
missiva. Ainda mais que a polícia, pelo fato de o Ministro ter escrito
um texto sobre matemática, acreditava que ele fosse também
um matemático. Mas não, o Ministro D era um poeta. A carta
purloined, ao contrário de escondida, estava à
vista, ainda que sob disfarce. É por poder ver o espaço desde
outro ângulo, que não o matemático, que Dupin, o detetive,
consegue perceber imediatamente o esconderijo, entre as pernas da lareira
(e não das ombreiras, como quer a tradutora). No lugar equivalente
aquele que, no corpo da mulher, se chama de Castelo do Santo Anjo.
É por usar um disfarce feminino, caracterizado também pela
letra, que o Ministro se feminiza, e também, por extensão, o
detetive que aproveita a situação para vingar-se de um desagravo,
sofrido em Viena, com aquele verso do Atreu, de Crébillon.
3.
Então, retomada a posse da carta, Lacan jacula: A Rainha
não se dá conta de que é quase fatal que fique louca
por esse ministro, agora que ela o detém, que o castrou, não
é? Para concluir que Isso é amor. Uma afirmação
só possível porque Lacan está pensando no
Totem e Tabu, de Freud, no seu entender um texto escrito para provar
que não se pode dizer A mulher. Trata-se, sim, de
todas as mulheres, e dizer que o pai possui todas as mulheres
é signo de uma impossibilidade. Em A carta roubada não
se trata de A mulher, mas sim de uma mulher. E Então
Lacan faz uma afirmativa, mais uma afirmativa, que leva à pensar:
A mulher, essa que não existe, diz ele na p.102,
é justamente a letra, a letra como significante
de que não há Outro [S(A)] (as traduções brasileira
e espanhola registram A barrado). Um ponto que gostaria de discutir com
vocês.
4.
Na última parte, apoiado nas categorias proposicionais aristotélicas,
Lacan dirá que a discriminação lógica
se dará entre uma afirmação universal, vale
dizer uma essência, uma ousia, e uma proposicão negativa
particular. Usa isso para ensaiar as fórmulas da sexuação
que melhor definirá, dois anos depois, em Encore.
E é bom esclarecer que a escrita algébrica de universal
afirmativa e de particular afirmativa
estão registadas de forma errada na edição
da Zahar, basta ler o texto.
|
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não
seria do semblant
12 de maio de 1971
VII. Lição sôbre Lituraterra
Contribuição
de
Maria da Glória S. Telles da Silva
03 de novembro de 2020
• Lacan começa
esta aula justificando o termo LITURATERRA1,
que a escreve, provavelmente no quadro negro, e toma como título
da aula. Dirá que inventou a palavra, mas, mesmo que legitimada
pelo dicionário de latim de Ernout e Meillert, o que o inspirou
foi o jogo de palavras, a aliteração que lhe vem aos lábios
e a inversão, ao ouvido [pg.105].
• Menciona, então, a Joyce, que faz esse deslizamento
da letterl2
a litter, da carta ao lixo. Isso me evocou uma passagem do romance
Finnegans Wake, de Joyce, quando a galinha Belinda3
encontra no monturo uma carta, todo esburacada, que é justo a carta
onde a história de ALP (Anna Lívia Plurabelle), a personagem
mãe, será contada. Penso que não seria equivocado
colocar esse escrito de Joyce no que Lacan chamou nesta aula de literatura
de vanguarda, a qual é fato litoral e não se sustenta
no semblante [pg.116]. FW é um texto que não tem significação
em si, mas o efeito dessa escrita é produzir novas escritas.
• Ainda as voltas com a carta, primeiro a de Poe
e agora a de Joyce. Lacan faz um importante destaque, não só
nesta aula, mas em todo este Seminário, a essa relação
carta/letra (lettre em francês tem esses dois sentidos).
E por que Joyce agora? Essa carta/letra esburacada, onde a letra foi apagada,
leva Lacan a relacionar litura (uma das palavras contidas no neologismo
de Lacan) com litoral.
• Já desde a aula anterior, e isso é
uma das marcas desse Seminário, Lacan passa a identificar a letra
pelo lado do real e não mais do simbólico, fazendo diferença
entre letra e significante. É pelo apagamento do traço
que o sujeito é designado, nos diz Lacan [pg.113]. Mas como
saber do traço se, apagado, ele não faz parte da cadeia significante?
De fato, a letra é o que apoia o significante, dirá. Apóia,
mas não está na cadeia. Precisa ser encontrado, destacado
no litoral, nessa linha, que demarca dois territórios distintos,
terra e mar, simbólico e o real. A letra porta um gozo que, ao mesmo
tempo em que algo se expressa via cadeia significante, aprisionada ao semblante,
também pertence ao real, e resta inacessível, gerando novas
produções. Depende da leitura do analista para que a letra
possa ser escrita. A letra é a matéria em suspensão,
retida, en suffrance, e que na ruptura do semblante,
ao escoar algo do gozo, possibilita que o analista faça uma leitura
dessa letra, fazendo aí sua inscrição. Algo como a
leitura que fez Lacan de sua visão ao sobrevoar a planície
siberiana.
• Introduz, então a ideia de que escrita é
ravinamento, ou seja, a passagem da letra deixa ravinas,
caminho para o escoamento de gozo. O significante enquanto semblante é
o que acolhe o gozo e sua ruptura libera-o. Nesta ravina, nestas marcas
deixada pelo rasura da letra, e desprendimento do gozo, ali pode se dar
uma nova inscrição. A escrita é, no real,
o ravinamento do significado [pg.114], diz Lacan.
• Também, nesta aula, retoma novamente a questão
do traço unário, tomado da leitura freudiana, que já
havia trabalhado na aula anterior. Este traço, responsável
pela identificação fundamental do sujeito, refere-se não
apenas a um elemento simbólico recalcado, mas, como diz Lacan, é
um céu estrelado. Este traço identificador do sujeito,
porta também elementos do imaginário e do real. E isso é
o que sustenta Lacan a dizer que nem tudo está escrito por um discurso
estruturado na lógica pura, mas que há um núcleo
que resta do lado da intuição (aula VI, pag. 93).
• O destaque desta aula está por conta da
diferença que faz Lacan entre fronteia e litoral. A fronteira demarca
dos territórios de um mesmo plano. Faz contraponto aos estudos
do biólogo Jacob von Uexküll4,
autor da noção do Unwelt (ambiente) e Innwelt
(mundo interno), que preconizou a ideia de que cada animal tem seu mundo
subjetivo próprio e deve ser compreendido em seu habitat. Ao caracterizar
que o ambiente é o reflexo do mundo interior, Lacan entende que há
uma ideia de adaptação contida entre essas duas realidades,
colocando a fronteira como um plano que pode se estender de um território
a outro, borrando o que demarcaria a separação entre dois
territórios distintos.
• Apresenta a ideia de litoral, colocando aí
a letra. Não é a letra propriamente o litoral?
A borda do furo no saber (...) não é isso que a letra
desenha?[pg.109]. Entre gozo e saber a letra constituiria litoral [pg.110).
O litoral delineia o espaço de dois planos distintos, terra e mar,
e sua borda é de um movimento constante, não podendo ser fixado,
produzindo . No bojo dessa formulação Lacan traz uma importante
questão: como o inconsciente, efeito de linguagem, comanda essa
função da letra? [pg. 110]
• Ao estudar a escrita chinesa, compreendeu que traço
representa um mais além daquilo que ele desenha, incluído
aí o ato de fazer o traço que inclui o corpo de quem o faz.
• O mestre de Lacan na escrita chinesa foi o poeta,
filólogo e semiólogo chinês François Cheng. Com
ele, também estudou a pintura chinesa onde se encontra a ideia do
Traço Único do Pincel, do pintor Shitao do século XVII
que refere ser o traço a primeira manifestação
do ser, sendo uma unidade básica de sistema de vida.5
Ele diz: O traço não é uma simples linha. Com
a ajuda de um pincel embebido de tinta, o artista apõe o traço
sobre o papel. Por seu volume e sua leveza [...] pela impulsão
e ritmo que comporta, o traço é, potencialmente e ao mesmo
tempo, forma e movimento, volume e vislumbre6;
• Seu encontro e estudo da língua chinesa,
e da sua derivação, o japonês, o levou-o ao reconhecimento
mais radical de que o sujeito é divido pela linguagem, mas um
dos seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita,
e o outro com o exercício da fala [pg.117]. Daí a pergunta
que atravessa todo o Seminário deste ano aqui colocada assim:
• Será possível, do litoral, construir
um discurso tal que se caracterize, como levantei a pergunta este ano,
por não ser emitido pelo semblante? Essa é, evidentemente,
a pergunta que só se propõe pela chamada literatura de vanguarda,
a qual, por sua vez, é fato de litoral, e portanto, não
se sustenta no semblante, mas nem por isso prova nada, a não ser
para mostrar a quebra que somente um discurso pode produzir. Digo produzir,
expor como efeito de produção; esse é o esquema de
meus quadrípodos do ano passado [pg. 116].
Notas:
1. A base da aula deste Seminário é
um texto que foi publicado na Revista Littèrature, nº
3, em outubro de 1971, um número dedicado à literatura e
psicanálise. É também o texto de abertura do livro
Outros Escritos, que contém diversos textos
de Lacan, publicado em português pela Zahar Editora, em 2003. Esta
palavra,, inventada por Lacan, é um jogo com as palavras latinas
lino e litura (aquilo que num escrito se apagou
ou riscou para ficar sem efeito ou ilegível; rasura. Igual ao português)
e liturarius.
2. Em inglês, letter é carta e litter,
lixo.
3. Essa referência encontra-se no capítulos 5, 6,
7 e 8, os quais encerram o livro I de um total de IV, deste Romance, traduzido
no Brasil por Donaldo Schüler sob o nome de FinniciusRevém
e publicado pela Ateliê Editora, em 2001.
