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Leituras do
Seminário 18 de Jacques Lacan
DE UM DISCURSO QUE NÃO SERIA DO SEMBLANT
1971


Início: 04 de agosto 2020
Horário: terças-feiras, das 17:30 às 18:10h.
Funcionamento: 10 encontro quinzenais, via plataforma MEET.
Inscrições: para participar, os interessados devem enviar uma solicitação para o e-mail: bs.freud@uol.com.br,
com seu nome, escolaridade, profissão, motivação e instituição da qual faz parte.
Consideraremos as solicitações recebidas até 5 horas de antecedência do horário do encontro
para enviar a senha do ingresso.
Os participantes serão admitidos na reunião, 5 minutos antes do horário. Os ingressos encerram no início da atividade.
Coordenação:
M.Glória Telles da Silva,
Maristela Leivas e
Luiz-Olyntho Telles da Silva.

Leia aqui algumas das contribuições à discussão:


SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
13 de janeiro de 1971
Capítulo I. Introdução ao título desse Seminário

Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
04.08.2020



•    Esse Seminário se constitui de 10 conferência (janeiro a junho de 1971) pronunciadas na Faculdade de Direito. O mais breve de Lacan, até então, exceto pela uma só aula do que seria o Seminário dedicado aos Nomes-do-Pai, em 1964.
•    Durante este Seminário, Lacan viaja ao Japão.
•    Lacan está interessado em explorar a relação entre a palavra e o escrito, ou seja, entre a letra e a palavra.
•    Inicia escrevendo no quadro negro o título do Seminário: De um discurso que não fosse do semblante.
•    Depois retoma o que havia desenvolvido no Seminário anterior (O avesso da psicanálise): Os discursos são 4.
•    O discurso do mestre não é o avesso do discurso da psicanálise; o avesso seria como dois lados separados; direito e avesso;
•    Retoma o texto O Inconsciente, de Freud, onde falou de dupla inscrição: Formulou duas hipóteses. Primeiro a topológica e depois a hipótese funcional: na primeira há uma inscrição da percepção no inconsciente que representa a ideia e há uma inscrição de uma representação desse elemento que será o seu pensamento no pré-consciente. Aí estaríamos no modo direito e avesso; na hipótese funcional, Freud atribuiu a uma mesma inscrição que seria a representação coisa no inconsciente e busca acesso através de um representante da representação pela palavra para a consciência. Considerando isto, Lacan elaborou a formalização dos discursos como torção. Não são dois discursos contrários, mas um que pode passar para o outro se há uma torção.
•    Daí que Lacan vai usar da estrutura da banda de Moebius para sustentar que esses dois discursos, mesmo estando em dois lados opostos, um tem continuidade no outro, passando por esse meio giro da torção;
•    Um discurso não tem por referência um sujeito. O discurso não é do sujeito, mas o determina.
•    Salienta que num discurso, o sujeito está ausente; por isso não se trata do seu discurso;
•    Daí o equívoco de pensar que há em falar de intersubjetividade; só se pode falar em intersignificação;
•    E afirma que um discurso é o que se articula a partir de uma estrutura;
•    Lacan pretende a subtração da presença, pois nisso consiste a vacilação do sujeito que só está quando um discurso se realiza;
•    Menciona a revista Scilicet 2/3, destacando dela dois traços: 1) ausência da presença, sendo esta o que faz marcar o mais-de-gozar. Lacan pretende ir mais além do que chama o incômodo das aparências, e isto está na base de pensar um discurso que não fosse do semblant. E destaca que a originalidade de seu ensino é o fato de que ele, a partir do discurso analítico, coloca-se, em relação ao público, em posição de analisante; 2) o segundo traço refere a escrita sem assinar, aposta que está no propósito da revista Scilicet, onde não havia assinatura do semblant. E diz da sua aposta: nenhum discurso pode ser autoral; ali isso fala.
•    Repete, ao longo da primeira aula, oito vezes o título do Seminário De um discurso que não fosse (do) semblant para:
1)    Dizer que esse é o discurso que dá posição ao analista;
2)    Dar nome aquele discurso que vai mais além do incômodo da aparência (Um discurso só existe se o denominamos e aí podemos interrogar-nos)
3)    Dizer que ao enunciar de uma forma hipotética, lembra a Freud no texto A denegação, quando examina os juízos de atribuição e de existência; alí diz que ao negar, estamos afirmando a existência e Lacan desliza para dizer que na sua formulação, espera dar existência a um discurso onde isso não fosse semblante, um discurso que possa portar um outro saber que não o do semblante de discurso que está para a lógica-positivista
4)    E que esse semblante não pode ser completado de nenhuma maneira por algum discurso;
•    Para o discurso, na psicanálise, não existe nada de fato. O fato que existe é o de dizê-lo; vale dizer que o discurso só existe no momento em que é enunciado; esse é o fato (a isso chama artefato); Entendo que Lacan chama a atenção aí para o que reúne seu público a escutá-lo, não importando o que será dito, mas por saberem que algo será dito. Um discurso vale não por ser discurso, mas por ser dito;
•    Esclarece que não se trata de semblante de discurso, já que isto está para sustentar uma posição lógico-positivista, que submete um significado a prova do sim ou não, e isto não tem sustentação desde a experiência analítica, onde a verdade da interpretação só sabemos pela consequência que desencadeia (só se é verdadeiramente seguida. Entendo que Lacan aponta aí que o efeito de verdade toca ao real (relacionado ao Édipo) e por isso não é semblante; é sangue vivo.
•    Lembra que no pensamento científico partiu do que a natureza oferece de mais aparente, que se sustenta no semblante, a observação dos astros (Descarte, Teoria dos meteoros, 1637). E toma o trovão como a própria imagem do semblante. E diz: O trovão é um sinal, mesmo não sabendo sinal do quê (essa inscrição do Trovão encontramos de forma brilhante no Finnegans Wake, de James Joyce). Daí que todo discurso é semblante. E lembra que os significantes também estão na natureza, estão aí e não são uma coisa individual (lembra que a letra A é uma cabeça de touro invertida);
•    Termina essa primeira aula falando do ponto mortal, o gozo, aludido por Freud no seu texto Mais além do princípio do prazer. O gozo é efeito de discurso. E o discurso do inconsciente é a emergência de uma certa função do significante e, Um discurso que não fosse (do) semblante teria de escrever as consequências desse impossível de se inscrever.

Fica a questão: o que pode possibilitar essa torção?

Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
04.08.2020

É, pois, da impossibilidade de o sujeito analisante expressar-se na língua que está à sua disposição para dar conta do que o atormenta, que ele busca, na relação de alteridade que estabelece com o analista, condições nas quais venha a criar, fazer com a língua, por meio do erro, das falhas de seu próprio dizer. Nessa condição do erro, do equívoco na fala – embora não intencional, ainda que não ocorra sem uma causa –, é nesse ato, pois, bem sucedido, como dizemos, que vai irromper o sujeito, que ele cria na língua, por meio da simbolização de um Real que insiste.
MARIA TEODORA DE BARROS OLIVEIRA, rodopiano, pp.61-2













O título desse primeiro capítulo indica o reconhecimento, por parte de Lacan, de uma certa ambiguidade concernente ao título do Seminário: D’un discours qui ne serait pas du semblant, traduzido por Vera Ribeiro por De um discurso que não fosse semblante. Pois essa ambiguidade deixa seus primeiros traços nessa tradução, que a leva a trocar o tempo e o modo do verbo, a suprimir a contração da preposição de junto ao artigo definido o, e a confundir semblant com semblante.

    A diferença entre os tempos é sutil, mas existe. Na frase de Lacan temos o présent du conditionnel, formado com o mesmo radical do futuro simples e a desinência modo-temporal do imperfeito, serait, que em português corresponde ao futuro do pretérito simples, seria. A tradução, não identificando a função do qui francês – o pronome relativo que –, confundiu o tempo e o modo do verbo do qual se serviu Lacan e usou, nesse lugar, o pretérito imperfeito do subjuntivo, fosse, que tem por função expressar dúvida ou desejo, nunca uma certeza, enquanto o futuro do pretérito expressa uma incerteza e também uma surpresa e uma indignação em relação a algo que poderia ter acontecido posteriormente a um determinado passado.
    Minha opção pelo futuro do pretérito apoia-se, como se vê, em outra desinência. Ao longo do seminário aparecerão as consequências de uma e de outra opção.
    A preocupação de Lacan, contudo, mais que com o predicado, parece-me ser com o substantivo – discurso – acompanhado de seu complemento nominal – do semblant. E para dizer o que entende por discurso, começa glosando não ser o dele. Pois eu posso afirmar que também não é o meu em questão.
    Ora, Lacan dedicara seu Seminário anterior justamente aos discursos que, de forma reduzida, ele faz questão de dizer, enumera quatro, marcando, para todos eles, uma estrutura tetraédrica e constante, por cujo quadrípodos giram os diferentes discursos, a começar pelo do mestre, sempre na mesma ordem, seguindo o da universidade, o do analista e o da histérica, salientando o que dissera no Seminário anterior, que o discurso do mestre não é o avesso do da psicanálise. Trata-se antes de torções, as quais buscam possibilitar o que Freud chamava de dupla inscrição, como fica claro em seu estudo sobre a negação: ao dizer esta não é minha mãe, a inscrição inconsciente inscreve-se também na consciência. Lacan, utilizando-se da cinta de Möebius mostrou a possibilidade disso sem a transposição de uma borda.
    O título do Seminário, ao ocultar o sujeito, diz, de per se, que o discurso não tem por referência um sujeito, mas sim que o determina. Partindo da intersubjetividade, Lacan joga com a presença do outro: em francês, a palavra presse serve bem para seu desígnio: é também a pressão do plus-de-gozar. E o radical inter, de intersubjetividade, de entre um e outro é expresso pelos símbolos S1 – S2, os significantes que dizem do sujeito na sua ausência, marcas do inconsciente.
    A passagem pelo discurso da universidade leva a marca do incômodo, por sua neutralidade, provocada pela busca da pureza da inter significação. Uma pureza que esconde o uso da língua como artefato, um recurso de Lacan para dizer que o fato só existe pelo fato de dizê-lo. E, uma vez tornado fato de discurso, pode-se fazer com ele qualquer coisa, de uma obra de arte a uma mentira, às vezes como expressão de verdade, embora os exemplos do último caso, desde Epimeteu, não abundem.
    Para dizer do semblant, galicismo já incorporado pelo dicionário Houaiss, com a conotação de exterioridade enganosa, Lacan contrapõe-se ao positivismo lógico, requerente, para sua comprovação, de uma verificação. Na psicanálise, nascida sob o signo de Édipo, de modo diferente, sabemos da verdade de uma interpretação por suas consequências. Na psicanálise, a interpretação desencadeia a verdade. É o que nos permite dizer, parafraseando um título dos Escritos, que o desejo é a sua interpretação. E o efeito dessa verdade, se não é semblant, e sim sangue vivo, sangue de Édipo, ele não refuta o semblant.
    O discurso como artefato é o nosso dia-a-dia, enquanto o sustentável é o da ciência, o qual começa pela aparência dos astros. Ocupa-se dos meteoros: o vento, a chuva e o arco-íris. O trovão  indicador do raio, do dardo de Zeus –, é signo do nome do pai, muito bem representado no Finnegans Wake com palavras de uma centena de letras, indicando sempre novos inícios. O trovão é a imagem do semblant e o que importa mesmo é que o significante é igual ao status do semblant. Trata-se, enfim, da relação com o real genesíaco, desse real que sempre está.
    É nessa medida que não há semblant de discurso. Discurso é semblant na natureza (porque está na natureza) e um sujeito só pode ser produto da articulação significante. Sua forma genitiva objetiva – por sua atuação passiva – o determina, diferente do genitivo subjetivo, cujo princípio é ativo. Assim, o sujeito não determina a articulação significante, antes é por ela determinado.
    O reconhecimento da emergência do discurso do inconsciente, desde um real impossível, enquanto expressão do que não cessa de não se escrever é o que teria alguma chance de ser um discurso que não seria falso, para dar uma outra tradução possível às palavras de Lacan.


SEMINÁRIO XVIII, de Jacques Lacan :
De um discurso que não seria do semblant
20 de janeiro de 1971
Cap. II: O homem e a mulher
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
18.08.2020

•    Inicia esta aula retomando uma questão colocada na aula anterior: aonde quero chegar? Lacan faz uma torção e prefere explorar essa questão pelo seu avesso: de onde eu parto? ou, de onde quer fazer seu público partir. E explora dois sentidos: partir para ir a algum lugar com ele e também, saírem de onde estão.

•    Relaciona este aonde eu quero chegar com pergunta Che voui? e da importância que tem numa análise manter essa pergunta em suspenso, pois respondê-la de imediato produz uma inércia, o mesmo que dizer que não leva a lugar nenhum. Mas, como alí não fala desde o lugar de analista, diz que vai responder essa questão (de onde eu parto?).