4. Jacob Johann von Uexküll (Keblaste, Estônia, 8 de setembro
de 1864 — Capri, 25 de julho de 1944) foi um biólogo e filósofo
estoniano de origem alemã. Foi um dos pioneiros da etologia antes
de Konrad Lorenz. Sua realização mais notável foi
a noção de Umwelt (meio ambient, o mundo subjetivo da percepção
dos organismos vivos, dos animais e do homem em relação ao
seu meio ambiente e de como eles o compreendiam. Postulava que cada animal
tem seu mundo próprio e que cada um deles tem que ser entendido no
seu habitat (meio em que vive). No livro UmweltundInnenwelt der Tiere
(1909), ele introduziu o termo Umwelt para denotar o mundo subjetivo
do organismo.
5. CHENG, F. (2012). “Lacan e o pensamento chinês”. In:
Lacan, o escrito, a imagem. Belo Horizonte: Editora Autêntica,
2012, p. 176.
6. Idem nota 5
|
Contribuição
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
03 de novembro de 2020
Da lama à beira das calçadas,
da água dos esgotos cresciam pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins
mais verdes que a esperança
(ou o fogo
de teus olhos)
FERREIRA GOULART, Poema sujo.
|
O texto desta sétima lição é
uma variação do que acabara de escrever para a revista Littérature,
n°3, publicada depois, em outubro de 1971. Trata de sua preocupação
com a contribuição da escrita para o avanço do conhecimento.
A originalidade de seu título mostrar-se-á, ao longo do texto,
tanto esclarecido como esclarecedor de suas ideias.
A inspiração de Lacan, para este título – Lituraterra
–, um substantivo capaz de predicar, vem de um dicionário etimológico
de latim: é a partir destes três vocábulos – lino,
litura e lituriarius – que ele lituraterrará.
O primeiro traduz-se por besuntar, cobrir e apagar;
o segundo, que, aliás, passa ao português tal qual, tem o sentido
de apagar o escrito, i.e., trata-se de uma rasura.
Ficarei devendo o terceiro, à espera do dicionário de Ernout
e Meillet que, a esta altura, deve estar transitando nos correios. Em todo
o caso, importa o efeito de rasura, a escrita como borrão, como rasura.
E, a seguir, quando diz que isso não tem nada a ver com littera,
a letra, isso só pode ser verdade em referência à
letra propriamente dita, pois littera, antes de tudo,
tem referência a notas escritas. Trata-se, permitam que me
repita, da escrita como rasura – quem sabe, uma rasura na natureza. No colégio,
quando aprendi a fazer redação, a professora pendurava um
quadro (versão ocidental de um kakamoto) com alguma figura
de paisagem ou natureza morta na parede e pedia para fazermos, antes, um
borrão. Ainda hoje uso o mesmo método, e quando tenho a oportunidade
de ver a página manuscrita de algum autor famoso, seu aspecto é
o mesmo, sempre um borrão, repleto de rasuras. Não por nada,
Lacan joga com a equi-vocação de Joyce,
quando ele desliza de letter para litter e, logo depois, para
publicação, Lacan dirá
poubellization, que se traduz por publixação,
e argumenta com as palavras de São Tomás de Aquino que, ao
final de sua obra, quando lhe perguntaram sua opinião sobre a mesma,
teria respondido que tudo não passava de sicut palea, era
como restos.
Seguindo com sua argumentação, lembra
sua conferência pronunciada em Bordeaux – Meu ensino, sua natureza
e seus fins –, em 20 de abril de 1968, um pouco antes do mês de
maio, como ele diz, quando tomou como premissa, sem querer fazer culturalismo
e menos ainda criticar a sociedade, que a civilização
é o esgoto. Aí, ele diz que a diferença do homem,
em relação a todos os níveis do reino animal, é
o extraordinário embaraço que lhe causa a evacuação
da merda, e recomenda que se leia, de Aldous Huxley, Adônis
e o alfabeto, com tradução em português pela Ed.
Hemus, no qual descreve um grande sistema de esgotos. Caso consigam esta
edição, com tradução de Edith Carvalho Negraes
e Daniel Martins Júnior, recomendo especialmente o ensaio intitulado
Hyperion a um sátiro. Nesta conferência de
1968, ele faz ainda uma comparação do homem moderno com o homem
selvagem: quanto mais moderno, mais esgoto.
Mas agora, nesta aula de 1971, o autor mencionado é Beckett,
o Samuel Beckett de Esperando Godot. Seu teatro, marcado pelo absurdo,
um absurdo que já estava presente em Rabelais, está construído
sobre os restos. Em Fim de Jogo, cuja análise publiquei em
Um elefante em Albany Street, os pais moram, litteralmente,
em latas de lixo. Lacan ainda considera, a propósito, a importância
da escrita de Rabelais, licenciosa, sarcástica, mordaz, que, condenada
no início do século XVI, inclusive por haver denunciado a
absurdidade de seu tempo, estava sendo lida agora, nos seus dias, e, de
passagem, revela seu método para a escrita de seus textos: cartas
abertas em que problematiza, a cada tanto, partes de seu ensino.
Enfim, seu Escritos abre com a análise de um conto que
gira em torno de uma carta cujo conteúdo ninguém conhece.
A importância disso, para Lacan, é a de mostrar como o escrito,
como mágica, por si só faz toda a peripécia
– uma palavra, aliás, muito bem escolhida para dizer de sua capacidade
de alterar o curso dos acontecimentos de forma inesperada e exercendo sobre
seus detentores um efeito de feminização, justamente pela
ilusão que ela propicia. A separação desses efeitos
equivale a distinguir a lettre do significante-amo, embrulhado com
ela. Trata-se de uma forma metafórica de dizer que o S1
vem envelopado na letra, e não de fazer uma crítica literária,
o que teria sido feito por Marie Bonaparte sem nenhum resultado. Para Lacan,
a crítica psicanalítica deve apontar ao enigma, ao buraco.
Para Patrick Valas, a propósito, trata-se do enigma do sintoma,
do lapso, do ato falho, mas também do enigma do 4, 2, 3 da Esfinge:
τί ἐστιν ὃ μίαν ἔχον φωνὴν τετράπουν καὶ δίπουν καὶ τρίπουν γίνεται, Qual
ser, provido de uma só voz, tem no início quatro patas, depois
duas e, em seguida, três? Ou o enigma do ser: Έπάμεροί τί
δέ τις! τί δ'οῠ τις? σκιᾶς ὄναρ ἄνθρωπος, O que é o
ser,o que é o não ser? Tu não és senão
o sonho de uma sombra.
Lacan também distingue os psicanalistas que
exercem a psicanálise dos que são exercídos por ela,
condição esta que lhes dificulta a compreensão de
suas formulações. Na versão francesa do seminário,
conforme às fichas de Patrick Valas, lembra ainda uma comparação
destas instituições que abrigam estes analistas, com a Igreja
onde se exerce um oficio, com seus rituais em horas fixas (a referência
é às missas), onde se trata de textos sagrados cujo sentido
é autorizado pelos Doutores da Igreja, e onde se deve obedecer
cegamente à doutrina. E Inácio de Loyola ainda acrescentou
que isso deveria ser feito pĕrīndĕ cadaver,
como um cadáver.
Contrastando saber e verdade, os analistas religiosos reconhecem seu
ofício na verdade, enquanto, do ponto de vista de Lacan,
é o saber que deve ser posto sempre em cheque, como na figura
heráldica de mis en abyme, cuja imagem tem sempre
outra que a repete dentro de si, o que entendo como um conhecimento profundamente
enraizado. No entanto, Lacan diz, a seguir, ter ficado sabendo que as
pessoas acreditam estar dispensadas de demonstrar qualquer conhecimento
... e, em seguida, coloca uma questão que, para ser compreendida
(na leitura da versão Miller, traduzida para a Zahar), requer a mudança
de posição de uma virgula: Será esta
letra morta que coloquei no título de uma daqueles textos que chamei
de Escritos, da letra, a instância como razão do inconsciente?
À guisa de resposta, Lacan lembra do aspecto bífido,
elaborado por Freud, a propósito das inscrições no
inconsciente. As pulsões inscrevem-se no ics, de modo bífido,
pelo representante da representação, a
Vorstellungsrepräsentanz, e pela representação
afetiva. Há ainda a representação coisa
e a representação palavra. Por outro lado, a negação
possibilita a uma inscrição inconsciente inscrever-se também
no consciente, o que permitiu a Freud ver na negação uma forma
superior de repressão. Verdade que a bifididade da língua
está presente desde o início dos tempos: a cobra da primeira
prosopopeia tinha a lingua bífida e, assim, enquanto uma ponta seduz,
a outra porta a sua intenção. Isso item sua importância
aqui, na medida em que Lacan está interessado em ver, na mediação
entre os dois planos, uma fronteira, tal como Freud imaginou
concernente às instâncias psíquicas. E, claro, está
em jogo aqui a relação do sujeito com o objeto, relação
conformadora do Umwelt, como um reflexo do Innenwelt, conforme
a Jacob Von Uexküll (p.109). Mas o importante é a fronteira,
na medida em que ele a contrapõe ao litoral: não será
a letra o literal a ser fundado no litoral? Enquanto o conceito de fronteira,
dessa terra de ninguém, dessa no men’s land, é mais
abstrato, o litoral é mais concreto, e se o pensamos como um litoral
marinho, tanto mais flutuante será. Lituraterra, enquanto letra,
ambiciona um lugar litoral, de borda do futuro. Ambiciona um avanço
no saber. Se a apreensão da realidade é feita com os aparelhos
do gozo, entre o gozo e o saber a letra faria o litoral
(p.110). Contudo, isso não autoriza fazer da letra um significante
e muito menos atribuir-lhe uma primazia em relação ao significante.
Tal confusão teria saido do discurso que lhe
importa: o universitário, em que o saber é usado a partir
do semblant.
Para falar de sua leitura do significante, diferente
da de Freud, Lacan começa criticando, na carta 52 (sempre as cartas...),
a figura do Wunderblock, por não considerar a escrita
uma impressão. Aliás, eu mesmo, quando tomei conhecimento
dessa figura, nunca pensei que o importante fosse a escrita, mas sim o indelével
da impressão, da marca, e por que não dizer, da inscrição.
De qualquer modo, Lacan não faz disso finca pé; sua atenção
está dirigida, nessa carta, ao traço de memória,
escrito por Freud como WZ, e sua proximidade ao conceito de significante.
E então esboça a suspeita de que a literatura talvez esteja
virando lituraterra. Devo dizer, contudo, que isso não é
recém de seus dias e, para não ir mais longe, lembro, na
obra do Padre Vieira, de História do Futuro, na qual nos fala
da necque instantia, do futuro imediato. Se todos nós marchamos
às margens do futuro, os escritores, Lacan disse isso ele mesmo
uma vez, marcham na frente! Uma maneira de ressaltar a importância
do escrito. De qualquer modo, ensaia essa situação com a
descrição de sua viajem sobre a Sibéria, fazendo um
trocadilho entre acidental, acidentado e occire,
que ele cita em latim enquanto na edição da Zahar já
aparece traduzido – ainda que corretamente – como ocisão, com
a conotação de assassinato e, mais especificamente, de morte
violenta.
O que lhe interessa, sobremaneira, é a condição
litoral, e a exemplifica com a caligrafia japonesa que deve acompanhar
a pintura. Trata-se, na verdade, de algo raro. No Ocidente, de modo geral,
temos a arte, entendida como pintura, escultura, e também a escrita,
mas todas separadas, raramente juntas. Uma exceção são
Os profetas, do Aleijadinho, em Conganhas do Campo. Os
pintores, por séculos, antes de Jan van Eyck, em 1434, nem o próprio
nome colocavam no quadro. No Oriente, contudo, é uma praxe. Lacan
refere-se aos kakemonos [掛物] – entre os quais escolhi um, de Hiroshige
(1797 - 1858), para ilustrar, no Facebook, o convite para esse encontro
–, onde os logogramas são os mesmos chineses originários. É
daí que ele ressalta a importância do traço, tanto como
WZ, como pelo fato de ser unário, para o que, a fim de se divertir,
grafou papludum, e não papeludun, como sugere a tradução
brasileira, possivelmente apoiada na tradução ao espanhol,
da Paidós, a qual ajunta o sentido hispânico de
peludo. Se fosse o caso de também traduzi-la ao português,
uma vez que papludun expressa a contração de pas
plus d’un, sugeriria namaqum, como contração de
não mais que um, uma forma de nomear o que não
pode ser nomeado, uma forma de nomear a Achose.
Ocupado com a caligrafia, Lacan associa-a com o escoamento,
que, em francês, ele diz ruissellement, tal o da neve que
se vai derretendo até formar um grande lago, como, por exemplo, o
lago Baikal, o mais profundo do mundo, justamente aí, na planície
siberiana sobrevoada por Lacan. O aparecimento dessa imagem parece ter-lhe
chegado como a força de um ϕαινóμενον heideggeriano,
daquilo que se revela, que vem à luz. Ao escoar-se forma um buquê,
que lembra também o buquê invertido do experimento ótico
de Bouasse, no qual o sujeito, cujo a foi cortado, só pode se sustentar
pelo fantasma. Afinal, é pelo apagamento do traço
que o sujeito é designado (p.113). Daí a importância
da rasura, da litura componente da lituraterra.
O corte, por sua vez, lembra-lhe seu primeiro livro de leitura, com um conto
cujo título era História de uma metade de frango, conforme
nos relatou, durante o seminário anterior, na lição
de 21 de janeiro de 1970. Na história havia uma figura do perfil
do lado bom e do lado mau do frango, este sem coração, mas
não sem o fígado – em francês, não sem o foie,
que também se escuta como fé. O que ele interpreta como
a verdade podendo estar escondida, mas talvez não ausente. Frege, lembra
ele, coloca a questão como um traço horizontal e distingue
o resultado verdadeiro com um traço vertical, colocado à esquerda.
Daí, para Lacan, a importância da diferença do makemono
[巻物], sempre horizontal, do kakemono, sempre vertical.
Sobre a Ponte Mirabeau, do poema de Apolinaire,
é uma referência à sua revista La Psychanalyse,
editada por P.U.F. do nº 1, de 1956, ao nº 8, de 1964, que havia
ilustrado com a ponte encimada por uma orelha, a sua possivelmente.
É preciso valorizar as homofonias e, se Lacan
toma em conta a literatura de James Joyce, é porque as palavras
se valem desse efeito para encontrar novos sentidos. Aliás, são
propriedades como essa que mantém a língua viva. Mas uma
vida que não é sem o que ele chama de ravinement, que
não é sem a erosão. Uma erosão que pode servir
de base a uma construção. Assim como a engenharia perfura a
montanha para dar lugar ao seu anseio de passagem, a política serve-se
dela no fenômeno conhecido como globalização. O exemplo
de Lacan ao dizer do efeito do chinês no japonês é desta
ordem, como é o do inglês em outras línguas e como já
foi o do português em tantos lugares. O invasor fura a língua
do invadido com a sua. Sustentando isso, está sempre a força
da metáfora, constituinte da essência da linguagem.
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SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não
seria do semblant
19 de maio de 1971
VIII. Lição sobre O homem
e a mulher e a lógica.
Contribuição
de
Maria da Glória S. Telles da Silva
17 de novembro de 2020
• Nesta aula, Lacan retoma sua evocação
à lógica matemática dos quantificadores universais,
no caminho de sua determinação em buscar escrever a relação
sexual, dizendo que as funções só são determinadas
a partir de um certo discurso [pg. 120].
• E, sem muito deixar claro, dirá que é
nesse nível (das funções) que pode dizer que o
escrito é o gozo [pg. 120]. Considera que no nível
do discurso do analista, há alguma coisa que cria obstáculo
a um certo tipo de inscrição [pg.120]. Essa coisa é
o gozo, e isso é o que traz problema para poder inscrever a relação
sexual.
• Segue interessado em formalizar os efeitos dessa
transmissão que uma carta/letra produz na realização
de um discurso, ou seja, efeito feminizante que tem relação
com o gozo.
• Nos conduz, então, a pensar na função
da necessidade. A necessidade, diz, é uma ordem fundamentada
no artifício para evidenciar esse elemento irredutível no
real. Reserva-se à necessidade sexual uma parcela mínima do
gozo sexual que não pode ser sublimado. Essa necessidade, esse traço
irredutível na relação sexual, é claro que podemos
admitir que ele sempre existe. Contudo, ele não é mensurável
[pg. 122]. Por isso a relação sexual não é
inscritível, fundável [fondable] como relação1
[pg. 122].
• O que a descoberta freudiana demonstra é
que, por intermédio do inconsciente, vislumbramos
que tudo o que é da linguagem que nos habita mantém uma certa
relação com o sexo, mas há um resto, um irredutível
dessa relação, que é o gozo, que não alcança
ser escrita pela linguagem.
• Para ser inscritível, essa relação
precisa ser escrita. Assim diz Lacan: se digo inscritível, é
porque o exigível para que haja função é que,
pela linguagem, possa produzir-se algo que seja expressamente a escrita,
com tal da função. [pg.123.]
• Todo o problema é que a função
sexual, via linguagem, não dá conta da relação
sexual; e como escrever essa parcela de gozo que resiste a inscrever-se
na linguagem?
• Por isso, Lacan se dirige ao discurso da matemática,
mais especificamente na linguagem matemática dos quantificadores
universais, para buscar os elementos e elaborar uma fórmula que permita
a inscrição dessa função do sexual que não
pode se escrever, essa F(x), impossível de escrever. E por ser da
ordem do impossível, não cessa de não se escrever.
• E isso, ao que tudo indica, é por haver dois
termos, homem e mulher, que se inscrevem de forma diferente na lei da linguagem,
que parece recolocar na ordem do dia a questão feita a Tirésias
por ocasião de uma discussão dentre Zeus e Hera: quem goza
mais, o homem ou a mulher?
• Como saber a verdade? O mito sempre foi um dos caminhos
buscado para se formular um saber sobre a verdade na sua origem. No seminário
anterior, o XVII, O avesso da psicanálise, Lacan havia dito
que o mito é um saber que tem função de verdade
e, que o mito é um enunciado do impossível [pg.118].
Ambas as afirmações, colocam a verdade como uma interpretação,
uma construção. O mito tem a função de nos fazer
não esquecer da verdade da qual nada sabemos, já que o saber
como verdade, na psicanálise, é um saber que não se
sabe. Tal qual o conteúdo da carta, do conto de Poe.
• Daí também a afirmação,
mais uma vez evocada por Lacan nessa aula, de que a verdade só
progride por uma estrutura de ficção [pg.124].
• Lacan nos remete, então, aos Primeiros
Analíticos, de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), para recorrer
ao silogismo. Um silogismo2 é
uma forma de raciocínio lógico, na qual há duas premissas
e uma conclusão distinta destas premissas, sendo todas proposições
categóricas ou singulares. Fala mais especificamente do silogismo
de darii, onde há uma universal afirmativa e duas particulares.
Note-se que todo silogismo contém somente três termos: maior,
médio e menor.
• O exemplo que Lacan apresenta é:
Todo homem (termo médio) é bom
(termo maior), sendo todo homem a universal.
A segunda afirmativa particular é Alguns animais (termo
menor) são homens e a terceira afirmativa particular
é a conclusão Logo, alguns animais são bons.
A validade de um silogismo depende do respeito às regras de estruturação.