•    Vou destacar três pontos que considerei essenciais dessa aula:

1º -  Lacan disse no Seminário anterior, O avesso da psicanálise, onde trabalhou e apresentou seus quatro discursos, que havia deixado um lugar sem nomear (o do agente do discurso), justo o lugar que dá nome ao discurso, dependendo de qual elemento ocupa esse lugar. Ele vai então dizer, nesta aula, que este é o lugar do semblant. O semblant (seguindo a indicação de Luiz-Olyntho para o uso dessa palavra que há em português e é mais adequada que semblante) vem a ser a função primária da verdade de um discurso: aquele que fala diz a verdade; destacando justamente que a revolução de Freud foi mostrar que o que faz sintoma, a dimensão do sintoma, no dizer de Lacan, é que isso (o inconsciente) fala; Por isso, a promoção do sintoma é tão importante, dirá que é mesmo decisivo. Só quando há um sintoma, há demanda para análise.

Vai também nos lembrar que a força que tem um discurso, é justo porque está marcado pelo elemento que ocupa este lugar. E ressalta que, especialmente no discurso do mestre, em torno do qual se organizam diversas civilizações, este tem sua força, não tanto pela violência - como poderia se presumir que ocorreram mas assim ditas sociedades primitivas -, mas por ter seu motor em um significante fundamental: é dali que o significante fala. Dito de outro modo, se um homem tem tanto valor quanto outro, o que eleva o seu discurso a um lugar de mestre é a força de seu dizer.

E nos diz que o fato da verdade ocupar o lugar que fica abaixo da barra do lugar do semblant, não significa ser o contrário do semblant. Simplesmente indica que a verdade é a dimensão, diz-mansão (mansão do dizer, que fica melhor em francês, dit-mansion) e que essa diz-mansão da verdade é o que sustenta o semblant. Ou seja, na posição daquele que emite um discurso, há uma dimensão da verdade. Isso é o que faz a força de cada elemento que nomeia um discurso. Daí que, o que fala do lugar do semblant, aparenta uma verdade, já que a verdade suporta o semblant.

•    Retoma ainda dois pontos da primeira aula: 1) que discurso é o (arte)fato, e 2) que semblant é o contrário do artefato. Aonde vai com isso? Nos indicar que as Ideias, como propôs Platão, compõem uma realidade que emana do discurso que dela construímos e isso graças ao significante que, mesmo sendo buscado na natureza, tem um valor de função e não de signo. Preserva o que não é dizível, ou seja, o real.

•    O discurso científico, o discurso articulado, tem sua referência no impossível, que é o real; já que é o real que faz furo no semblant, e por isso está sempre estimulando sua produção. O limite do discurso científico, do discurso, é o que não pode ser dito.

2º - Lacan dirá que o que nos concerne na psicanálise é o campo da verdade, que resiste e não é permeável a todos os sentidos, pois lidamos com o fantasma que é consequência do discurso; ou seja, o sujeito ($) quando interrogado pelo pequeno a, o mais-de-gozar, só pode produzir como efeito seu fantasma (essa é a formula do fantasma $<>a);essa é a verdade do sujeito, logo, impossível de ser toda dito, pois o que nos interroga é da ordem do Real.

3º - O mais importante desta aula, ao meu entender, está na parte 3 onde Lacan trabalha a diferença entre sexualidade e as relações entre o homem e a mulher, reportando-se a Freud. Deixa claro que sexualidade está para o universo do biológico e isso nada tem a ver com o que Freud descobriu como sendo o que move as relações entre o homem e a mulher, que é outra coisa; daí sua enunciação polêmica para dizer que entre humanos não há relação sexual.

Para explorar esse tema, toma como contraponto (e recomenta a leitura) o livro de Robert Stoller Sexo e gênero (1968), um livro de um psiquiatra e psicanalista americano que dedicou-se a estudar o tema do transexualismo (na revista Scilicet 4 há um artigo, Contribuição da psicanálise ao transexualismo, que toma como referência este livro de Stoller), onde, para Lacan, está colocado o desejo, a qualquer custo de mudança de sexo. O interessante é que Lacan toma aí uma posição, apontando para a desconsideração, nestes estudos de casos, da face psicótica, dessas estruturas, uma vez que o autor desconhecia o conceito de forclusão. E agrega: É próprio do destino do seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres e que o que define o homem é sua relação com a mulher e vice-versa. Pode-se dizer que, para Lacan, a definição de gênero homem ou mulher se dá sempre na presença de uma diferença que se instala na relação entre uma e outra posição. Jamais como definição intrínseca.
•   Portanto, a relação sexual está fundamentalmente para a ordem do semblant, na medida em que o que move a identidade de gênero, homem e mulher, situa-se, desde muito cedo, em identificar-se com um dos sexos. Lacan diz: Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem, e que esse semblant sexual é veiculado por um discurso, para os seres de fala, o que faz com que as vezes, ao invés de cortejar uma mulher, o homem possa violar a mulher; ou seja, nem sempre o homem ou a mulher conseguem sustentar o semblant todo o tempo. E, afirma, que no limite do discurso está o real e aí pode se apresentar a passagem ao ato, o sair da cena, quando ocorre o rompimento do laço discursivo com o objeto plus-de-gozar, fazendo diferença com o acting, que é trazer à cena o semblant.

•    Destaca então que o mito do Édipo designa o impossível do gozo, por isso mítico, de gozar de todas as mulheres, e só pode ser apreendido desde sua contingência orgânica que conecta-se com os objetos pequeno a: seio, excremento, olhar e voz, sendo o falo, enquanto significante, o que normatiza esse gozo e que está, por isso, solidário a um semblant. Vemos aí Lacan nomear quatro objetos e um significante e que esse conjunto é o que organiza a relação gozo e semblant entre homem e mulher. Vai dizer assim: A identificação sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher, mas em levar em conta que existem mulheres, para o menino, e existem homens, para a menina. Para os homens a menina é o falo, e isso os castra. Para as mulheres menino é o falo, e isso o que as castra.

•    A tudo isso chamou de operação semblant, onde a mulher é para o homem a hora da verdade. Para o homem, gozo é semblant. Para a mulher, ela sabe que gozo e semblant são disjuntivos. Gozo e semblant podem se equivaler na dimensão do discurso, mas são distintos.
•    E termina esse ponto falando do provérbio Cherchez la famme, procurem a mulher. E agrega: para ter a verdade de um homem, seria bom saber quem é sua mulher, ou, para pesar uma pessoa, não há nada como pesar sua mulher. Já para a mulher...bem, não é a mesma coisa, visto sua enorme liberdade com o semblant.
•    Termina a aula com um dito no mínimo surpreendente. Diz que talvez só seja lacaniano por ter estudado chinês no passado. Refere-se a Mêncio (Meng Tzu, mestre Mêncio, 370 a.C – 289 a.C. Foi discípulo de Confúncio), cujo discípulo diz: se não encontrardes algo do lado do discurso (yen) não o procureis do lado do vosso espírito (ou coração, hsin). E se não encontrardes do lado de vosso espírito, não o procureis do lado de vossa sensibilidade (tchi).


Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
18 de agosto/2020

Quando alguém se prepara para um discurso, é costume tomar precauções com o objetivo de melhor comunicar-se com o público. Nesta aula de Lacan, não é diferente. Reparem em sua abertura com uma denegação: - Não foi para me garantir. Um recurso nada frequente em seu Seminário. Pois então, suponho que sua intranquilidade deriva do tema a que se propõe. Eu, pelo menos, fico muito intranquilo!

Falar sobre o homem e a mulher, um tema tão comum, nunca é fácil para quem não quer ser um mero charlatão. Vejam que também se preocupa com os que ouvem mal, no fundo da sala. Está bem, existem os fatores objetivos de acústica, mas também existem os subjetivos: não é raro os alunos pouco confiantes buscarem o fundo da sala. O entendimento requer conhecimento e referências anteriores, e o mestre quer seus alunos mais próximos de si.

Aonde quero chegar? é uma pergunta pelo desejo do Outro, equivalente ao Che vuoi?, de Cazzotte. E, justamente por ser uma pergunta importante, é preciso deixá-la em suspenso, tal como ele argumentará, ao final da aula, com Baltazar Gracián, ressaltando a importância do silêncio. Mas, enfim, o que Lacan quer é que todos passem para a frente, para junto dele.

1.
Na aula passada, falara do semblant, e agora o retoma como função primária da verdade, essencial para designar essa função, sem a qual é impossível qualificar o que se passa no discurso. Quando traduzimos ao português a fala da Verdade, o je parle, transparece aí, mormente, o falo. E é na fala que se pode reconhecer o movimento revolucionário de Freud ao colocar em primeiro plano a função dos sintomas, tal como sugerira Marx, de quem foi contemporâneo (quando Marx morreu, Freud já contava 27 anos). E trata-se do sintoma como o que não funciona no Real. E o interessante é que o sintoma fala até com os que não sabem ouvir, mas não diz tudo, nem para os que sabem.

Interessante também que a função dos sintomas não é uma invenção, nem de um, nem de outro, mas algo que vem ronronando, há séculos. Quando Lacan usa esse verbo, ronroner, ele pode fazê-lo tranquilamente porque seu sentido primeiro, em francês, é uma referência ao ruído contínuo de qualquer geringonça, e depois vem a respiração do gato. Em português, a respiração do felino vem em primeiro. E quando fala no discurso, destaca o lugar do agente como definidor. Assim, podemos dizer que a função primária da verdade é sustentar o semblant.

S1
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Aqui fala o Lacan-analista-chinês: é desde sua cultura chinesa que ele reconhece a importância do mestre, um mestre que não foi formado pela Sorbonne nem por Oxford, nem por Salamanca, mas de um mestre que aprendeu da vida, no silêncio das meditações. É nesse sentido que o discurso do mestre não vinga pela força; é diferente da violência, algo muito distante, porém, da cultura ocidental que primeiro dava bolos nos alunos distraídos e que, depois, se desinteressou deles. Agora, se isso era assim por tratar-se de uma cultura primitiva, não temos como saber. Lacan diz arcaica, e toma a raiz grega, ἀρχή. Contudo, a denotação primeira de arché é origem, princípio. E, então, leio assim: no princípio tem que estar o discurso do mestre. Os outros seguirão o estilo.

O interesse primeiro pelos outros discursos será uma forma de, como ele diz, de noyer le poisson, de afogar o peixe, uma forma de tapeação.

Então sua fórmula: o que chamamos de revolucionário consiste no deslocamento do discurso. E o discurso gira sobre suas quatro patas, aqui chamadas de godets. Está bem, godés são as forminhas onde o pintor mistura suas tintas, e Lacan as usa, muito provavelmente, para destacar o diferente colorido de cada discurso. Mas godets são também as pregas das saias plissadas usadas pelas meninas para ir ao colégio e que os homens elegantes seguem usando nas camisas próprias para os momentos de gala, e que servem para dizer dos desdobramentos do discurso, cujo semblant é sempre sustentado por uma verdade.

Aproveitando-se de outra pergunta indireta  Será Lacan um idealista pernicioso? , reforça a importância do semblant. Primeiro porque o discurso é o artefato, aquilo possível de tomar a forma que se queira, e o semblant é o contrário do artefato. Depois, porque o conhecimento já não deriva da percepção direta, como propunha Berkeley, para quem ser est percipi, e sim de um discurso. E do discurso de Aristóteles ele vai dizer que se comporta como um místico por destacar a importância da ousia, i.e., do Real. Acredito que se possa aproximar isso da arché, pois a ousia conota einai, a essência, a substância (de substare). Trata-se de algo da ordem do indizível – isto é o místico –, mas de algo que se busca argumentar.

Será, então, idealista? Não, porque para o idealismo o mundo só pode ser compreendido a partir de sua verdade espiritual. E também não é nominalista, pois seria um absurdo para ele não acreditar nos universais e teria de renunciar ao materialismo dialético, i.e., teria de renunciar à compreensão de que a matéria está em uma relação dialética com o social e com o psicológico, mas o importante é assinalar que o discurso científico só encontra o Real na medida em que depende do semblant. A articulação algébrica do semblant é o único aparelho por meio do qual designamos o Real, na medida em que o Real é o que faz furo nesse semblant articulado que é o discurso científico que só tem como referência a impossibilidade a que conduzem suas deduções.
2.
Os prolegômenos acima são para diferençar a psicanálise da ciência, pois o que do Real nos concerne, difere de sua posição na física. Trata-se de algo que resiste e que se chama o fantasma, relação que é rompida no discurso do mestre por uma impossibilidade a ser resolvida no discurso do analista,
 
quando o $ estará em frente ao semblant do plus-de gozar. Então aparece aonde Lacan quer chegar: ao plus-de-gozar pressionado, uma espécie de passer au caviar, um método de censura usado na Rússia de Nicolau 1º, com o sentido de denegrir, algo que não tem nada a ver com o que Freud chamou de discurso do líder, mas que, sem dúvidas, o destaca. E aqui ele recorre, por engano, ao final do capítulo VII, A identificação, de Psicologia das massas e análise do eu, de Freud, quando se trata do final do capítulo VIII, Estar amando e hipnose, para resgatar daí o esquema da introjeção do líder no lugar do Ideal do eu e o exemplo que dá é o do bigode de Hitler, tomado como modelo do traço unário, do einziegerzug, para a identificação, compreendido aqui como
   
plus-de-gozar, vale dizer como a faceta de gozo do traço unário, sua subjacência sexual. É o que acontece com o discurso.