Tais regras, em número de oito, permitem verificar a correção
ou incorreção do silogismo. As quatro primeiras regras são
referentes aos termos e as quatro últimas são referentes às
premissas.
• Lacan faz todo um raciocínio a partir dessas
proposições lógicas que não são fáceis
de acompanhar quando não se domina esse conhecimento da matemática.
Mas, suas construções nos conduzem à relação
dessas proposições com o discurso, apontando para o fato
de que a linguagem possibilita apenas um número determinado de
discursos. [pg.128]
• E com isso, chega, via discurso da lógica,
as fórmulas dos quantificadores, tomando as leis de Morgan que simplificou
as expressões de Boole.3
• Essas leis e expressões permitem Lacan de
escreve afirmações e negações a partir dos quantificadores
Todos e Alguns, ao lado da incógnita x,
e escreve duas negações possíveis relativas à
função fálica, sendo o x para os termos homem/mulher.
1) Não é com todo o x que a função
Фx
pode se inscrever.
___
∀x.Фx
2) Não é com a existência
de um x que a função Fi de x pode se escrever.
___
Ǝx.Фx
• Essas equações colocam no cerne a
impossibilidade de escrever o que acontece com a relação
sexual. Mas há todo um raciocínio de Lacan, ainda um tanto
obscuro para mim, que busca articular a função fálica
aos termos homem e mulher, de modo a afirmar ou
negar esta função para cada um. E, acaba por dizer o seguinte:
O homem é uma função fálica
na qualidade de todo homem. [pg. 132].
• Em seguida, coloca dúvida sobre se todo
homem existe, tal como já tinha feito sobre a questão
de todas as mulheres, no caso do mito da Horda, para dizer que o homem só
pode ser todo homem, na qualidade de um significante, ao que escreve
como touthomme, todohomem.
• E seguindo essa lógica de que não
existe toda mulher, dirá que para a mulher só será
possível inscrever-se na equação como uma mulher.
• A lógica porta a marca do impasse sexual
[pg.133].
• E para articular esses dois termos, todohomem
e uma mulher, o falo é o terceiro elemento, que a mulher terá
de buscá-lo em ao menos um, uma vez que todo homem não
existe. Este ahomenoszum é a função essencial
da relação sexual.
Notas:
1. Em matemática, uma relação
é uma correspondência (ou associação) entre elementos
de dois conjuntos não vazios.
2. No grego significa conclusão ou inferência.
3. Augustus De Morgan (Madura, Índia, 27 de junho de 1806 — Londres,
18 de março de 1871) foi um matemático e lógico britânico.
Formulou as Leis de Morgan. A primeira lei de Morgan propõe
a negação de duas proposições afirmativas unidas
por ‘e’ ou ‘ou’. A Segunda Leis de Morgan permitem-nos efetuar a negação
de proposições com quantificadores (universais e existenciais).
George Boole nasceu em Lincoln - Inglaterra em 2 de Novembro de 1815.Autodidata,
fundou aos 20 anos de idade a sua própria escola e dedicou-se ao
estudo da Matemática. Na Álgebra de Boole existem apenas três
operadores E, OU e NÃO (AND, OR, NOT).Atualmente todos os computadores
usam a Álgebra de Boole materializada em microchips que contêm
milhares de interruptores miniaturizados combinados em portas (gates) que
produzem os resultados das operações utilizando uma linguagem
binária.
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Contribuição
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
17 de novembro de 2020
O QUE SEMPRE SE SOUBE E AINDA NÃO SABEMOS
O homem e a mulher sempre foram misteriosos. Talvez
devesse referir-me explicitamente, à figura do homem e da mulher,
como enigmáticos. Cada um é um desconhecido para si mesmo,
embora o mais comum seja o reconhecimento do enigma no outro. O reconhecimento
da ignorância sobre si mesmo é de segundo grau, ao nível
de doutorado, ao nível da docta ignorantia. Enfocado o tema,
pelo ângulo da sexualidade, a complexidade só aumenta. Na literatura,
desde que temos notícia, um intermédio trágico nas
relações amorosas esteve incluído desde sempre como
fruto da incompreensão. Na pintura renascentista, com a retomada
de temas clássicos e religiosos, as cenas de Adão e Eva, nus,
tem sempre um traço comum. Seja em Dürer, Ticiano, Lucas Cranach,
ou em Jan Grossaert, com cujo Adão e Eva ilustrei o convite
para este encontro, em todos aparecem os genitais cobertos por algum tipo
de folhagem. E o interessante é que a espécie de folha que
cobre um também cobre o outro. Em Lucas Cranach, o velho, são
as folhas do mesmo galho que cobre Adão a cobrir Eva (ver figura
a baixo).
Se tivesse de dizer isso algebricamente, teria de dizer que ambos estão
cobertos pela mesma F, ou, se quiserem, pela mesma Fi. Para Lacan,
trata-se da inscrição de uma letra.
Para o reconhecimento dos sexos, os assim chamados caracteres secundários
sempre foram muito importantes, mas nunca definitivos pois costumam ser
os primeiros a serem falseados. Ah! Diadorin... para explorar o sertão
tem que se travestir. E a alma de Riobaldo se transtorna.
Lacan quer saber como a transmissão da letra se relaciona com
o gozo. Nas lições anteriores, a letra era, para ele, a lettre.
Gostou da ideia de tomá-la como carta na medida em que o significante
vinha, aí, envelopada na letra da carta, na lettre de la lettre.
E isso proporcionava um efeito feminizante ao portador da carta, fosse quem
fosse. Como a carta estava endereçada a uma mulher e, pelo que se
deduz, pelo fato de ser mulher, aquele que por ela se interessa, independentemente
de seu particular motivo, se feminiliza, vítima do efeito da sombra.
E trata-se de uma sombra que não é sem as luzes. Daí
a importância da filosofia das luzes, da Aufklärung e
da estrutura de ficção que lhe acompanha. Quando a luz é
projetada aparece também a sombra e, nela, o sujeito que no fantasma
está dividido. E será por meio desta lógica do fantasma
que poderemos vislumbrar a relação do homem e da mulher,
e concluir que a relação sexual não pode ser escrita.
Entende-se que não pode ser escrita de forma definitiva e de modo
lógico.
Para chegar a isso, Lacan propõe seguir um raciocínio
lógico, conforme proposto por Aristóteles nos seus Analíticos
Anteriores, também conhecidos como Primeiros Analíticos.
O primeiro raciocínio é o silogismo. Nada mais lógico:
em grego, para raciocínio, diz-se συλλογισμóς. Trata-se de
um raciocínio dedutivo formado por duas proposições
e uma conclusão: Todos os homens são mortais,
os gregos são homens, logo todos os gregos são mortais.
Entre os silogismos, Lacan toma o conhecido como Darii, no qual
o termo médio ocupa a posição de sujeito na premissa
maior e predicado na premissa menor.
∀ B → A: Todo homem é bom
Ǝ C → B: Alguns animais são homens
… Ǝ C → A: Logo, alguns animais são bons.
Trata-se de um raciocínio que só se sustenta pelo uso
da letra. Mas isso vem desde Platão, antes de Aristóteles,
quando partiu da ideia do bem. Mas quando se diz bom, com isso pode-se
dizer qualquer coisa, inclusive que se trata de uma boa porcaria. Se algo
pode introduzir alguma diferença, por um lado, será o significante
e, por outro os quantificadores, o que está para todos e o que está
para alguns. Trata-se de saber se para todo x se cumpre a função
de x [∀x.Φx]. Então, o x de ∀x é uma incógnita e para
saber o valor dela, Laca se vale de uma equação de segundo
grau, esta que só tem uma incógnita e cuja raiz será
o resultado da equação, para perguntar se a raiz dessa equação
pode inscrever-se na função F que define o x como variável.
E a resposta é não! [p.130] Não pode inscrever-se porque
existem [Ǝ] raízes da equação de segundo grau que
são números imaginários, i.e., números
complexos cuja parte real é igual a zero. Quer dizer, existem raízes
que satisfazem a função do número real e outras que
não satisfazem. É isto que diz da impossibilidade de escrever
o que sucede com a relação sexual.
Para Lacan, é muito difícil mostrar
em imagens que há algo de desconhecido que está aí,
o homem, que é algo desconhecido que está aí,
ele repete, como para sublinhar que o desconhecido da mulher não
é o mesmo desconhecido do homem, e há um terceiro termo que
ele chama de médium.
O problema, aponta Lacan, é que se ligarmos o termo homem,
ou o termo mulher a esse médium, esse médium
não se comunicará com o outro termo. Então não
existe isto de que todo homem é fálico e toda mulher
não o é, mesmo porque o todo da mulher não existe
e também porque existem sérias dúvidas se o
todo homem existe. Se existisse esse touthomme, diz
Lacan, não seria mais do que um significante, seria o mítico
pai da horda primeva imaginado por Freud. Mas é como algum que
o homem pode ser fálico. E as histéricas,
essas que permitiram a Freud criar a psicanálise, se se tratasse de
bancar o touthomme, ela seria tão capaz de fazê-lo
como o próprio touthomme.
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SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não
seria do semblant
9 de junho de 1971
IX. Lição sobre Um homem e
uma mulher e a psicanálise.
Contribuição
de
Maria da Glória S. Telles da Silva
1º de dezembro
de 2020
•
Seguindo seu caminho, Lacan se ocupará nesta aula de situar como
um homem e uma mulher se encontram em relação a este impossível
de se escrever da relação sexual.
• Começa invocando seus Escritos.
Tomando a homofonia dos Escritos, (Écrits, em francês),
com a palavra grito, crí, Lacan dirá que, um homem
e uma mulher, não podendo se entender de outra maneira, podem ouvir-se
gritar [pg.135]. A outra maneira de se entender, dirá ele, é
na cama, onde não tem nenhuma necessidade de falar.
• Mas, sendo o homem e a mulher, fatos
de discurso [pg.136] e discurso é semblante, como se posicionam
um e outro nesse discurso?
• O semblante só se enuncia
a partir da verdade [pg.136]. E onde está a verdade? Já
sabemos que a verdade só aparece as meias, e que só pode expressar-se
como semblante do gozo.
• Retoma daí suas formulações
da mulher e do homem, elaborado nas aulas anteriores, para dizer, da mulher,
que não é de todo x que se pode postular a função Φ de x. E por esse não é
de todo x que se postula a mulher. E, para o homem, não
existe um x tal que satisfaça a função pela qual se
define a variável, por ser a função de Φx. E a partir de ele não existir que se formula
o que acontece com o homem, com o macho [pg.137].
• Lacan nos lembrará que o semblante,
que faz circular a verdade, é assez phalle [pg.138], jogando
com a homofonia, em francês, de falo e acéfalo,
sem cabeça, ou seja, a verdade não tem um dono.
• Mas Lacan enfatizará que é
todo esse gozo sexual, interdito, nos põe a falar, e falar é
essa divisão irremediável entre o gozo e o semblante, ou
seja, o discurso [pg.141]. É nesse deslizamento moebiano do gozo
e do semblante que a verdade se expressa.
• Volta a lembrar que a condição
do inconsciente é a linguagem. Daí dizer que ele sabe coisas.
E o que o inconsciente sabe tem relação com a significação
do falo, que emerge como semblante dessa falta que não podemos inscrever:
a relação sexual.
• Tal obstáculo impulsionou Lacan
a buscar na figura topológica da garrafa Klein, um modelo de referência
do discurso da histérica, que conjuga a verdade do seu gozo com
seu saber implacável de que Outro apropriado para causa-lo é
o falo, o seja, um semblante [pg.143].
• E porque a garrafa de Klein?1
(https://youtu.be/mF4x8svpSgA)
Garrafa de Klein
• Essa figura
topológica tem como característica ser não orientável,
ou seja, não é possível definir um interior e um exterior.
Ao se tomar um ponto isolado, leva a pensar em uma estrutura bidimensional
com um dentro e um fora. Como um todo, o dentro e o fora se comunicam de
modo contínuo. Lacan a tomará para caracterizar a estrutura
do desejo insatisfeito, marca do discurso histérico, que ao destacar
ao menos um ponto dessa estrutura, ao projetar no Campo do Outro esse objeto
que faz semblante de completude, o falo. Do ponto que vista da histérica,
seu discurso, para suportar essa castração, vive a exaltar
e depreciar esse elemento terceiro, o falo, enquanto semblante que marca
a completude imaginária, e que a coloca na direção de
ahomenozum como via de obtenção do falo.
• Disse Lacan: A histérica
se situa por introduzir o nãomaiskium com que se institui cada
uma das mulheres, por intermédio do não é toda
mulher que se pode dizer que ela é função
do falo. Que seja de toda mulher é o que compõe seu
desejo, e é por isso que esse desejo se sustenta por ficar insatisfeito,
porque dele resulta uma mulher [pg.146].
• E Lacan encaminha o final dessa aula
questionando o quanto o mito fundamental da psicanálise, o Édipo,
dá conta de responder à genealogia do desejo. Ele diz: a
genealogia do desejo decorre de uma combinatória mais complexa que
a do mito [pg.147]. Os mitos são estruturas que buscam responder
ao enigma da origem. E nisso seu valor foi marcadamente validado pelos estudos
de Levis-Strauss. Mas Lacan quer ir além do fato de estrutura. Busca
um discurso que responda a impossibilidade de escreve a relação
sexual desse gozo que precisa ser castrado.
• O Édipo tem a vantagem de mostrarem
que o homem pode corresponder à exigência do nãomaisqueum
que está no ser de uma mulher. Ele mesmo amaria nãomaisqueuma,
nos diz Lacan. [pg.148] Mas nessa fábula edipiana o homem só
se sustenta por ser um garotinho: que no frigir dos ovos, seu desejo é
gozar com a mãe.
• Isso leva Lacan a comparar o mito
do Édipo e o de Totem e Tabu, o mito do pai da Horda. Dirá
que o primeiro foi ditado a Freud pela insatisfação das histéricas,
e o segundo pelos próprios impasses de Freud. As questões
presentes no primeiro mito, a marca do trágico na passagem do falo
do pai para o filho, que condensa numa única revelação
o assassinato do pai e o desejo do filho pela mãe, tais elementos
não estão presentes no mito do pai da Horda. Ali a questão
é que o assassinato surge com vingança. No Édipo o
assassinato do pai é um fato desconhecido a priori.
• Lacan parece preocupado em reconhecer
os efeitos da lei que interdita o gozo e produz, como efeito, essa impossibilidade
de escrever a relação sexual.
• No mito do Édipo, esse gozo
do filho com a mãe é velado ao casal real, mas está ali
e no momento em que é revelado faz todo um estrago. Essa revelação
e seu exílio como castração simbólica só
são necessárias para restabelecer a garantia do gozo do povo.
Édipo, representante do falo de seu povo, e não de Jocasta,
diz Lacan, então, bem podemos reconhecer que, ao punir-se pela sua
desmedida, sua hybris (ὕϐρις), em relação ao gozo,
foi o modo de expressar que o valor da lei é para todos.
• Em Totem e Tabu, esse gozo
está explícito e é o que motiva o assassinato do pai.
Não só assassinado, as devorado pelos filhos, ficando cada
um apenas com uma parte. O pai como um todo, só se constitui numa
comunhão. Os efeitos são outros. Se estabelece um contrato
social onde se instaura a interdição da mãe, primordialmente
enquanto mulheres do pai.
• E Lacan finaliza apontando as diferenças
em suas funções, entre os dois mitos, e o que tem de comum:
§
No Édipo a lei está desde o princípio e é a
saída da profusão do gozo. Ali, o lugar do pai precisa ser
assegurado pela lei.
§
Em Totem e tabu, primeiro está o gozo e depois a lei. Esta lei é
efeito de uma conjuração, ou seja, de um acordo comum que,
via proibição das mulheres do pai, instaura um acordo que limita
o gozo. O pai só será reconhecido na comunhão dos filhos.
• Aliás,
esse efeito de conjuração é o que Lacan aponta de comum
entre os dois mitos e que Totem e Tabu é o mito apresentado por Freud
como um produto neurótico, recurso usado por ele justo por ser impossível
de formular no discurso a relação sexual.
Notas:
1. Construída pelo matemático
Felix Klein, em 1884, a garrafa de Klein é um objeto matemático
que vive em um espaço de quatro dimensões embora possa ser
visualizado em um espaço de três dimensões. A garrafa
de Klein, um conceito da matemática bastante interessante, trata-se
de uma superfície fechada sem margens e não orientável,
isto é, uma superfície onde não é possível
definir um “interior” e um “exterior”.
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Contribuição
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
1º de dezembro de 2020
Pois, enfim, que
é o homem na natureza? Um nada ante o infinito, um tudo ante o nada,
um intermediário entre nada e tudo. Infinitamente distante da compreensão
dos extremos, o fim das coisas e seu princípio estão para ele
infinitamente escondidos em um segredo impenetrável, igualmente incapaz
de ver o nada de onde ele foi arrancado, e o infinito no qual ele é
engolido.
PASCAL, Pensamentos. Fragmento 72.
DO HOMO SAPIENS
E eis que, ante a infinita criação,
O próprio Deus parou,
desconcertado e mudo!
Num sorriso, inventou o homo sapiens, então,
Para que lhe explicasse aquilo tudo...
MARIO QUINTANA, Espelho Mágico.
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A trilha sonora para essa lição
de Lacan bem poderia ser a mesma que Francis Lai compôs para o filme
de Claude Lelouch, Um homem, uma mulher, de 1966. Desse filme, aliás,
dizem que as partes em preto e branco deveram-se à falta de dinheiro
para comprar filmes coloridos. Mas ficaram tão bem, com tanta harmonia
na apresentação do romance, que acabaram sendo responsáveis
pelos prêmios recebidos, como o Oscar de melhor filme estrangeiro e
o Palma de Ouro, de Cannes. Em preto e branco, como uma escritura, estavam
as reminiscências dos personagens. E, para o final, Lelouch filmou
duas cenas: uma, em que o casal fica junto, e outra, em que fica separado.
Por pena de ver os dois separados, Lelouch deixou-os ficarem juntos. A verdade
é que, quando nos lembramos da história, os dois finais estão
sempre presentes. Separados e juntos!
Esta nona lição trata disso, da impossível
relação sexual do homem e da mulher. Para chegar à constatação
desse impossível, Lacan, com outro valor à pena, recorre à
lógica. Tudo depende de uma significação. Trata-se
de uma questão de Bedeutung, ou, como diz Lacan, de Bedeutung
des Phallus, tal qual o título de sua exposição
berlinense. Esse é o ponto central de sua lição, e ele
chega a dizer que a Bedeutung des Phallus é, na verdade, um
pleonasmo, porque, enfim, na linguagem, o falo é a única Bedeutung
(p.139). Lembram quando era voz corrente que, para a psicanálise, tudo
é sexo? E a linguagem é, antes de tudo, sim, o habitat dos
seres que sustentam a fala. Falar significa a divisão irremediável
entre o gozo e o semblant. Essa Bedeutung, longe do conceito
de interpretação de Paul Ricoeur, cuja hermenêutica levou
a um exame da riqueza da linguagem, tem a ver com a falta inerente à
linguagem que nos serve, no final das contas, apenas para a construção
de metáforas e metonímias. A verdade é gozar de fazer
semblant (p.141). É das metáforas que surgem todas as
criações e, diz o mestre, também todas as insanidades
míticas (nem por isso menos importantes!), incluídas aí
tanto o Édipo como o Totem e Tabu, enquanto da metonímia
os habitantes da linguagem podem extrair o pouco de realidade que
lhes resta. Esse pouco de realidade provavelmente Lacan
o tenha aproveitado do manifesto surrealista, de André Brenton, que
o publicou como uma Introdução ao discurso sobre
o pouco de realidade. A vida é um teatro eterno e toda máscara
fracassa no papel de representar o eu; contudo, há que escolher uma
para assegurar esse pouco de realidade necessário à presença
no mundo1 e esse pouco nos
aparece sob a forma de plus-de-gozar.