3.
Para Lacan, a sexualidade é importante desde o ponto de vista do que ele chama de rapport sexuel, onde rapport tem três sentidos: o mais antigo é o de relato, depois vem o de proporção e, finalmente, o de relação. É nesses sentidos que o rapport não existe, quer dizer, que não existe de forma definitiva. Os infindáveis romances de amor estão aí para provar que o relato definitivo nunca foi escrito; as proporções entre o homem e a mulher são desequilibradas e não existe a relação absolutamente satisfatória: nem bem se termina uma e já se pensa na seguinte.

E, para examinar a diferença dos sexos, conforme ao seu estilo de ir aos estremos, parte das posições transexuais, lembrando que Robert Jesse Stoller, em suas Pesquisas sobre a identidade sexual a partir do transexualismo, de 1979 (o Seminário é de 1971, mas a indicação... o original é de 1968), deixa de fora, completamente, a face psicótica desses casos. Ele não toma em consideração a forclusão lacaniana.

No final, o que importa, é isso: o que define o homem é sua relação com a mulher, e vice-versa. Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer homem para a mulher; trata-se da dimensão do semblant, uma dimensão comum, lembra Lacan, aos vertebrados tetrápodes (os que tem quatro membros), nos quais, na maioria dos casos, o macho é o agente da exibição. A mulher é o alvo dessa exibição: ela depende dessa exibição para sua excitação. Essa exibição pode surgir também no discurso e é nesse nível que, para ela, tratar-se-ia de um discurso que não seria do semblant. Então, sem a cortesia animal, acontece o rapto, a violação, que está tanto para o homem como para a mulher. – No acting-out, é o semblant que passa à cena.

O discurso é o que permite o plus-de-gozar, tomado aqui como o que está interdito no discurso sexual. E então ele solta uma de suas invectivas picantes: Não há ato sexual. E, quanto a mim, só posso entender que esteja se referindo ao ato como sendo definitivo, porque os outros existem, e fazem a fortuna dos motéis.

O mito de Édipo, o hipermito, como enuncia Lacan, mostra como o Real se encarna no gozo sexual como impossível, quer dizer, como algo que não sessa de não se escrever. É assim que o Édipo designa o ser mítico, cujo gozo seria o de todas as mulheres.

Então, para haver identificação sexual, não basta se acreditar homem ou mulher, é preciso levar em conta que existem mulheres para o menino, e que existem homens, para a menina. Em outras palavras, o homem precisa acreditar-se junto à mulher, e a mulher precisa acreditar-se junto ao homem. E o importante é que, para os homens, a menina é o falo, e é isso que os castra; para as mulheres, o menino é o falo, e isso é o que as castra.

E esse falo, ele é o Real do gozo sexual, equivalente ao nome-do-pai.

É depois de todas essas premissas que Lacan perguntará pelo lugar fundador do semblant. Como resposta, dirá que a mulher é a hora da verdade para o homem. O homem se prepara por toda a vida para esse enfrentamento, muito mais difícil do que enfrentar um rival. Lembrei de Acteon morto por seus próprios cães quando quis alcançar Ártemis/Diana.
É que enquanto, para o homem, semblant equivale a gozo, para a mulher há uma disjunção entre esses dois elementos; ela sabe que é semblant. E quando queremos saber do homem, Lacan recomenda: - Cherchez la famme; ela é a verdade do homem, embora, aqui, contudo, a recíproca não seja verdadeira, porque a mulher tem uma enorme liberdade com relação ao semblant. E como, neste momento do seminário, há muitos risos, Lacan acrescenta: - A mulher consegue dar peso até a um homem que não tem nenhum.
4.
Essas são verdades de sempre, faladas boca a boca. Quando surgem na literatura, ditas por alguém que sabe o que diz, é preciso prestar atenção, como por exemplo Baltazar Gracián, no seu L’homme de cour, de 1646, no qual destaca a importância da prudência e da dissimulação (uma variação do proposto por seu contemporâneo, o Cardeal Mazarino: contém-te e abstém-te, equivalentes a simula e dissimula, estando a simulação no lugar da prudência, com o sentido de conhecer-se a si mesmo e a dissimulação no sentido de conhecer ao outro.) Para tanto, diz Gracián, o silêncio é o santuário da prudência, recomendando a imitação de Deus, esse Deus que mantém todos os homens em suspenso, e assim ser um santo, palavra que para ele tem o mesmo sentido do ideograma chinês shénshèng, 神聖 [, Deus e , santo], que quer dizer sagrado.


SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
10 de feveiro de 1971
III. [O] Contra [d]os linguistas
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
1º de setembro de 2020


•    Lacan começa esta aula comentando sobre a greve1  que ocorria em Paris neste dia e diz: Não faltarei à presença de vocês. Lacan fala de seu compromisso com seu público, e que o que o leva a manter sua aula é a cortesia ou o yi, em chinês, ou seja, responder com imparcialidade; é uma das quatro virtudes fundamentais.2

•    Lacan propõe ao seu público uma conversa familiar, diferente do que havia pensado em falar, em função de um artigo saído no jornal que tratava sobre os investimentos na Universidade, sobre o qual não parece muito de acordo. Diz que sua guinada é o modo de levar em conta a greve.

•    Refere então que sua relação com a Universidade é marginal, embora lhe deva respeito por ter sido acolhido por ela. Menciona então os muitos ruídos incidentais, ecos e murmúrios que têm chegado a ele desde o campo universitário da linguística. E faz referência especialmente a um artigo de um linguista, que havia saído há 2 anos na revista La nouvelle revue française (nº 163 de 10 de janeiro de 1969) [o linguista é Georges Mounin, e o artigo chama Quelques traits du style de Jacques Lacan], onde ele faz muitas críticas ao modo como Lacan empregou a linguística no campo da psicanálise. Mounin chamou o uso feito por Lacan dos conceitos lingüísticos de coloração estilística, eque só é justificada pelo contexto intelectual da época.3

•    Lacan lê neste artigo a sineta que teve que ouvir, embora seja surdo, indicativo de que seu lugar não é sob a marquise da universidade.

•    Daí passa a questão que considera relevante colocar neste momento: Será que se é estruturalista ou não quando se é lingüista? E, daí, se diz funcionalista, referindo que o estruturalismo é uma coisa que serve de rótulo para dizer da seriedade daqueles que se reservam o direito de falar sobre a linguagem. E busca examinar a relação da linguística com o que ele ensina. Diz que é em torno do desenvolvimento lingüístico que sustenta o eixo do seu ensino e se faz um uso metafórico da linguística, acusação desdenhosa de Mounin, é por reconhecer que só existe linguagem metafórica. Coisa que os linguístas parecem ignorar. Daí considerar abusivo reservar aos linguístas o direito de falar da linguagem. E mais adiante, em dois momentos, diz:

A linguística só pode ser uma metáfora que se fabrica de propósito para não funcionar e que a psicanálise desloca-se com todas as velas desfraldadas por essa mesma metáfora. [pg.44 e 50]

•    Sustenta que, fala como psicanalista e se tem um público que o escuta é porque algo ele sabe. E aí coloca nos seguintes termos o seu saber: Digamos que...Eu sei a que me ater, e faz diferença do enunciado, Sei onde me posiciono [pg. 40].

•    Argumenta que ninguém sabe o que diz ao dizê-lo, ninguém tem o mapa, mapping, para dizer onde estamos. Entendo que aí Lacan aponta a duas vertentes. A primeira ao fato de que não somos donos de nosso dizer e nunca podemos afirmar uma posição definitiva, na medida em que só sabemos do resultado ao final, seja de uma frase, de uma cura, de uma vida. Aí saberemos onde chegamos, logo, onde estamos. Do contrário, estamos sempre no caminho, sem saber bem aonde vamos chegar. A outra vertente, é o fato de que é só pela relação com o Outro que podemos situar onde estamos.

•    Aí se detém no discurso da ciência, que repudia esse onde estamos, o incerto desse lugar, já que a toda hipótese formulada busca a verificação da sua verdade, mas, alerta Lacan, isso nada prova a verdade da hipótese, pois na lógica, se pode tirar uma conclusão verdadeira de uma premissa falsa.

•    Ninguém pode afirmar: Sei o que digo. Isso foi o que a descoberta freudiana nos ensinou. Nenhum discurso é dono da verdade. Ninguém sabe ao certo o que diz. Só sei que nada sei, já dizia Sócrates E a causa disso está na própria estrutura da linguagem.

•    Diz que para a linguística ele está se lixando, o que lhe importa é a linguagem, já que é com ela que lida quando faz uma psicanálise. [pg.43]

•    O referente de um discurso é sempre real, por isso impossível de designar, e toda designação é metafórica. O significante evoca um referente, mas nunca o certo e assim construímos uma linguagem.

•    Lacan então trabalha o ideograma japonês wei, dizendo que pode significar tanto agir ou ter a acepção de como, servindo de conjunção para construir metáforas, ou seja, para referir-se a outra coisa. O verbo transforma-se numa conjunção. Diz Lacan: Quando uma coisa se refere a outra, da-se a maior amplitude, a maior flexibilidade ao uso eventual desse termo, wei, o qual, no entanto, significa agir [pg. 44/45]. E diz que isso lhe ajudou a generalizar a função do significante. E lembra a frase de Fausto, de Goethe: no princípio está a ação, dizendo que é o mesmo que diz São João: no começo era o verbo; para dizer da força que está contida no ato inaugural da palavra.

•    Fala, então, da articulação dupla, (conceito que o linguista Andrés Martinez formulou e que fala dos dois níveis – morfemas e fonemas – que se articulam nas palavras) e faz uma crítica a que numa língua como o chinês, essa articulação é bem mais bizarra, já que os fonemas, sozinhos, já tem significação e quando se juntam para formar uma palavra, esta não tem nenhuma relação com o que os fonemas significam.

•    Menciona também dois conceitos criados pela linguística: competência e performance.4

•    Discorre sobre o discurso do capitalista5, onde há uma troca de lugar dos elementos do semblant e da verdade. O sujeito, colocado no lugar da verdade no discurso do mestre, ocupa o lugar do semblante no discurso do capitalista, onde o S1, significante mestre, fica sob a barra, no lugar da verdade.

   (ver ao lado)

•    Essa inversão, indicativa da relação do mestre moderno (o capitalista), leva a uma ligação cruzada do sujeito com o produto, mais-de-gozar, fazendo nascer o sujeito sem limites, por estar nessa ligação cruzada em que o gozo não cessa de se inscrever, o que levaria ao consumir-se na busca incessante de produzir o gozo, onde o suporte do mais-de-gozar é a metonímia. Na conferência de Milão, Lacan dirá que o discurso capitalista é loucamente astucioso e destinado a explodir.

•    Isso se desprende de um discurso desenvolvido (o discurso do capitalista). Mas o que é um discurso desenvolvido para Lacan? Depois vai falar em lógica subdesenvolvida. Outra interrogação para muitos.

•    Diz: quando um discurso está suficientemente desenvolvido, alguma coisa, da qual nada se sabe, e que tem relação com o que chamou do hsing, da natureza, e ming, decreto do céu, causa interesse. Em nosso campo, isso é o sintoma:

O sintoma: é por ele que vocês se orientam, todos vocês. A única coisa que lhes interessa e que não e um completo fiasco, que não e simplesmente inepta como informação, e aquilo que tem o semblante de sintoma, isto é, em principio, coisas que nos dão sinal, mas das quais não compreendemos nada. É só isso que há de seguro: há coisas que nos dão sinal e das quais não compreendemos nada [pg. 49].

•    Por fim, nisso da natureza, no sintoma que não funciona, tem algo de insatisfatório.


Notas:
1.  Greve, vem do francês grève, terreno de areia ou cascalho a beira do mar ou beira-rio. Era na Place de Grève (hoje Place de l'Hôtel-de-Ville), na margem do rio Sena, e Paris, onde se reuniam os trabalhadores sem emprego ou insatisfeitos com seu trabalho, deu origem a palavra greve.
2. Na minha pesquisa, encontrei que Yi é justiça, e faz parte de dois conjuntos de conceitos fundamentais: o Sizi, com quatro elementos: (Zhong (忠, lealdade), Xiao (孝 , a piedade filial), Jie (节, continência) e o Yi, e também do Wuchang, com cinco elementos: Ren (a Humanidade), Li (ritual), Zhi, (conhecimento) e Xin (integridade) e Yi (justiça). Podemos equivaler o responder com imparcialidade, de Lacan a justiça
3.  Cardoso, Maurício José d’Escragnolle. Retorno sobre a influência de Saussure sobre Lacan. Artigo publicado na revista Analytica (São João del Rey), v.1, n.1, de junho/dezembro de 2012,
4.  Na obra Aspectos da Teoria da Sintaxe, publicada em 1965, Chomsky define como competência o conhecimento que o falante-ouvinte possui da estrutura da língua e desempenho como o uso concreto que ele faz da língua, mas o considera uma realização imperfeita oriunda de fatores físicos e psicológicos.
5.  O matema deste discurso foi apesentado na conferência de Milão, em 1972: http://espace.freud.pagesperso-orange.fr/topos/psycha/psysem/italie.htm

Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
1º de setembro/2020

Lacan não tinha o costume de batizar cada uma das aulas de seu seminário com um título. Deduzo então que cada um dos títulos das aulas constituintes de seus Seminários seja coisa de seus editores. Não é má ideia! Ajuda o leitor a situar-se no tema a ser desenvolvido.