Lacan registra também a importância da escrita
para o registro da história, e não parece demais lembrá-la
como registro da linguagem, sem a qual não há memória.
Veja-se a falta de memória dos períodos anteriores à
aquisição da linguagem e daí Vitor, o menino que foi
criado por lobos: como não teve acesso à linguagem, não
se lembrava de nada. A escrita nunca passa de algo que se articula como
ossos, cuja carne seria a linguagem. Concernente a isso, lembro de um
chiste que muito ouvia dos hermanos argentinos: a língua espanhola
e a portuguesa são feitas da mesma carne, só que a primeira
é com osso. Pois uma vez, então, perguntei-lhes: - Se o português
não tem osso, como será que fica em pé? – E nunca mais
ouvi o tal dito! Quando Lacan diz que o gozo sexual não tem osso
(p.139), algo dessa história passa por aí.
O destaque para a escrita é por sua capacidade
de prover de ossos todos os gozos, o que lhe possibilita sublinhar que a
relação sexual falta no campo da verdade (p.139). Causa
disso é ter sua fonte apenas no semblant. Desse modo, a verdade só
abre caminho para gozos que parodiam o gozo efetivo, enquanto este lhe permanece
alheio.
Com outra pontuação, Lacan dirá:
Assim é o Outro do gozo: é para sempre
interdito àquele cuja habitação a linguagem só
permite ao lhe fornecer escafandros. Seu titubeio, ao usar essa figura
(p.139), faz-me pensar que esteja se referindo ao solicitado por Dali quando
foi convidado a fazer uma conferência sobre o surrealismo, em Londres.
Para tal, o artista encomendou, de uma empresa especializada, um escafandro.
E quando lhe perguntaram para que profundidade iria precisá-lo, respondeu:
- Um escafandro que me permita descer às profundezas do inconsciente.
E da Verdade, chamada por Lacan de sua companheira
e cuja prosopopeia ele desenvolve na conferência A coisa freudiana,
ele diz tê-la extraído de um poço, de um puits,
embora a tradução não tenha visto necessidade de incluí-lo
(p.141). É que esse poço, muito provavelmente, era aquele de
águas tão claras e frescas que a Mentira convenceu a Verdade
de aí mergulhar em uma tarde de verão e, enquanto a Verdade
nua aí se refrescava, vestiu suas roupas e foi-se, como se fosse ela
a própria Verdade.
As máscaras, como se vê, não são
coisas de agora. Lacan menciona a história de Ashikaga Yashimasa (1435-1490)
– cujo nome não enuncia –, o oitavo shogun do período Muromachi
da história do Japão, que teria construído, em Kyoto,
o templo conhecido como Pavilhão de Prata, onde guardam, ainda hoje,
sua máscara, sua persona de apaixonado pela lua. E quem não
é apaixonado por Selene? No Carnaval, cantávamos que, se ela
não fosse casada, faríamos uma escada para ir ao céu
beijá-la. Mas, depois, como na obra de Alfonse Allais,
Um drama bem parisiense, quando tiram as máscaras, não
era ele, não era ela.
O texto de Lacan tem um pouco dessa mascarada. Impenetrável
nas primeiras leituras, vai se abrindo como um corpo de mulher e, depois,
o leitor não sabe se o captou exatamente como gostaria, ou como deveria.
É assim, desde a frase de abertura:
Um homem e uma mulher
podem se ouvir, não digo que não.
Podem, como tais, ouvir-se gritar.
Lacan usa o verbo entendre, que pode ser traduzido
tanto como ouvir como entender. Como ele está ocupado
com o escrito, tendo mesmo redigido algumas notas para essa aula, ele destaca
do ecrit o cri, o grito, tema do qual diz que, pelo menos naquele
momento, não voltará a falar. Mas como Lacan não costuma
dizer coisas por dizer, temos de prestar atenção em tudo,
como se fosse um Heiligue text, o texto sagrado de um sonho. Lembro,
então, dois momentos em que fala do grito. Primeiro, no seminário
da Angústia, quando se ocupa da pintura de Munch, intitulada
justamente de O Grito. Edvard está sobre uma ponte com os amigos,
de repente vê aquele céu com línguas vermelhas, os amigos
seguem e ele para, paralisado pelo medo, e sente um grito infindável
a atravessar a natureza. Interessante que, desse Seminário, Miller
nos conta que Lacan deixou transcrição das aulas, por tê-las
relatado cada uma delas à sua filha Judith que, nestes dias, estava
em viagem. Quero dizer que delas também fez um escrito. Depois o retoma,
no Seminário sobre os Problemas cruciais da psicanálise.
Está ocupado com o significado do grito da criança. Em ambos
os momentos, ele diz que o grito não se dá sobre um fundo de
silêncio, como talvez a obra de Munch fizesse pensar, mas que o grito
cria o silêncio, este silêncio que também assusta Pascal,
ao dar-lhe uma noção de seu tamanho frente à imensidão
do universo. Souberam, a propósito, que dois anos atrás, em
2018, os astrônomos, liderados por Olga Cucciati, descobriram um superaglomerado
ancestral de galáxias, batizado, por seu tamanho colossal, como Hyperion,
com massa de um milhão de bilhões de vezes a do sol e cuja
luz leva mais de onze bilhões de anos para chegar até nós?
E Pascal, o pobre, nem sabia disso... Quando a criança grita, cria-se
um momento de interpenetração do interior com o exterior,
e é neste momento de remboursement que Lacan está interessado,
nesse momento de virada, de aproximação dos espaços,
cuja torção ele aponta, mais para o final dessa aula, na garrafa
de Klein, no momento em que acontece a transformação do fundo,
do culier, uma palavra aludida quando falava do
Clique na figura e assista (via Youtube)
a construção
de uma Garrafa deKlein.
orgulho do fundo das garrafas, mas que, nesse momento,
o texto estabelecido não o registra. Lacan está naquele momento
em que, ocupado com a questão da histérica, critica André
Green (que também não cita) por só se ocupar do teatro,
e não ter lido o Ménon, de Aristóteles, porque,
enfim, a histérica não é uma mulher (p.145).
O Ménon trata da virtude e do conhecimento. Sócrates
mostra como o escravo, que não sabia saber, sabe matemática,
o que, para Platão, é prova da reminiscência. Lacan está
interessado aí na distinção entre verdade e
saber. É aí que lhe serve a reversão
da garrafa de Klein, na medida em que o saber se prolonga revelando-se como
saber da verdade (p.145).
Não se trata de amar a verdade, o que,
claramente, não seria mais do que uma festa de
caridade (p.144). Neste claramente, Lacan reconhece a presença
da Aufklärung, representada pela presença do discurso
do analista. É que a histérica conjuga a verdade de seu
gozo com seu saber implacável de que o Outro apropriado para
causar o seu gozo é o falo, vale dizer, um semblant.
E isso, antes de tudo, por sua própria estrutura de sujeito (p.143).
Como o alcance desse gozo, contudo, é da ordem do impossível,
a histérica atribui esse poder de detenção do semblant
ao menos a um, que Lacan chama de homoinzun,
cuja escrita pode ser expressa algebricamente como a∪-1,
para não esquecer que pode funcionar como um objeto a (p.143)
e passar do discurso da histérica ao discurso do analista, o que equivale
a um xeque-mate no mestre. É assim que ela cumpre seu destino de
relançar o analista ao saber.
Notas:
André Brenton. (1924b/1992) Introduction au discours sur le
peu de réalité, in Point du jour, Oeuvres Complètes
II. Bibliothèque de la Pléiade, Paris, Gallimard, p. 266.
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SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não
seria do semblant
16 de junho de 1971
X. Lição "Do mito forjado
por Freud".
Contribuição
de
Maria da Glória S. Telles da Silva
12 de janeiro de
2021
Quando o homem não
faz idéia das coisas
remotas e desconhecidas, as estima pelas
coisas presentes e conhecidas.
GIAMBAPTISTA VICO, Scienza Nuova, 1725.
|
• Chegamos à
última aula desse Seminário. Mas, numa perspectiva viconiana,1
ela bem poderia ser a primeira, inaugurando um novo ciclo de leitura desse
complexo Seminário, já que os pontos cruciais que Lacan trabalhou
ao longo desse ano estão aí presentes. A começar pelo
título, destacando que o colocou no tempo condicional, como hipótese,
o que reforça a colocação de Luiz-Olyntho no comentário
a primeira lição, de que a melhor tradução ao
português é De um discurso que não seria do
semblant.
• Retoma que os discursos
que estabeleceu no seu seminário do ano anterior se dispõem
numa certa ordem, privilegiando o discurso do analista, na medida que é
o discurso que esclarece a articulação da verdade com o saber,
ou seja, o saber que importa e move o sujeito vem de uma verdade que não
se tem acesso de modo direto.
• Daí o valor da descoberta freudiana,
através das histéricas e obsessivos, do sintoma, ou seja, no
lugar do que não pode ser reconhecido como causa do gozo, algo emerge
como substituto dessa verdade.
• Daí também Lacan vai
precisar da noção de semblant, sendo justo isso que pode ser
articulado num discurso, valendo-se dos recursos da linguagem, para fazer
emergir a verdade do sujeito de modo a dar sentido aos efeitos da castração.
Isso tudo para enfrentar a verdade que realmente importa: não existe
a relação sexual. Ao menos, é o que
Lacan passou este ano a nos dizer, do impossível de escrevê-la.
• E afirma que todo discurso possível
só apareceria como semblant (pg.156), fazendo suplência ao
que fala.
• Lacan também
deixa aberta, na lição final deste Seminário, a questão
de saber se é pelo fato de ser falante que as coisas são
assim ou se, ao contrário, é pelo fato de a origem estar em
que a relação (sexual) não é falável
que é preciso, para todos que habitam a linguagem, que se elabore aquilo
que possibilita, sob a forma da castração, a hiância deixada
no que é biologicamente essencial à reprodução
desses seres como viventes para que sua raça continue. (pgs. 156/7)
• Parece apostar nessa
última hipótese, ao colocar que os rituais de iniciação
sexual, presentes até hoje em inúmeras culturas, surgem no lugar
da impossibilidade de escrever a relação sexual. É o
recurso da cultura para fazer marca ao órgão que representa
o terceiro elemento necessário para inscrever a castração,
ou seja, a submissão à lei que instaura o falo como limitador
e ordenador do gozo entre o homem e a mulher.
• Ao que parece, habitar
a linguagem nos retira da condição de responder à natureza
e, consequentemente, no que diz respeito ao gozo sexual, coloca uma dificuldade
ao não ser possível escrever a relação sexual.
Isto é a castração.
• Pela histérica
Freud nos conduziu a reconhecer que sua relação com o falo faz
semblant a esse mistério do gozo sexual. Pela linguagem,
só alcançamos uma Bedeutung do falo, uma significação,
sem jamais alcançar seu sentido verdadeiro. Só sabemos da verdade
por um discurso oblíquo, onde jamais teremos a = a, onde um
termo está sempre a significar a outro termo, mesmo quando usamos um
mesmo nome, fazendo Lacan ai diferença entre nome (name, como
nome próprio, em inglês) e nome (noun, como substantivo).
• É no nível
do nome próprio que fica claro que sua função é
fazer falar. O nome é aquilo que chama, diz Lacan (pg.160),
chama a quê? A falar. Já o falo, chame o quanto quiser, continuará
a não dizer nada (pg. 160).
• Eis a importância,
da formulação de Lacan, da metáfora paterna, do Nome-do-Pai
como o que vem para dar nome e encarnar o falo, um significante a dar sentido
ao desejo da mãe, desejo esse que é o x, o sentido que não
se alcança saber.
• Lá na aula
3, de 10 de fevereiro, Lacan havia explorado a relação do significante
como referente do discurso, e retomo aqui o que lá registrei nos meus
comentários: O referente de um discurso é sempre real, por
isso impossível de designar, e toda designação é
metafórica. O significante evoca um referente, mas nunca o certo e
assim construímos uma linguagem.
• É nesse
sentido que o significante mestre do discurso analítico é realmente
o Nome-do-Pai, afirma Lacan (pg.161). Isso por ser o nome do pai que implica
a lei, segundo Freud, e segundo Lacan, por instaurar o pai como o que inaugura
a castração, o marco zero da castração, por assim
dizer.
• Isso é o
que o mito engendrado por Freud em Totem e tabu, o mito do pai da Horda,
representa. A partir desse pai castrado, todos os outros deverão ser
numerados. E para nos ilustrar esse feito, Lacan lembra o valor da nomeação
nas dinastias, que inclui uma numeração: Geoge I, George II,
George III, etc. A necessidade lógica disto diz da verdade do bem conhecido
ditado latino, Mater semper certa est, pater nunquan: a mãe
sempre é certa, quanto ao pai, nunca. Isso vale para lembrar que o
pai está submetido à castração a ponto de ser
apenas um número. A relação da mãe com um filho
é um dado da natureza que não deixa dúvida, já
o pai, como elemento da cultura, necessita ser nomeado/numerado (nom/nombre).
O pai é uma questão de fé.
• A seguir, Lacan
define o neurótico pela evitação da castração.
Para a histérica, a forma lógica de proceder essa recusa é
colocando a castração no outro, como princípio da possibilidade
do gozo histérico, ao mesmo tempo em que o outro deve responder no
lugar do falo. Se, de acordo a Lacan, o assassinato do pai é o substituto
dessa recusa da castração, e o falo é o que fecunda,
sendo toda criança uma reprodução do falo, vemos o quanto
é complexo para a histérica aceder ao gozo, pois primeiro precisa
recusar a castração como elemento associado ao todo-gozo do
pai, e faz isso colocando-a no outro, ou seja, o outro é não-todo
gozo; só assim pode tomar o outro como ocupante desse lugar que lhe
dá acesso ao falo, logo, ao gozo. Uma operação logicamente
difícil.
• Para o obsessivo,
alcançar o gozo passa pela dívida de não existir
(pg.165); ele se esquiva do não existir, diz Lacan (pg. 165),
onde não existir remete ao gozo original do pai, logo, à castração.
Se o pai mítico da Horda precisou ser assassinado para que os filhos
pudessem aceder ao gozo, logo, gozar remete ao assassinato do pai, leia-se
ai, à castração do pai. Por isso o Nome-do-Pai opera
no filho como herança e é o que suporta a função
fálica, ao unir o desejo à lei, lembrando sempre que o gozo
absoluto é punido com a morte, logo, só resta aceitar a castração,
um gozo limitado. O problema para o obsessivo é que parece que ele
fica paralisado frente a constatação que afirma: Se Deus
está morto, nada mais é permitido. O efeito da marca deixada
pelo pai morto é mais imperiosa que sua vigência em vida.
• Lacan encaminha
o final dessa aula dizendo que, aquilo que se herda da operação
do Édipo, o luto pelo pai morto, é o supereu. Este terá
na sua essência um apelo a esta reminiscência do gozo puro,
a não castração, sendo seu mandato essa ordem impossível
de satisfazer: Goza!(pg.166)
• Amar e gozar é
o paradoxo que vive o neurótico e que o paralisa ao tomar esse mandato
do supereu como um condicionante moral. E Lacan finaliza a aula invocando
as palavras do Eclesiastes.2
Trago aqui o versículo que suponho ser de onde Lacan buscou a citação
que faz: Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã,
os quais Deus te deu debaixo do sol, todos os dias da tua vaidade; porque
esta é a tua porção nesta vida, e no teu trabalho, que
tu fizeste debaixo do sol. (Eclesiastes 9.9)
____________________
Notas:
1. Giambaptista Vico (Nápoles,
1668-1744). Filósofo, historiador e jurista italiano. Sua principal
obra, Scienza Nuova (Ciência Nova), de 1725, tornou-se
um verdadeiro clássico da teoria da história a partir do século
XIX, Para ele existem verdades humanas que não podem ser demonstradas
através das evidências racionais. Para Vico, a história
é uma repetição cíclica de três idades:
dos deuses, dos heróis e dos homens.
2. O nome Eclesiastes é uma tradução
da palavra hebraica Koheleth, que significa “aquele que reúne”
ou simplesmente um pregador. No início do livro, este se denomina como
filho de Davi, rei em Jerusalém. Não se sabe ao certo a data
em que foi escrito, alguns estimam que foi em 935 a.C, na era do rei Salomão,
outros, que foi escrito aproximadamente em 250 a.C. Este livro é muito
conhecido por dizer que, na vida, tudo é vaidade.
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Contribuição
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
12 de janeiro de 2021
Que me importa
esse Giges,
Potente rei de Sardes?
Não quero, nem invejo,
O cetro dos tiranos.
Se por tais glórias ardes,
Por certo que me vejo
De gostos mais humanos.
Prefiro perfumosas
Ter a barba e as melenas;
Coroar-me de rosas
E, antes que ele se acabe,
Gozar o dia de hoje.
Pois – amanhã – quem sabe?
ANACREONTE, As Anacreônticas. Ed. Campbell, Nº 8, 2001.
Trad. de Almeida Cousin)
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Chegamos a última
aula do 18º Seminário de Lacan. Ele busca, agora, fixar o sentido
de seu título. Antecipa, em sua preocupação, a importância
da Bedeutung, discriminada por Frege em Sinn e Bedeutung,
o sentido e a significação, o sentido e a denotação
e também o sentido e o nominatum.
Ressaltando também
o tempo condicional da frase, uma observação que não
parece ter sido registrada pela tradução, ele parte dos discursos
já trabalhados no Seminário anterior, frisando a importância
de sua ordem, começando pelo discurso do amo, e seguindo pelo da universidade,
da histérica e do analista, estruturados sempre a partir de um semblant,
sendo que o último privilegia a articulação da verdade
com o saber.
1.
O saber de que
se trata, é o do analista, enquanto suposto pelo neurótico,
e a verdade em questão é a dos histéricos e dos obsessivos,
estruturada através da linguagem, em especial de uma linguagem que
se cristaliza no atravessamento de uma dimansão (Lacan diz
demansion) construída no tempo da vida do sujeito,
marcada, sobremaneira, pela religião, da qual diria, não se
pode perder o sentido de re-ligar. Dizer que uma linguagem condiciona a verdade
é dizer da limitação da verdade imposta pela linguagem
de cada sujeito, e também dizer que o neurótico é aquele
que dá mais crédito à sua verdade, ignorante que é
do que ignora.
O discurso do
neurótico surge com o sintoma. O sujeito imagina a vida de um jeito
e ela lhe sai de outro, e isso a ponto de o sujeito não mais reconhecer-se.
É nesse momento que Lacan associa com a operação de
subversão marxista. Em parte porque Marx havia definido o sintoma
como o que não funciona no Real e, em parte, por sua teoria do conhecimento
contrária à posição idealista de Hegel – advogado
da imobilidade das classes sociais –, e que acreditava na possibilidade subversiva
da classe trabalhadora, que ele chamava de proletariado. Em outros termos,
trata-se da distância do eu atual ao eu ideal, conforme
proposto por Freud.