Neste 3º capitulo pareceu-me conveniente modificá-lo, justamente para dar uma noção mais precisa do tema a seguir, pois, nele, Lacan, para os linguistas, é quase só elogios. Então, o que proponho é substituir o proposto "Contra os Linguístas", por O contra dos linguistas. O que Lacan faz, neste momento, é valer-se da crítica que lhe fazem os linguistas para dizer o que pretende: a importância da metáfora na construção da linguagem.

A crítica dos linguistas, na verdade, de alguns linguistas, é que Lacan, da linguística fazia um uso apenas metafórico.

Uma das justificativas para tal, está na diferença entre sei a que me ater e sei onde me posicionar. Parece-me como se o importante fosse o objeto da observação, mais do que a posição do observador. O discurso da ciência, diz ele, repudia esse onde me posiciono. É porque a hipótese não se comprova que Newton teria criado a expressão hypotheses non fingo; ele não a simula porque, enfim, como diziam os escolásticos, ex falso sequitur quodlibet, de uma premissa falsa podemos concluir uma apódose verdadeira. O cientista precisa ter a coragem de abrir mão da hipótese quando se comprova errada.

Por outro lado, o importante é ater-se ao objeto em questão. No caso, ao inconsciente. Daí sua formulação de saber que o que se diz é o que não se pode dizer. Lacan é socrático no seu só sei que não sei. Para compreender o inconsciente há que valorizar o significante na construção da linguagem, pois não há metalinguagem, e é pelo referente nunca ser o certo que se constrói a linguagem.

Estamos todos lembrados de Lacan tomar suas bases na linguística de Saussure, invertendo seu signo linguístico, mas mantendo, porém, o valor da imagem acústica do significante e identificando esta imagem com o Real impossível de designar. É na busca de tornar possível esse impossível que se forma e desenvolve a linguagem, mesmo embora essa linguagem esteja prenhe de enganos. E são justamente esses enganos que o levam a buscar apoio na Teoria das Descrições, de Russel: é porque as descrições do objeto são sempre enganosas, como mostra a lógica da linguagem-objeto, que nunca estamos certos sobre o referente.

É então que Lacan lembra de suas aulas de chinês, da função metafórica dos ideogramas. Pois bem, como eu não sei chinês, e meu conhecimento dessa língua é apenas enciclopédico, minha crítica fica sempre com uma dúvida. Quando ele está falando da ação, na parte 2, falando da inação, do wúwéi, 無為 [onde quer dizer não e traduz-se por para], diz que todas as palavras [em chinês] são monossilábicas, enquanto a enciclopédia diz que sim, que o chinês é considerado uma língua monossilábica, porque cada sílaba tem um sentido, mas as palavras, em geral, ela acrescenta, são dissilábicas, aliás como vemos em seu próprio exemplo. Quando a escrita foi estabelecida, na China, por imposição do imperador Qin Shi Huangdi, no terceiro século a.C., os dialetos permaneceram e, para um mesmo signo, ideias, sentido e pronúncias diferentes foram mantidas, e o valor final para sua compreensão vem dado pelo sentido do tema da conversação. É a isso que é preciso ater-se.

Em português, também acontece algo assim. A mesma palavra, com a mesma pronúncia, pode ter sentidos opostos, dependendo da entonação e do contexto. Formidável é um exemplo: pode significar tanto algo maravilhoso, como algo desprezível, dependendo do que ela é for mi, como canta Charles Aznavour. Com a palavra bárbaro acontece o mesmo, assim como com tantas outras. E sobre a importância do valor silábico, lembrei de um exemplo de Freud, quando quer lembrar do nome da capital de Monte Carlo e a palavra não lhe vem à consciência, ficando retida na memória. Em seu esforço para lembra desse termo, lembrou-se do Rei Alberto, de suas façanhas, de seu grande amor pelo mar que resultou naquele importante museu oceanográfico, construído sobre o penhasco, e de cujas janelas sempre se vê o mar. Lembrou também, junto de Monte Carlo, de Piemonte, Albânia (logo substituída por Montenegro), mais Montevidéu e Cólico. Reparou então que quatro das cinco palavras continham a sílaba mon, sem nenhum significado, mas cujo reconhecimento foi o suficiente para lembrar o nome da capital: Mônaco. A sílaba final estava em Cólico. Mas lembrou também que Mônaco é a palavra italiana para Munich, que em português dizemos Munique, cidade que estava ligada a um episódio de sua vida ao qual atribuiu a função inibitória da lembrança.

Na parte três, Lacan trata do discurso do capitalista, no qual, a partir do discurso do mestre, há uma inversão entre os lugares do semblante e da verdade.

 

As consequências têm a ver com a relação do sujeito, $, com o gozo, a, o que, a bem dizer, interfere no propósito primeiro de um discurso que é o de fazer laço social, pelo menos o laço social que se espera de uma análise, na qual o reconhecimento do outro esteja em primeiro plano. O exemplo que aí nos dá é o de Nixon, uma espécie de máscara do verdadeiro Houphouët-Boigny, esse político, presidente da Costa do Marfim, que construiu uma fortuna de algo entre sete e onze bilhões de dólares às custas da miséria de seu país. Richard Nixon, em todo o caso, diz-se, foi analisado, o que bem mostra os efeitos de uma análise levada a efeito sob o signo da perversão; e estou dizendo perversão onde Lacan diz tratar-se de algo da ordem do incurável.


SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
17 de feveiro de 1971
IV. O Escrito e a Verdade
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
15 de setembro/2020

•    Lacan inicia essa aula apresentando uma formulação de Meng-Tzu (Mêncio) escrita no quadro-negro.
•    Ele segue ocupado com a questão: qual é a função da escrita?(pg. 52)1. Sobre a inscrição, dirá que ela designa o seguinte:

Tudo o que está sob o céu [T’ien hsia], não é outra coisa que a designação da fala, [yen, que pode ser entendida como a natureza], a natureza do ser falante (pg.54), que se identifica pela linguagem, e que em relação à natureza do animal, tem uma diferença infinita. Quanto aos efeitos do discurso que está sob o céu, destaca a função da causa, que é o mais-de-gozar. E os ideogramas tse ku, refere-se a em consequência da causa.

•    Nesta aula, sua preocupação é com a causa.
• Aí, Lacan novamente afirma que a linguagem adquire sua importância, na medida em que tudo a que se refere é sempre de modo indireto, ou seja, o mesmo que disse na aula anterior a respeito do uso metafórico da linguagem.
•    Faz uma critica ao livro The Meaning of Meaning2, O sentido do sentido (1923), do educador Ivo Armstrong Richards e do lingüista Charles Kay Ogden, ambos ingleses, que, sustenta o princípio, a partir do positivismo-lógico, de que o texto tenha um sentido apreensível (pg.54) e que uma coisa que não tem sentido, não pode ser essencial no desenvolvimento de um discurso (pg. 55), logo, não podemos tirar proveito do que, a priori, não tem sentido. Ora, Lacan mostra que se assim fosse, primeiro que não mais poderíamos nos valer do discurso matemático, que, de todos, é o desenvolvido com maior rigor. E, lógico, em nosso campo, se déssemos valor a esse princípio perdemos fio da meada [pg.55].
•    Daí dirá que o essencial é atentar à função do escrito.
•    Situa, então, o discurso do analista como sendo a lógica da ação, da ação do analista, logicamente, e diz que o fato de ter escrito o discurso é o que fez muitos não entenderem o que estava ali. Aí faz uma diferença entre o escrito e a fala. Esta, a fala, abre caminho ao escrito, e o escrito exigirá inserir nele uma fala para que possamos entendê-lo.
•    Lacan parece estar de acordo ao provérbio em latim Verba volant, scripta manent, e diz que mesmo que se escreva uma porção de coisas que ninguém entenda, está escrito. E justifica assim o nome que deu ao seu Escritos. Escritos que levam a grafos, a esquemas, que só podem ser compreendidos com um discurso que tem seu estilo, sempre particular, qual seja, fale, fale e combine coisas, pois é a fala que abre a trilha desses grafos. Só o tagarelar abre a Caixa de Pandora, de onde saem todos os dons da linguagem (pg. 58), dirá Lacan. E agrega que, como a função definida pelo discurso analítico não é livre, mas ligada por condições que são as do consultório analítico, cujo motor está ligado ao Sujeito suposto Saber, que define, não só a transferência, mas o fato de supor que o psicanalista sabe o que faz.
•    No seguimento de diferenciar o escrito da linguagem, Lacan lembra que o escrito é segundo, vem depois da linguagem falada, mas que só se constitui a lógica a partir do escrito. Daí que
   pensar a relação3, só é possível com a escrita.       a b     
      
•    Nesse modelo de escrita, predomina a lógica da dualidade, e Lacan dirá que isso vem do modelo dos signos chineses yin e yang (os princípios femino e masculino). Com o discurso analítico, mais especificamente, a função do falo, torna insustentável a bipolaridade sexual. O falo não se refere tanto a representar a falta de significante (como alguns acreditam, diz Lacan), mas a sua função de fazer obstáculo a uma relação, e esse obstáculo se refere a sua relação com o gozo, que nada tem a ver com a função fisiológica sexual, mas desse gozo que tem relação com o real: o gozo feminino. Volto ao que Lacan disse na segunda aula: para os homens, a menina é o falo, e é isso que os castra. Para as mulheres, o menino é a mesma coisa, o falo, e ele é também o que as castra [pg.33].
•    A inscrição do falo está diretamente associada a passagem do SER ao TER, sendo essa passagem condicionada à castração, que é o instaura a lei sexual, substituta de tudo que está no campo da relação sexual. Esta lei, diz Lacan, é coerente em todo o registro do que se chama desejo e do que se chama proibição. O proibido é o que aciona o desejo.
•    Da questão falo, desejo, lei sexual, Lacan desliza para mito freudiano do Totem e tabu, e vai valer-se do esquema das proposições universais e particulares, afirmativas e negativas de Chalrles Sanders Pierce para abordar, de forma lógica, a questão de não há um universal da mulher, logo, o  [pg.64]. Logo, o mito Totem e tabu, de um pai da horda que goza de todas as mulheres, está fundado sob a estrutura da ficção. Como, segundo J. Bentham4, a verdade tem estrutura de ficção, temos ai uma verdade.
•    Encaminhando para o final da aula, traz a questão da verdade: de onde se interroga a verdade? É que a verdade pode dizer tudo o que quiser. É o oráculo. [pg.66] Lembra o seu escrito A coisa freudiana, onde já havia enunciado que a verdade fala eu.[pg.66] No referido texto, Lacan formula um pouco diferente. Lá escreve: eu, a verdade, falo.5 Isso tudo é para chamar a atenção de que só temos acesso a verdade, ou melhor, só podemos dizer que algo é mentira ou verdade, a parir do escrito, pois quando se fala, é muito difícil apontar a contradição. Na fala, a verdade só irá aparecer desencadeada, ou seja, no momento em que ela irrompe da cadeia discursiva como, por exemplo, via lapsos, ou atos falhos.
•    E vai concluir com uma pontuação interessantíssima. A liberdade só existe e se justifica pela inexistência da relação sexual. O desejo insatisfeito está sempre a impossibilitar a conjunção perfeita do homem com a mulher. Diz assim: Se houvesse um homem para quem A mulher existisse, seria uma maravilha, teríamos certeza de seu desejo. [pg.70] À essa elucubração feminina, responde-se com a formulação romântica Era fatal, estava escrito! Ou seja, isto só existe no escrito. 
_____________
Notas:
1. Por isso o interesse de Lacan nos ideogramas chineses, pois eles são sinais gráficos que representam palavras ou conceitos. Não é uma leitura direta.
2. O significado do significado: um estudo da influência da linguagem sobre o pensamento e da ciência do simbolismo (1923), livro de CK Ogden e IA Richards. Richards apresenta uma teoria contextual de Signos: que Palavras e Coisas estão conectadas por meio de sua ocorrência junto com as coisas, sua ligação com elas em um 'contexto' em que os Símbolos passam a desempenhar um papel importante em nossa vida [até] a fonte de todo nosso poder sobre o mundo externo(47). Neste sistema de contexto, Richards desenvolve uma semiótica tripartida - símbolo, pensamento e referente com três relações entre eles (pensamento para símbolo = correto, pensamento – referente = adequado, símbolo– referência= verdadeiro) (11). Símbolos são aqueles signos que os homens usam para se comunicarem e como instrumentos de pensamento, ocupam um lugar peculiar (23). Toda simbolização discursiva envolve [...] entrelaçar contextos em contextos mais elevados (220). Portanto, para que uma palavra seja entendida é necessário que forme um contexto com outras experiências.
3. Uma relação é um vínculo ou uma correspondência. No caso da relação matemática, trata-se da correspondência que existe entre dois conjuntos: a cada elemento do primeiro conjunto corresponde pelo menos um elemento do segundo conjunto. Quando a cada elemento de um conjunto corresponde unicamente um ou outro, fala-se de função. Isto significa que as funções matemáticas são sempre, por sua vez, relações matemáticas, mas que as relações nem sempre são funções.
4. Filósofo e jurista inglês (1748 – 1832),
5. Lacan, J. La cosa freudiana . In: Escritos. Siglo Veintiuno Editores, Argentina,1987.

Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
15 de setembro/2020

Lacan continua, neste capítulo, o relato de seus amores com o chinês. Ajuda-lhe a ressaltar a importância do escrito frente a sua interpretação particular da linguagem. Digo particular porque, da langage, o Petit Robert diz ser um sistema de signos vocais (parole) e, eventualmente, de signos gráficos (écriture). Sim, os signos gráficos são eventuais, mas não excluem o escrito da linguagem. O registro disso me parece importante justamente para reforçar a importância da escrita.

No segundo logograma da primeira frase do mestre Meng, 下, tiān, Lacan traduz esse ideograma como parole, a fala, mas também, como ele mesmo diz mais adiante, pode ser traduzida como linguagem. Aliás, toda a frase da primeira coluna da direita
 
pode ser lida como A linguagem do mundo também é.

Em todo o caso, o importante é que o escrito serve como uma referência estável, tal como reza o ditado medieval, verba volant, scripta manent. E uma variante desse mesmo brocardo é muito exemplificadora:
Sit verbum vox viva licet, vox mortum scriptum,
scripta diu vivunt, non ita verba diu.

(É verdade que a palavra é viva voz e que o escrito é voz morta,
Mas o que é escrito vive muito e o que é dito, nem tanto.)

A importância da linguagem é que tudo o que se refere a ela, vem de um modo indireto. Haja visto a dificuldade com as traduções: o que na tradução brasileira, e ao espanhol também, 則故, aparece como Tse ku, na versão francesa, de Staferla, aparece como Zé gù, uma versão mais próxima da pronúncia atual.

Então, como parece impossível dizer exatamente o pretendido, o escrito fica como uma referência fixa sobre a qual se pode discutir. Para Lacan, em Zé gù trata-se da consequência [] da causa []. Mas também pode ser traduzido por portanto, o que deixa o conjunto sem sentido, enquanto para causa, motivo, o chinês usa os ideogramas原因,Yuányῑn, formado por ,Yuán, original, e por , Yῑn, porque. Daí que a segunda
 
Coluna também pode ser traduzida como então acabou.

2.
Na parte dois começa dizendo que o discurso do analista
é a lógica da ação e
 
que é difícil de entender justamente por estar escrito, afirmando que a fala abre o caminho para o escrito. Pois foi buscando um exemplo disso que lembrei da construção da Torá: Quando Moisés a recebeu no monte Sinai, uma parte chegou por escrito e outra por via oral, que não se podia escrever, sendo repetida, de geração em geração, por 400 anos, até ser compilada na mesma língua em que a Torá foi escrita, a hebraica, constituindo a parte do Talmude conhecido como Mishná, que contém a lei fundamental. As discussões sobre esta geram a Guemará, que são as opiniões e os ensinamentos dos antigos sábios. Neste exemplo, também usado por Lacan alguns anos após este Seminário, em 1978, parte-se de um escrito. Nós, aqui, também estamos partindo de um escrito; melhor, estamos partindo de uma fala, sobre um escrito, que gerou outro escrito, e outra fala.

Tempos atrás, quando me detive neste tema das origens, imaginei também que se partia de um escrito: imerso na natureza, o homem começou a construir sua cultura lendo os rastros deixados pelos animais e mesmo pelas intempéries. Membro da espécie animal que é, quis deixar rastros também, ou, quiçá, escondê-los atrás de outros mais sofisticados, e para isso inventou a escrita. Daí, à Babel, um passo.

A psicanálise propõe um caminho inverso: com a regra analítica busca-se os rastros escondidos. E isso é possível graças a livre associação. Lacan a toma como falácia, porque sabe que ela não é livre, mas não podemos esquecer que quando Freud a propôs, ela veio no sentido de ser livre de uma imposição, não era mais a hipnose. O analista não proporia nenhum estímulo. Antes, atenderia a indicação de Anna O.: - Deixe-me falar! Esse é o sentido freudiano da livre associação. Mas Lacan, leitor de Freud, lembra que as associações são ligadas. É interessante que, para chegar a isso, ele tome os termos freudianos de energia livre, própria do sistema ics, e de energia ligada, própria do sistema cs/pcs.

Quanto à transferência possibilitadora dessas associações, Lacan menciona uma suspeita de que o SSS seria uma base insustentável para ela. Pois estou de acordo com ele. Também acredito que o SSS seja uma boa base para a transferência, embora minha argumentação seja um tanto diferente da dele: entendo que, para o analisante, a suposição seja de que o analista sabe dele (e muitos acreditam que devam corresponder a esta expectativa), enquanto que o saber do analista é, ou deveria ser, da teoria analítica que lhe serve, não para reencontrá-la no discurso do analisante, mas sim para possibilitar ao analisante suas próprias descobertas concorrentes ao desser, ao desêtre.

3.
Neste caminho, há como que um tropeço na questão da sexuação. As diferenças em torno ao falo não terminam de gerar novas questões. Como diz Lacan, não por acaso justamente na parte três, a linguagem tem seu campo reservado na hiâncias [na abertura] da relação sexual, tal como o falo a deixa aberta. E a continuação de sua frase é surpreendente: o que ele [o falo] introduz não são dois termos que se definem pelo masculino e pelo feminino, mas a escolha que há entre termos de natureza e função muito diferentes que se chamam ser e ter. É por aí que passa a castração simbólica.




SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
10 de março de 1971
V. O Escrito e a Fala
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
29 de setembro de 2020

•    Não é por acaso que no título dessa aula, o escrito está colocado antes da fala. Lacan já havia dito que a fala é primeira e depois vem o escrito. Nessa aula, Lacan parece apontar que essa relação é um pouco mais complexa do que parece. Estamos sempre as voltas da questão: o que vem primeiro, o ovo ou a galinha?

•    Como se relacionam essas duas ordens de representação? Essa parece ser o eixo dessa aula. Vai examinar a questão de como a leitura de um escrito tem influência na criação de uma língua. Para tanto, examina a relação da língua japonesa, e seus ideogramas, com a língua chinesa. O diferente modo de escrita leva a diferente pronuncias, logo, gera uma fala diferente. Afirma que nunca falamos senão a partir da escrita [pg.86] e, indo ao grão da questão, aponta a uma relação dialética entre fala e escrito, onde é possível que seja na leitura do que está escrito – lembrem que Lacan diz que o significante está na natureza – que se geram palavras, ou seja, se gera mais fala. Assim disse:
Por ser a representação da fala, (...) a escrita é algo que se constata não ser uma simples representação. Representação também significa repercussão, porque não é nada certo que, sem a escrita, houvesse palavras. Talvez seja a representação como tal que cria essas palavras. [pg.84]
•    Lacan inicia essa aula examinando a relação da fala com o que chamou acoisa. Alerta que o ato de falar é indicativo de que a coisa (em si) da qual eu falo esteja ausente, ou seja, desde o efeito da castração quando, perdido a coisa, o objeto pequeno a, fica a marca dessa ausência que Lacan escreve como acoisa, tudo junto.

•    Questiona o Dasein heiddegeriano, como presença do Ser, já que, para Lacan, a única maneira de ser aí é colocar-se entre parênteses. [pg.72]

•    Leio nesses comentários de Lacan sua a aproximação a esse conceito hegeliano da Aufhebung, a superação conservadora, que aponta que a essência da coisa está ali, mesmo na sua ausência. Mas, só se há ausência, outra coisa, a palavra, pode surgir. Nunca falamos senão de outra coisa para falar da acoisa. [pg.72] Diz Lacan. E afirma: a fala sempre ultrapassa o falante, o falante é um falado
[pg.73]

•    Tudo gira em torno de como representar esse furo que está no nível da acoisa, já que nunca podemos falar da acoisa de modo direto.

•    E, conclui a parte 1 da aula dizendo que a acoisa, justamente não se mostra, se demonstra. [pg. 73] Daí seu valor a escritura.

•    Lembra, então, o grafo da Subversão do Sujeito para dizer que se a escrita serve para alguma coisa, é justamente na medida em que é diferente da fala.  Escrita e representação de palavras, [pg,79] e lembra que já Freud havia indicado algo disso com sua Wortvostellung (representação de palavra), porém, Lacan diz que há uma diferença em relação a Freud, na medida em que para Lacan a representação de palavras é a escrita. [pg.80]1

•    A escrita tem a capacidade de, numa única demonstração, conter diversos elementos que compõem, que presentificam, pelas letras – que ele diz que é o cumulo do escrito [pg.76] –, a lógica da existência do ser. Mas a escrita, necessariamente, vai repercutir na fala, que só pode, diacronicamente, interpretar o escrito. Mas nem tudo não se pode escrever. Daí sua afirmativa de Lacan de que não há relação sexual, já que esta é a própria fala, mas não há nenhum modo de escrevê-la. [pg.77]

•    E por quê demonstrar? Muitas vezes se mostram coisas que as pessoas não vêem. Daí que vai, no final da aula, remeter ao texto da Carta roubada, de Poe (que ele prefere chamar de a carta não reclamada). Há coisas que estão aí, mas não podemos vê-las. A carta, recebida pela rainha, é tomada como sinônimo do falo que circula, do seu conteúdo nada sabemos.

•    Para dizer do quanto nada sabemos de como escrever a relação sexual, Lacan faz um paralelo com a escrita do campo gravitacional de Newton. É algo que sabemos que existe, mas não vemos. Diferente do campo eletromagnético que gera imagem. Porém, Newton escreveu uma formula para descrever o campo gravitacional o que permitiu fazer uma série de proposições e cálculos que gerou avanço científico. Com essa fórmula, foi possível ir à lua.2


•    Sabemos do falo, esse significante que representa o desejo do homem, ou melhor, representa o vestígio da coisa que, como se inscreve como falta e gera, assim, o desejo, na medida que ele vai estar sempre no lugar onde se supõem que completaria a relação sexual e só aparece na própria fala para em seguida desvanecer.

•    Escrever a relação sexual seria, então, algo como fixá-la em uma fórmula. Assim que esse passo segue como um desafio para a psicanálise.

_________________
Notas:
1.Uma das escritas que ainda não foram plenamente decifradas são os glifos da Ilha da Páscoa (Chile). Lacan cita o estudo de Alfred Métraux. Mais recentemente (1996), o antropólogo americano Steven Fischer diz ter decifrado textos dos pascoenses. Segundo Fischer, os escritos rongorongo são uma espécie de canto cosmológico utilizado pelos sacerdotes da ilha, no século 18. Durante seis anos, o antropólogo estudou tábuas de escrita rongorongo guardadas em museus. Foi o texto de uma tábua de 1,26 m por 6,5 cm, do Museu de História Natural do Chile, que forneceu a Fischer os elementos para compreender a escrita. O antropólogo chegou à conclusão de que cada uma das partes em que se dividia a tábua, inclusive os ideogramas, estava separada por um sufixo (parte da palavra que vem depois do radical e que serve para flexioná-la). O sufixo era a representação estilizada de um pênis, o que na língua rongorongo serve como elemento aglutinador dos ideogramas - isto é, os liga uns aos outros para dar sentido ao texto. Na primeira frase da tábua, um pássaro, seguido de um pênis, de um peixe e de um sol, pode ser traduzida como: Todos os pássaros copularam com os peixes e de sua união nasceu o sol. (fonte: Folha de São Paulo, 14 de junho de 1996).
2. A teoria da gravitação de Newton afirma que os corpos se atraem mutuamente em razão de sua massa, mesmo que não estejam em contato direto. Foi com essa ideia de ação a distância que Newton conseguiu dar uma explicação para o “sistema do mundo” e a fórmula é

 







Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
29 de setembro de 2020

Introdução

Lacan sabe mesmo como épater le bourgeois. Ora, perguntar se está presente quando fala em seu Seminário? Verdade que 12 anos depois, em 1983, no filme Flashdance, de Adrian Lyne, a personagem Alexandra Owens, interpretada por Jennifer Beals, uma operária da indústria do aço que à noite vai dançar em uma boate, sobre seu momento bailarina diz que é como se ela não estivesse ali, como se não fosse ela. Um momento de despersonalização? Não! Como diz Lacan, trata-se da interpretação de uma ausência, trata-se da abrangência da achose, cuja representação é sempre difícil. Lembrou-me da representação do zero: embora intuído ainda antes da era cristã, por babilônios e astecas, que o representavam ou por um espaço vazio ou por um desenho de um homem com a cabeça para trás, a representação atual só apareceu, na Europa, no século X. A dificuldade para sua aceitação devia-se ao fato de abrir caminho para os números negativos, resultantes das subtrações. Na achose, o que é subtraído é o petit a. E, se ele não está, o que resta no lugar é o ato sexual visto como castração. Alguns anos atrás, 40 anos atrás, ao criticar um artigo de um analista didata, da IPA, no qual comparava os efeitos da análise, como os efeitos de ficar da fila, esperando por atendimento, e que os resultados eram os mesmos, disse de seu reconhecimento de que em sua análise não havia lyse, não havia a lisina propiciadora da cura. Lacan o diz aqui de uma maneira mais arguta: Anagramaticamente, ele diz que n’a lyse, a menos que concerna à castração.