A importância
de Marx, para Lacan, é que a subversão marxista introduz, pelo
engano aí denunciado, a dimensão do semblant. E o discurso
que lhe interessa não é, então, o do semblant,
vale dizer o do engano. O motor da subversão é o reconhecimento
de um valor cujo semblant, por seu peso e medida, é tomado
como moeda sonante. E como esta denúncia gira em torno ao dinheiro,
ao capital, ela enuncia algo da mais-valia, uma promoção da
mais-valia como argumento da subversão.
Neste sentido,
o discurso do capitalista é uma determinação
do discurso do amo. Agora, o que leva Lacan a chamar determinação,
é uma inversão da posição do semblant com a da
verdade: O $ – no lugar da verdade do amo – é o ocupante do lugar
do agente, do lugar do semblant, e, apoiado na verdade o amo, explora
o saber do outro para obter, como gozo, um lucro.
Disc.
do Amo
Disc. do Capitalista
Frente a isso,
Lacan prefere ver o discurso freudiano colocando em causa o que se articula
como verdade em oposição a um semblant. E o que se articula
como verdade é a não existência da relação
sexual.
Está bem,
não há relação sexual. Mas como isso se apresenta
no discurso do neurótico? Lacan responde: - Como um fio enrolado
em torno ao vazio, e o analista fica a escuta, buscando valorizar o ponto
de enigma. A detecção desse enigma apoia-se em uma discordância
com o semblant. Algo em torno a uma composição do gozo
com o semblant, de uma intrusão, nessa composição
chamada de castração, e que no neurótico aparece como
temor, como evitação.
Os rituais de
iniciação passam todos eles por algum tipo de castração,
seja real ou simbólica. A observação geral é
de que se, por um lado, sempre inspira temor, por outro sempre há
constância. As marcas dessa operação ficam registradas
no órgão que, por isso, passa a funcionar como símbolo,
na medida em que lhe ultrapassa. Trata-se do falo, representante, tanto para
o homem, como para a mulher, das dificuldades com o gozo sexual.
Nesse propósito,
Lacan ocupa-se com a coerção à castração
na medida em que ela implica uma lei e a submissão à essa lei
leva à complacência, em especial da histérica, da histérica
em pessoa, mas valendo para todos. A prática da subincisão
(p.157) ajudou-me a compreender todas estas práticas que deixam sua
marca no pênis. Ela consiste em um aumento da abertura da uretra, no
pênis, de até dois centímetros, praticada nos meninos,
muito precocemente, em cerimônia pública. E o interessante é
que, nessas ocasiões, os rapazes mais velhos dessas tribos australianas
voluntariam-se, orgulhosamente, para aumentar essa abertura que, em alguns
casos, pode ir até o início do escroto, obrigando os homens
a urinar abaixados, do mesmo modo que as mulheres.
2.
E o que é
a histérica em pessoa? Uma máscara! Característica
que permitiu a Lacan ver que o gozo, escrito com a variável algébrica
x, não se situa por relação ao falo, escrito como
Φ. Trata-se sempre do semblant do falo. Daí seu interesse pela
Bedeutung, tanto no nível conotativo, subjetivo,
como no denotativo, no nível de sua extensão e, principalmente,
com a Bedeutng, na leitura de Frege, quando se detém no exemplo
de o autor de Waverley, que veiculará um sentido (Sinn)
e Sir Walter Scott, seu autor, que veiculará uma designação
(Bedeutung). A pergunta de se será possível substituir,
sempre, Sir Walter Scott por o autor de Waverley, justifica-se
devido ao fato de a primeira edição desse primeiro romance
histórico (Scott é o pai do romance histórico) ter saído
anonimamente, e serviu para ele tornar-se conhecido assim, como o autor
de Waverley. Então, quando começaram a sair os outros
romances do mesmo gênero, de sua autoria, o público se referia
a ele assim, como o autor de Waverley.1
Seguindo com suas associações, Lacan percebe que o interesse
pelo assunto surgiu de uma pergunta do Rei Jorge, o III ou o IV? Não
importa qual, mas sim que o nome do pai pode ser numerado, enquanto o da
mãe não. Escute-se a força da tautologia: Mãe
é mãe! Trata-se da diferença entre numéro
e nombre, quer dizer, do número, enquanto cifra, e do número,
enquanto quantidade, por um lado, e, por outro, da diferença entre
name, que será sempre o nome próprio, e
noum, que será o nome comum, o substantivo.
São dados
que permitem ao autor dizer que a característica do falo não
é propriamente ser o significante da falta, como se diz a três
por quatro, mas sim aquilo de que não sai nenhuma palavra (p.159).
Sua ocupação
com o nome passa por Carnap que traduziu a Bedeutung de Frege por
nominatum. O nome é aquilo que chama, a
quê? A falar. E o falo não diz nada. Mas serve para ver a consistência
da metáfora paterna, escrita, desde A instância da Letra,
não como registra a tradução, mas como
,
e não
como x minúsculo, como consta no texto publicado por Zahar,
mas sim com o s minúsculo do significado.
No caso de Schreber
o nome do pai, que daí deriva pode dar sentido ao desejo da mãe,
mas, no
caso da histérica,
o discurso do analista pode produzir o nome-do-pai. Veja-se o relato da análise
de Gérard Haddad, com Lacan, no momento em que volta a interessar-se
pela religião dos pais e encontra, nas leis do Talmud, serventia para
seu trabalho. Como diz Lacan, o nome implica essencialmente a lei (p.161).
3.
Lacan aborda
um aspecto menos óbvio do Complexo de Édipo. Antes que apontar
a primazia do pai, destaca sua numerabilidade. Lembram que o jovem Édipo
foge de Corinto para escapar da previsão oracular. Para não
matar o pai Pólibo termina por matar o pai Laio. O pai é sempre
mais de um, daí sua numerabilidade observada em reis, faraós
e tais, enquanto a mãe é inumerável. Por outro lado,
avós e mesmo bisavós – que é outro modo de contar –,
também podem ser pais. Entre os egípcios, a pratica do incesto
entre os governantes foi bastante comum. Amenófis III, por exemplo,
conforme recentes estudos genéticos, com uma de suas filhas foi pai
de Tutankamon e, na morte deste, casou com sua esposa a qual, por sua vez,
era sua neta. O pai tem uma história que pode ser contada, enumerada.
Quanto ao neurótico,
um modo de defini-lo é pela evitação da castração.
A histérica faz isso colocando-a por inteiro no seu parceiro: ele
precisa ser castrado. A expectativa histérica é que desse modo
ela possa gozar, pois, como bem diz Lacan, é a castração
que permite a relação sexual (p.163).
Em seus estudos
sobre o Moisés, Freud, de acordo com Sellin, também aceitou
a hipótese histórica de que teriam havido dois, um que saiu
do Egito e outro que, depois de 40 anos, chegou a terra prometida. Lacan
chama a atenção para a ressalva feita por Freud de que não
criticaria isso, mas ele não nos diz onde. Contudo, parece uma
alusão à Nota Preliminar II, da parte III, do seu Moisés
e o monoteísmo, onde compara seu livro a uma dançarina
que se equilibra na ponta de um dedo do pé.
A sucessão
numérica envolvendo o pai, vista pela lógica de Peano, postula
o zero – um número natural, e neutro – como necessário à
formação da série. É assim que compreendemos
o que significa o assassinato do pai (p.164).
Lacan reporta-se
a uma observação original de outro escritor: nenhum dramaturgo
ousou manifestar o assassinato deliberado de um pai, na condição
de pai, pelo filho (p.164). Nem no teatro grego. Quando Édipo
mata Laio, não sabia que era seu pai, foi apenas uma disputa entre
dois idiotas pelo poder. Mas o interessante, e agora a observação
é do próprio Lacan, é Freud, na elaboração
do seu mito, ter colocado o assassinato do pai no centro mesmo de sua formulação.
Esse assassinato aparece como substituto da castração recusada,
conforme a abordagem da histérica.
Nunca está
demais lembrar que foram as histéricas a abrir, para Freud, a possibilidade
da psicanálise. Do ponto de vista dela, é o falo que a fecunda.
Engendrando-se assim o falo a si mesmo, a criança, seu filho, o reproduz.
Assim como Lacan
designa como namaqum (papludun) a possiblidade logicizada da
escolha na relação insatisfeita da proporção
(rapport) sexual, também é por aí que Freud vai
buscar o modelo para seu monoteísmo em Aquenaton (o horizonte de
Aton, o Sol); afinal, para Freud, Moisés também era egípcio.
E a figura desse faraó, que, antes de mudar seu nome, chamava-se Amenófis
IV (ou Amenothep IV – Amon está satisfeito) e foi casado com
Nefertiti (que não era sua parente), pareceu-lhe sexualmente ambígua,
não apenas castrada mas francamente femininas, como se ele e sua mulher
fossem duas irmãs.
A castração
pode ter uma relação com Φ de x, mas não é
por aí que podemos designá-la, mas sim pela relação
do não todos, ou não todas com o falo (-∀
Φ x ).
A mediação
que aí se encontra é efetuada pelo ao menos um encontrada
no n + 1, de Peano, no qual se pressupõe que o n precedente
se reduz a zero, uma redução possibilitada pelo assassinato
do pai. É por esse sentido oblíquo (Frege diz ungerade)
que o assassinato do pai se relaciona com a Bedeutung, com a significação
do falo.
Em Totem e
tabu, o gozo original, do pai da horda, corresponde à evitação
da castração, tal como o obsessivo mostra ao esquivar-se da
castração. Para ele não há x que possa
inscrever-se na variável Φ de x. O obsessivo se esquiva simplesmente
do não existir. É daí que Freud parte para a criação
do supereu, cujo imperativo é: - goza!
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Notas:
1. Relato de uma viagem desde a civilização até a incivilização,
ao selvagem.
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