E o lero lero filosófico, se não serve para muita coisa, diz ele, acabou produzindo o Dasein, a clareira do ser, que ele diz traduzir-se ao francês por présence, a presença. Então Lacan lembra que, ao tratar da Carta Roubada, de Poe – antes de tudo um escrito –, ele termina por jacular Mange ton Dasein, o que deixou o Ministro em má situação. E esse ser-aí, essa presença, ele o desencarna por meio da epoché, que, para ele, é o equivalente a colocar entre parênteses. Está bem, mas temos de lembrar que a epoché, é antes de tudo, uma suspensão do juízo, um repouso mental que pode chegar até a ataraxia. Mas que esse, enfim, é o jeito de ser-aí. Persiste o recurso metafórico para dizer como são as coisas e mais ainda as achose.

1.
Lacan diz aqui que, de certo modo, a escrita mais precisa é a do grafo.


E isso é assim pq a fala pode apoiar-se nela. O grafo permite que tenhamos uma percepção sincrônica do todo do qual falamos diacronicamente. Quando falamos do significante da falta no Outro [S(A/)], por sobre o grafo, vemos que ele não é sem sem a fórmula da demanda [$<>D], por exemplo.

Para dizer da importância do escrito, Lacan lembra de James Février e seus estudos sobre Palmyra, uma cidade situada no centro da Síria, desde 2000 anos antes de nossa era, onde foram encontrados textos de Armoritas, Arameus e Árabes, além de Palmyreano, os quais permitiram ao historiador
1 muitas leituras. Mal sabia Lacan que, nesse presente século, as maravilhas dessa cidade foram quase todas destruídas, entre os anos 15 e 17. E, claro, também lembra da importância, para tudo isso, da geometria euclidiana.

2.
Se há pouco Lacan equivalia o verbo e a ação, aqui, agora, ficará com São João. Afinal, a presença, na qual está interessado, é logocêntrica.

E essa fala, à qual se refere, é como se tivesse a força mágica de um abracadabra, não fosse o tempo medido para tal em éons. Então, se existe relação sexual, tem de ser na própria fala, porque, para escrevê-la, ainda não se encontrou forma, uma esperança, contudo, não abandonada por Lacan. Por isso cita François Jacob
2, um médico geneticista que ganhou o Nobel de medicina e fisiologia, por seus estudos genéticos, em 1965. Ele descobriu nas bactérias genes reguladores, capazes de controlar outros genes, os estruturais. Enfim, tudo é animal!

3.
Lacan agora insiste com exemplos de escritas geradoras de fala, e apoia-se nos estudos de Alfred Métraux
3 que, em 1940, publicou o seu A Ilha da Páscoa,  com sua tentativa de decifração da escrita rongorongo da língua rapa nui dos pascuenses, enfatizando que não foi por não ter tido sucesso que não teve importância. Muitos estudos seguintes apoiaram-se nos seus.

Um close das inscrições do Tablete Pequeno de Santiago, mostrando partes das linhas 3 (embaixo) a 7 (acima). Os glifos das linhas 3, 5 e 7 estão de cabeça para cima, enquanto os das linhas 4 e 6 seguem de cabeça para baixo.
Similarmente, ele também apoiou-se nos estudos de Freud. Então dizer que Freud não concorda com ele, é só uma piada, e de mau gosto. Quando Freud, em seu estudo sobre o inconsciente usa a expressão representação palavra, é para diferençar da representação afetiva. Uma diferença importante para dizer sobre o que a repressão tem poder de ação e onde é inócua.

Depois, quando se refere aos estudos Xu-Shen,  autor do Shuō wén Jiě zì [说文解字 – explicar palavras], diz dos primeiros estudos sobre a estrutura dos caracteres chineses. Não preciso dizer que a tradução desse seminário ao português deixa muitas dúvidas. Verdade que a leitura dos logogramas chineses, por Lacan, também. Então não sei, se quando ele usa o signo wen [文] e o traduz como o signo da civilização, ele está se referindo ao que é, ou ao que ele pensa que é! Se tivesse que traduzir esse signo, diria simplesmente texto. Mas reconheço que com a palavra texto podemos dizer muitas coisas diferentes.

Em suma, importa o que está escrito. Como se lê, será sempre uma outra questão. Verdade que Lacan diz da importância da palavra para poder dizer do escrito: a palavra também tinha que já estar disponível. Tempos atrás, escrevendo sobre o assunto, disse que o escrito podia ser o rastro de um animal, um cheiro, um desenho de estrelas no céu. Não por nada o mestre quando fala desses passos, registra-os em éons. Para exemplificar a questão da leitura, menciona a leitura japonesa dos ideogramas chineses, pois a língua japonesa tomou os caracteres chineses (Kanji) para sua escrita. Por isso, em japonês, há duas maneiras de ler. Quando a pronúncia repousa estritamente sobre o fonema do caractere chinês e não evoca em nada o japonês, uma vez que não significa nada nessa língua, diz-se On-Yomi. Mas há também uma tradução japonesa historicamente fixada, na qual buscam dizer o que o caractere chinês quer dizer. Essas duas escrituras, chamadas Kun-Yomi (Yomi = leitura), coexistem, lado a lado em um texto. Os caracteres chineses são acompanhados, redobrados, da escrita de sua pronúncia, logo de sua leitura. É por isso que Lacan, em Lituraterre, escreve que no Japão o sujeito está dividido, como em todo lugar, pela língua, mas um de seus registros pode se satisfazer com a referência à escrita, e o outro à fala. O On-Yomi é a referência à letra, enquanto que o Kun-Yomi faz referência ao Outro da fala.


Depois dessa diferenciação, Lacan dirá que não há metalinguagem porque sempre falamos a partir da escrita.

4.
Por fim, uma breve alusão ao seu texto sobre A carta roubada, na qual equipara a carta ao corpo da mulher, ao corpo da Rainha, por que não!

__________________
Notas:
1. James Février: Histoire de l’écriture, Paris, Payot , 1948.
2. François Jacob, O Rato, a Mosca e o Homem. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, 160p.
3. Alfred Métrux. A Ilha da Páscoa. E. Fermi, 1940 (1ª ed.).


SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
17 de março de 1971
VI. De uma função para não escrever
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
20 de outubro de 2020


Não existe nenhum caminho lógico
Para a descoberta das leis do Universo;
O único caminho é a intuição
.
ALBERT EINSTEIN






•    Nesta aula, Lacan ocupa boa parte dela retomando seu seminário A carta roubada, de 1966, no caminho de examinar a função do falo, articulada a um certo discurso [pg.90], buscando sua relação com a letra. Segue ocupado em estabelecer a relação da fala e do escrito e, mais especificamente, ao que há de especial na função do escrito em relação a qualquer discurso [pg. 93].

•    Para o discurso, diz Lacan, uma estrutura de quatro elementos pode sustentar a possibilidade da sua inscrição.  Isso é o que ele fez quando escreveu os seus quatro discursos. Já a inscrição da letra, que marca a impossibilidade de escrever a relação sexual, parte do fato que da letra/carta, nada sabemos, a não ser que ela tem um sentido, que é chegar ao seu destino, mesmo que, em última instância – e isso serve para qualquer carta – nada se compreenda dela. O importante é o efeito que a carta produz ao passar de mão em mão. Nada se sabe de seu conteúdo, apenas que a carta feminiza, ao declarar aquele que a possui, como um ser-em-falta. Isso, na medida em que o que a possui nada sabe do que ali está escrito, apenas sabe que detê-la lhe dá poder. Eis sua função fálica. Esse nada saber da letra, equivale a condição de alienação a esse significante da falta, o falo.

•    Sobre essa relação entre o nada saber e o como escrever a relação sexual, faz Lacan se aproximar da interrogação sobre se tudo o que se pensa está fundado na lógica, que gerou o raciocínio matemático, ou se resta uma intuição original da qual nada sabemos dizer?

•    Dessa distinção entre intuir e raciocinar, Lacan vai aproximar a questão do espaço euclidiano, fundado nas três dimensões (ALP) para dizer que este pode sustentar um discurso, na medida em que podemos tomar até quatro elementos no espaço e verificar que podem estar a uma distância igual um do outro. Porém, dirá Lacan, se tomamos cinco pontos, a teoria euclidiana não se sustenta mais. Daí, é preciso invocar uma quarta dimensão espacial, algo ainda não provado, sendo, até o momento, apenas intuído.
 
Hipercubo, conhecido também como Tesseract, que é delimitado por figuras tridimiencionais.
•    Para além do tetraedro, a intuição já tem que se apoiar na letra [pg. 95], dirá Lacan. O que isso quer dizer? Suponho que essa letra a que se refere Lacan é justo esse significante que não podemos designar para definir A mulher. E, faz uma conexão entre a carta de Poe - com sua função feminizante, já que a carta existe para uma mulher (a Rainha), tornando impensável dizer A mulher -, com o mito escrito de Totem e Tabu, que também remete a impossibilidade de que o pai possua todas as mulheres. Essas duas impossibilidades, assim como a relação sexual que não pode ser escrita, aponta a essa estrutura que está para além das dimensões espaciais reconhecidas, e que regem a lei que nos submete a castração, essa que interdita o gozo sexual, produzindo a fala.

•    O gozo sexual só extrai sua estrutura da interdição que incide sobre o gozo dirigido para o próprio corpo...para o corpo do qual saiu o próprio corpo, ou seja, o corpo da mãe[pg.101]. Aí coloca Lacan a relação entre interdição/gozo/estrutura/e o impossível da escrita.

•    Nesse impossível de escrever A mulher, essa que não existe, temos justamente a letra, que reduzida a sua condição de operador lógico, é inscritível e pode gerar uma formulação. Aí Lacan faz toda uma caminhada pelas categorias proposicionais de Aristóteles, para invocar sua função lógica e destacar o não todo x cumpre a função de x. Isso que não se pode escrever da função de x vale para afirmar que existe o inscritível e que o que se escreve – daí a função essencial na origem da escrita – só responde ao não-mais-que-um [pg.100], ou seja, só escrevemos e só somamos de um em um.

•    Segue afirmando que a função mulher [p.100], que tem relação com o gozo sexual, é inscritível. Esse é o elo que liga o mito do pai da Horda (o pai que goza de todas as mulheres, o que é impossível) - um mito escrito -, com o gozo sexual que não pode ser escrito, apenas interdito. Daí deriva a importância de interditar esse gozo do corpo da mãe, instaurando a única lei que institui todo o alcance da fala: a castração.

Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
20 de outubro de 2020

Introdução
A abertura dessa aula é dedicada a chamar a atenção dos alunos para a importância da leitura de A Carta Roubada, de Poe. Para tanto, ele começa fazendo os estudantes rir. É como se ele seguisse a orientação de Balthasar Garcian y Morales: Pense como a minoria e fale como a maioria.


1.
Ocupado com a função do falo, a atenção, aqui, está dedicada a um detalhe da descrição – feita pelo Chefe de Polícia –, do Ministro D: who dares all things, those unbecoming as well as those becoming a man. Na tradução de José Paulo Paes, que a tradutora do Seminário muito teria aproveitado, se a conhecesse, a descrição do ladrão está assim:  [um tipo] que se atreve a tudo, tanto ao que é próprio quanto ao que é impróprio de um homem. Se a formulação deve ser tomada em bloco, conforme a recomendação do Mestre, então a tradução de Paes obedece mais ao nosso jeito de falar, circunstância em que a dignidade sempre vem na frente, como um ideal. Quanto ao verbo To dare, contudo, estou de acordo; ainda que atrever-se esteja correto, ousar é sua primeira tradução e, no caso, a de maior pertinência. Embora sinônimos, atrever-se deriva de trĭbŭĕre sibi, atribuir-se (a capacidade de fazer algo), enquanto ousar deriva de audērĕ, desejar, querer, como em audērĕ sapere. A impropriedade apontada tanto pelo Prefect, como por Lacan, não se refere tanto ao ousar as things, mas, sim, antes, a ousar, quer dizer, a desejar all tings. O problema, que lhe afeta o caráter, está em querer tudo, pois reparamos o destaque dado por Lacan à importância de poder mirar, o que pressupõe um alvo.  Depois de roubar a carta, o Ministro prolongou-se na sua posse por dezoito meses, findo os quais ele já nem se lembrava dela. Lembrar-se-ia apenas quando a Rainha, agora devolvida à sua posse, mudasse de posição. Uso o verbo prolongar valendo-me da sugestão de Lacan ao criticar a tradução de Baudelaire de purloined por volée, roubada, quando valoriza o prefixo pur que aparece também, por exemplo, em purpose, propósito e também do francês antigo loigner, mais o prefixo latino pro, que permite dizer, em português, carta prolongada, o que dá a entender a importância do en soufrance da carta, mas que certamente leva a perder o impacto do roubo. É preciso saber no que mirar. Por isso, título é uma coisa, conteúdo é outra. Assim, quando nos defrontamos com um ditado do tipo vive mais quem ousa mais, seria preciso acrescentar o alvo em questão. Há também, a propósito, uma certa similaridade acústica entre ousar e ousia. Embora Lacan não faça aqui esta transposição, mais adiante, no último apartado desta aula, ele irá dizer que a importância da ousia, quer dizer, da essência, está na lógica, na discriminação lógica.


2.
Examinada no texto de 1956, a tradução do título de Poe, por Baudelaire, volta a ser discutida, de forma mais clara, nesta aula de 1971, quatorze anos depois. O que teria permitido a posse da carta, pelo Ministro D, prolongada por tanto tempo? Como na física, Lacan, ao tempo, associa o espaço e os estudos de geometria desenvolvidos desde Euclides, ainda que dissociados dos conhecimentos filosóficos, até encontrar-se com Luizen Egbertus Jean Brouwer, um matemático holandês que valoriza a multiunidade. Há o um, e outro um, e outro um; múltiplos um e não múltiplos de um. Mas Brouwer é também um intuicionista, ainda que valorizando a intuição de modo diferente do de Kant. O modo matemático da polícia, preciso, examinando todos os pés de mesa, forro dos estofados, cantos e frestas, não tinham ajudado a encontrar a missiva. Ainda mais que a polícia, pelo fato de o Ministro ter escrito um texto sobre matemática, acreditava que ele fosse também um matemático. Mas não, o Ministro D era um poeta. A carta purloined, ao contrário de escondida, estava à vista, ainda que sob disfarce. É por poder ver o espaço desde outro ângulo, que não o matemático, que Dupin, o detetive, consegue perceber imediatamente o esconderijo, entre as pernas da lareira (e não das ombreiras, como quer a tradutora). No lugar equivalente aquele que, no corpo da mulher, se chama de Castelo do Santo Anjo.  É por usar um disfarce feminino, caracterizado também pela letra, que o Ministro se feminiza, e também, por extensão, o detetive que aproveita a situação para vingar-se de um desagravo, sofrido em Viena, com aquele verso do Atreu, de Crébillon.


3.
Então, retomada a posse da carta, Lacan jacula: A Rainha não se dá conta de que é quase fatal que fique louca por esse ministro, agora que ela o detém, que o castrou, não é? Para concluir que Isso é amor. Uma afirmação só possível porque Lacan está pensando no Totem e Tabu, de Freud, no seu entender um texto escrito para provar que não se pode dizer A mulher. Trata-se, sim, de todas as mulheres, e dizer que o pai possui todas as mulheres é signo de uma impossibilidade. Em A carta roubada não se trata de A mulher, mas sim de uma mulher. E Então Lacan faz uma afirmativa, mais uma afirmativa, que leva à pensar: A mulher, essa que não existe, diz ele na p.102, é justamente a letra, a letra como significante de que não há Outro [S(A)] (as traduções brasileira e espanhola registram A barrado). Um ponto que gostaria de discutir com vocês.

4.
Na última parte, apoiado nas categorias proposicionais aristotélicas, Lacan dirá que a discriminação lógica se dará entre uma afirmação universal, vale dizer uma essência, uma ousia, e uma proposicão negativa particular. Usa isso para ensaiar as fórmulas da sexuação que melhor definirá, dois anos depois, em Encore.

E é bom esclarecer que a escrita algébrica de universal afirmativa e de particular afirmativa
estão registadas de forma errada na edição da Zahar, basta ler o texto.




SEMINÁRIO 18 DE LACAN

De um discurso que não seria do semblant
12 de maio de 1971
VII. Lição sôbre Lituraterra
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
03 de novembro de 2020

•    Lacan começa esta aula justificando o termo LITURATERRA1, que a escreve, provavelmente no quadro negro, e toma como título da aula. Dirá que inventou a palavra, mas, mesmo que legitimada pelo dicionário de latim de Ernout e Meillert, o que o inspirou foi o jogo de palavras, a aliteração que lhe vem aos lábios e a inversão, ao ouvido [pg.105].

•    Menciona, então, a Joyce, que faz esse deslizamento da
letterl2 a litter, da carta ao lixo. Isso me evocou uma passagem do romance Finnegans Wake, de Joyce, quando a galinha Belinda3 encontra no monturo uma carta, todo esburacada, que é justo a carta onde a história de ALP (Anna Lívia Plurabelle), a personagem mãe, será contada. Penso que não seria equivocado colocar esse escrito de Joyce no que Lacan chamou nesta aula de literatura de vanguarda, a qual é fato litoral e não se sustenta no semblante [pg.116]. FW é um texto que não tem significação em si, mas o efeito dessa escrita é produzir novas escritas.

•    Ainda as voltas com a carta, primeiro a de Poe e agora a de Joyce. Lacan faz um importante destaque, não só nesta aula, mas em todo este Seminário, a essa relação carta/letra (lettre em francês tem esses dois sentidos). E por que Joyce agora? Essa carta/letra esburacada, onde a letra foi apagada, leva Lacan a relacionar litura (uma das palavras contidas no neologismo de Lacan) com litoral.

•    Já desde a aula anterior, e isso é uma das marcas desse Seminário, Lacan passa a identificar a letra pelo lado do real e não mais do simbólico, fazendo diferença entre letra e significante. É pelo apagamento do traço que o sujeito é designado, nos diz Lacan [pg.113]. Mas como saber do traço se, apagado, ele não faz parte da cadeia significante? De fato, a letra é o que apoia o significante, dirá. Apóia, mas não está na cadeia. Precisa ser encontrado, destacado no litoral, nessa linha, que demarca dois territórios distintos, terra e mar, simbólico e o real. A letra porta um gozo que, ao mesmo tempo em que algo se expressa via cadeia significante, aprisionada ao semblante, também pertence ao real, e resta inacessível, gerando novas produções. Depende da leitura do analista para que a letra possa ser escrita. A letra é a matéria em suspensão, retida, en suffrance, e que na ruptura do semblante, ao escoar algo do gozo, possibilita que o analista faça uma leitura dessa letra, fazendo aí sua inscrição. Algo como a leitura que fez Lacan de sua visão ao sobrevoar a planície siberiana.

•    Introduz, então a ideia de que escrita é ravinamento, ou seja, a passagem da letra deixa ravinas, caminho para o escoamento de gozo. O significante enquanto semblante é o que acolhe o gozo e sua ruptura libera-o. Nesta ravina, nestas marcas deixada pelo rasura da letra, e desprendimento do gozo, ali pode se dar uma nova inscrição. A escrita é, no real, o ravinamento do significado [pg.114], diz Lacan.

•    Também, nesta aula, retoma novamente a questão do traço unário, tomado da leitura freudiana, que já havia trabalhado na aula anterior. Este traço, responsável pela identificação fundamental do sujeito, refere-se não apenas a um elemento simbólico recalcado, mas, como diz Lacan, é um céu estrelado. Este traço identificador do sujeito, porta também elementos do imaginário e do real. E isso é o que sustenta Lacan a dizer que nem tudo está escrito por um discurso estruturado na lógica pura, mas que há um núcleo que resta do lado da intuição (aula VI, pag. 93).

•    O destaque desta aula está por conta da diferença que faz Lacan entre fronteia e litoral. A fronteira demarca dos territórios de um mesmo plano. Faz contraponto aos estudos do biólogo Jacob von Uexküll4, autor da noção do Unwelt (ambiente) e Innwelt (mundo interno), que preconizou a ideia de que cada animal tem seu mundo subjetivo próprio e deve ser compreendido em seu habitat. Ao caracterizar que o ambiente é o reflexo do mundo interior, Lacan entende que há uma ideia de adaptação contida entre essas duas realidades, colocando a fronteira como um plano que pode se estender de um território a outro, borrando o que demarcaria a separação entre dois territórios distintos.

•    Apresenta a ideia de litoral, colocando aí a letra. Não é a letra propriamente o litoral? A borda do furo no saber (...) não é isso que a letra desenha?[pg.109]. Entre gozo e saber a letra constituiria litoral [pg.110). O litoral delineia o espaço de dois planos distintos, terra e mar, e sua borda é de um movimento constante, não podendo ser fixado, produzindo . No bojo dessa formulação Lacan traz uma importante questão: como o inconsciente, efeito de linguagem, comanda essa função da letra? [pg. 110]
•    Ao estudar a escrita chinesa, compreendeu que traço representa um mais além daquilo que ele desenha, incluído aí o ato de fazer o traço que inclui o corpo de quem o faz.

•    O mestre de Lacan na escrita chinesa foi o poeta, filólogo e semiólogo chinês François Cheng. Com ele, também estudou a pintura chinesa onde se encontra a ideia do Traço Único do Pincel, do pintor Shitao do século XVII que refere ser o traço a primeira manifestação do ser, sendo uma unidade básica de sistema de vida.5  Ele diz: O traço não é uma simples linha. Com a ajuda de um pincel embebido de tinta, o artista apõe o traço sobre o papel. Por seu volume e sua leveza [...] pela impulsão e ritmo que comporta, o traço é, potencialmente e ao mesmo tempo, forma e movimento, volume e vislumbre6;

•    Seu encontro e estudo da língua chinesa, e da sua derivação, o japonês, o levou-o ao reconhecimento mais radical de que o sujeito é divido pela linguagem, mas um dos seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro com o exercício da fala [pg.117]. Daí a pergunta que atravessa todo o Seminário deste ano aqui colocada assim:

•    Será possível, do litoral, construir um discurso tal que se caracterize, como levantei a pergunta este ano, por não ser emitido pelo semblante? Essa é, evidentemente, a pergunta que só se propõe pela chamada literatura de vanguarda, a qual, por sua vez, é fato de litoral, e portanto, não se sustenta no semblante, mas nem por isso prova nada, a não ser para mostrar a quebra que somente um discurso pode produzir. Digo produzir, expor como efeito de produção; esse é o esquema de meus quadrípodos do ano passado [pg. 116].

Notas:

1.  A base da aula deste Seminário é um texto que foi publicado na Revista Littèrature, nº 3, em outubro de 1971, um número dedicado à literatura e psicanálise. É também o texto de abertura do livro Outros Escritos, que contém diversos textos de Lacan, publicado em português pela Zahar Editora, em 2003. Esta palavra,, inventada por Lacan, é um jogo com as palavras latinas lino e litura (aquilo que num escrito se apagou ou riscou para ficar sem efeito ou ilegível; rasura. Igual ao português) e liturarius.

2.  Em inglês, letter é carta e litter, lixo.

3.  Essa referência encontra-se no capítulos 5, 6, 7 e 8, os quais encerram o livro I de um total de IV, deste Romance, traduzido no Brasil por Donaldo Schüler sob o nome de FinniciusRevém e publicado pela Ateliê Editora, em 2001.

4. Jacob Johann von Uexküll (Keblaste, Estônia, 8 de setembro de 1864 — Capri, 25 de julho de 1944) foi um biólogo e filósofo estoniano de origem alemã. Foi um dos pioneiros da etologia antes de Konrad Lorenz. Sua realização mais notável foi a noção de Umwelt (meio ambient, o mundo subjetivo da percepção dos organismos vivos, dos animais e do homem em relação ao seu meio ambiente e de como eles o compreendiam. Postulava que cada animal tem seu mundo próprio e que cada um deles tem que ser entendido no seu habitat (meio em que vive). No livro UmweltundInnenwelt der Tiere (1909), ele introduziu o termo Umwelt para denotar o mundo subjetivo do organismo.

5.  CHENG, F. (2012). “Lacan e o pensamento chinês”. In: Lacan, o escrito, a imagem. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012, p. 176.

6.  Idem nota 5


Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
03 de novembro de 2020

Da lama à beira das calçadas,
da água dos esgotos cresciam pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins
mais verdes que a esperança

(ou o fogo
de teus olhos
)
FERREIRA GOULART, Poema sujo.











O texto desta sétima lição é uma variação do que acabara de escrever para a revista Littérature, n°3, publicada depois, em outubro de 1971. Trata de sua preocupação com a contribuição da escrita para o avanço do conhecimento. A originalidade de seu título mostrar-se-á, ao longo do texto, tanto esclarecido como esclarecedor de suas ideias.

A inspiração de Lacan, para este título – Lituraterra –, um substantivo capaz de predicar, vem de um dicionário etimológico de latim: é a partir destes três vocábulos – lino, litura e lituriarius – que ele lituraterrará. O primeiro traduz-se por besuntar, cobrir e apagar; o segundo, que, aliás, passa ao português tal qual, tem o sentido de apagar o escrito, i.e., trata-se de uma rasura. Ficarei devendo o terceiro, à espera do dicionário de Ernout e Meillet que, a esta altura, deve estar transitando nos correios. Em todo o caso, importa o efeito de rasura, a escrita como borrão, como rasura. E, a seguir, quando diz que isso não tem nada a ver com littera, a letra, isso só pode ser verdade em referência à letra propriamente dita, pois littera, antes de tudo, tem referência a notas escritas. Trata-se, permitam que me repita, da escrita como rasura – quem sabe, uma rasura na natureza. No colégio, quando aprendi a fazer redação, a professora pendurava um quadro (versão ocidental de um kakamoto) com alguma figura de paisagem ou natureza morta na parede e pedia para fazermos, antes, um borrão. Ainda hoje uso o mesmo método, e quando tenho a oportunidade de ver a página manuscrita de algum autor famoso, seu aspecto é o mesmo, sempre um borrão, repleto de rasuras. Não por nada, Lacan joga com a equi-vocação de Joyce, quando ele desliza de letter para litter e, logo depois, para publicação, Lacan dirá poubellization, que se traduz por publixação, e argumenta com as palavras de São Tomás de Aquino que, ao final de sua obra, quando lhe perguntaram sua opinião sobre a mesma, teria respondido que tudo não passava de sicut palea, era como restos.


Seguindo com sua argumentação, lembra sua conferência pronunciada em Bordeaux – Meu ensino, sua natureza e seus fins –, em 20 de abril de 1968, um pouco antes do mês de maio, como ele diz, quando tomou como premissa, sem querer fazer culturalismo e menos ainda criticar a sociedade, que a civilização é o esgoto. Aí, ele diz que a diferença do homem, em relação a todos os níveis do reino animal, é o extraordinário embaraço que lhe causa a evacuação da merda, e recomenda que se leia, de Aldous Huxley, Adônis e o alfabeto, com tradução em português pela Ed. Hemus, no qual descreve um grande sistema de esgotos. Caso consigam esta edição, com tradução de Edith Carvalho Negraes e Daniel Martins Júnior, recomendo especialmente o ensaio intitulado Hyperion a um sátiro. Nesta conferência de 1968, ele faz ainda uma comparação do homem moderno com o homem selvagem: quanto mais moderno, mais esgoto.

Mas agora, nesta aula de 1971, o autor mencionado é Beckett, o Samuel Beckett de Esperando Godot. Seu teatro, marcado pelo absurdo, um absurdo que já estava presente em Rabelais, está construído sobre os restos. Em Fim de Jogo, cuja análise publiquei em Um elefante em Albany Street, os pais moram, litteralmente, em latas de lixo. Lacan ainda considera, a propósito, a importância da escrita de Rabelais, licenciosa, sarcástica, mordaz, que, condenada no início do século XVI, inclusive por haver denunciado a absurdidade de seu tempo, estava sendo lida agora, nos seus dias, e, de passagem, revela seu método para a escrita de seus textos: cartas abertas em que problematiza, a cada tanto, partes de seu ensino.
 
Enfim, seu Escritos abre com a análise de um conto que gira em torno de uma carta cujo conteúdo ninguém conhece. A importância disso, para Lacan, é a de mostrar como o escrito, como mágica, por si só faz toda a peripécia – uma palavra, aliás, muito bem escolhida para dizer de sua capacidade de alterar o curso dos acontecimentos de forma inesperada e exercendo sobre seus detentores um efeito de feminização, justamente pela ilusão que ela propicia. A separação desses efeitos equivale a distinguir a lettre do significante-amo, embrulhado com ela. Trata-se de uma forma metafórica de dizer que o S1 vem envelopado na letra, e não de fazer uma crítica literária, o que teria sido feito por Marie Bonaparte sem nenhum resultado. Para Lacan, a crítica psicanalítica deve apontar ao enigma, ao buraco. Para Patrick Valas, a propósito,  trata-se do enigma do sintoma, do lapso, do ato falho, mas também do enigma do 4, 2, 3 da Esfinge: τί ἐστιν ὃ μίαν ἔχον φωνὴν τετράπουν καὶ δίπουν καὶ τρίπουν γίνεται, Qual ser, provido de uma só voz, tem no início quatro patas, depois duas e, em seguida, três?  Ou o enigma do ser: Έπάμεροί τί δέ τις! τί δ'οῠ τις? σκιᾶς ὄναρ ἄνθρωπος, O que é o ser,o que é o não ser? Tu não és senão o sonho de uma sombra. 


Lacan também distingue os psicanalistas que exercem a psicanálise dos que são exercídos por ela, condição esta que lhes dificulta a compreensão de suas formulações. Na versão francesa do seminário, conforme às fichas de Patrick Valas, lembra ainda uma comparação destas instituições que abrigam estes analistas, com a Igreja onde se exerce um oficio, com seus rituais em horas fixas (a referência é às missas), onde se trata de textos sagrados cujo sentido é autorizado pelos Doutores da Igreja, e onde se deve obedecer cegamente à doutrina. E Inácio de Loyola ainda acrescentou que isso deveria ser feito pĕrīndĕ cadaver, como um cadáver.

Contrastando saber e verdade, os analistas religiosos reconhecem seu ofício na verdade, enquanto, do ponto de vista de Lacan, é o saber que deve ser posto sempre em cheque, como na figura heráldica de mis en abyme, cuja imagem tem sempre outra que a repete dentro de si, o que entendo como um conhecimento profundamente enraizado. No entanto, Lacan diz, a seguir, ter ficado sabendo que as pessoas acreditam estar dispensadas de demonstrar qualquer conhecimento ... e, em seguida, coloca uma questão que, para ser compreendida (na leitura da versão Miller, traduzida para a Zahar), requer a mudança de posição de uma virgula: Será esta letra morta que coloquei no título de uma daqueles textos que chamei de Escritos, da letra, a instância como razão do inconsciente?

À guisa de resposta, Lacan lembra do aspecto bífido, elaborado por Freud, a propósito das inscrições no inconsciente. As pulsões inscrevem-se no ics, de modo bífido, pelo representante da representação, a Vorstellungsrepräsentanz, e pela representação afetiva. Há ainda a representação coisa e a representação palavra. Por outro lado, a negação possibilita a uma inscrição inconsciente inscrever-se também no consciente, o que permitiu a Freud ver na negação uma forma superior de repressão. Verdade que a bifididade da língua está presente desde o início dos tempos: a cobra da primeira prosopopeia tinha a lingua bífida e, assim, enquanto uma ponta seduz, a outra porta a sua intenção.  Isso item sua importância aqui, na medida em que Lacan está interessado em ver, na mediação entre os dois planos, uma fronteira, tal como Freud imaginou concernente às instâncias psíquicas. E, claro, está em jogo aqui a relação do sujeito com o objeto, relação conformadora do Umwelt, como um reflexo do Innenwelt, conforme a Jacob Von Uexküll (p.109). Mas o importante é a fronteira, na medida em que ele a contrapõe ao litoral: não será a letra o literal a ser fundado no litoral? Enquanto o conceito de fronteira, dessa terra de ninguém, dessa no men’s land, é mais abstrato, o litoral é mais concreto, e se o pensamos como um litoral marinho, tanto mais flutuante será. Lituraterra, enquanto letra, ambiciona um lugar litoral, de borda do futuro. Ambiciona um avanço no saber. Se a apreensão da realidade é feita com os aparelhos do gozo, entre o gozo e o saber a letra faria o litoral (p.110). Contudo, isso não autoriza fazer da letra um significante e muito menos atribuir-lhe uma primazia em relação ao significante.


Tal confusão teria saido do discurso que lhe importa: o universitário, em que o saber é usado a partir do semblant.



Para falar de sua leitura do significante, diferente da de Freud, Lacan começa criticando, na carta 52 (sempre as cartas...), a figura do Wunderblock, por não considerar a escrita uma impressão. Aliás, eu mesmo, quando tomei conhecimento dessa figura, nunca pensei que o importante fosse a escrita, mas sim o indelével da impressão, da marca, e por que não dizer, da inscrição. De qualquer modo, Lacan não faz disso finca pé; sua atenção está dirigida, nessa carta, ao traço de memória, escrito por Freud como WZ, e sua proximidade ao conceito de significante. E então esboça a suspeita de que a literatura talvez esteja virando lituraterra. Devo dizer, contudo, que isso não é recém de seus dias e, para não ir mais longe, lembro, na obra do Padre Vieira, de História do Futuro, na qual nos fala da necque instantia, do futuro imediato. Se todos nós marchamos às margens do futuro, os escritores, Lacan disse isso ele mesmo uma vez, marcham na frente! Uma maneira de ressaltar a importância do escrito. De qualquer modo, ensaia essa situação com a descrição de sua viajem sobre a Sibéria, fazendo um trocadilho entre acidental, acidentado e occire, que ele cita em latim enquanto na edição da Zahar já aparece traduzido – ainda que corretamente – como ocisão, com a conotação de assassinato e, mais especificamente, de morte violenta.

O que lhe interessa, sobremaneira, é a condição litoral, e a exemplifica com a caligrafia japonesa que deve acompanhar a pintura. Trata-se, na verdade, de algo raro. No Ocidente, de modo geral, temos a arte, entendida como pintura, escultura, e também a escrita, mas todas separadas, raramente juntas. Uma exceção são Os profetas, do Aleijadinho, em Conganhas do Campo. Os pintores, por séculos, antes de Jan van Eyck, em 1434, nem o próprio nome colocavam no quadro. No Oriente, contudo, é uma praxe. Lacan refere-se aos kakemonos [掛物] – entre os quais escolhi um, de Hiroshige (1797 - 1858), para ilustrar, no Facebook, o convite para esse encontro –, onde os logogramas são os mesmos chineses originários. É daí que ele ressalta a importância do traço, tanto como WZ, como pelo fato de ser unário, para o que, a fim de se divertir, grafou papludum, e não papeludun, como sugere a tradução brasileira, possivelmente apoiada na tradução ao espanhol, da Paidós, a qual ajunta o sentido hispânico de peludo. Se fosse o caso de também traduzi-la ao português, uma vez que papludun expressa a contração de pas plus d’un, sugeriria namaqum, como contração de não mais que um, uma forma de nomear o que não pode ser nomeado, uma forma de nomear a Achose.


Ocupado com a caligrafia, Lacan associa-a com o escoamento, que, em francês, ele diz ruissellement, tal o da neve que se vai derretendo até formar um grande lago, como, por exemplo, o lago Baikal, o mais profundo do mundo, justamente aí, na planície siberiana sobrevoada por Lacan. O aparecimento dessa imagem parece ter-lhe chegado como a força de um ϕαινóμενον heideggeriano, daquilo que se revela, que vem à luz. Ao escoar-se forma um buquê, que lembra também o buquê invertido do experimento ótico de Bouasse, no qual o sujeito, cujo a foi cortado, só pode se sustentar pelo fantasma. Afinal, é pelo apagamento do traço que o sujeito é designado (p.113). Daí a importância da rasura, da litura componente da lituraterra. O corte, por sua vez, lembra-lhe seu primeiro livro de leitura, com um conto cujo título era História de uma metade de frango, conforme nos relatou, durante o seminário anterior, na lição de 21 de janeiro de 1970. Na história havia uma figura do perfil do lado bom e do lado mau do frango, este sem coração, mas não sem o fígado – em francês, não sem o foie, que também se escuta como . O que ele interpreta como a verdade podendo estar escondida, mas talvez não ausente. Frege, lembra ele, coloca a questão como um traço horizontal e distingue o resultado verdadeiro com um traço vertical, colocado à esquerda. Daí, para Lacan, a importância da diferença do makemono [巻物], sempre horizontal, do kakemono, sempre vertical.

Sobre a Ponte Mirabeau, do poema de Apolinaire, é uma referência à sua revista La Psychanalyse, editada por P.U.F. do nº 1, de 1956, ao nº 8, de 1964, que havia ilustrado com a ponte encimada por uma orelha, a sua possivelmente.


 
É preciso valorizar as homofonias e, se Lacan toma em conta a literatura de James Joyce, é porque as palavras se valem desse efeito para encontrar novos sentidos. Aliás, são propriedades como essa que mantém a língua viva. Mas uma vida que não é sem o que ele chama de ravinement, que não é sem a erosão. Uma erosão que pode servir de base a uma construção. Assim como a engenharia perfura a montanha para dar lugar ao seu anseio de passagem, a política serve-se dela no fenômeno conhecido como globalização. O exemplo de Lacan ao dizer do efeito do chinês no japonês é desta ordem, como é o do inglês em outras línguas e como já foi o do português em tantos lugares. O invasor fura a língua do invadido com a sua. Sustentando isso, está sempre a força da metáfora, constituinte da essência da linguagem.



SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
19 de maio de 1971
VIII. Lição sobre O homem e a mulher e a lógica.
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
17 de novembro de 2020

•    Nesta aula, Lacan retoma sua evocação à lógica matemática dos quantificadores universais, no caminho de sua determinação em buscar escrever a relação sexual, dizendo que as funções só são determinadas a partir de um certo discurso [pg. 120].

•    E, sem muito deixar claro, dirá que é nesse nível (das funções) que pode dizer que o escrito é o gozo [pg. 120]. Considera que no nível do discurso do analista, há alguma coisa que cria obstáculo a um certo tipo de inscrição [pg.120]. Essa coisa é o gozo, e isso é o que traz problema para poder inscrever a relação sexual.

•    Segue interessado em formalizar os efeitos dessa transmissão que uma carta/letra produz na realização de um discurso, ou seja, efeito feminizante que tem relação com o gozo.

•    Nos conduz, então, a pensar na função da necessidade. A necessidade, diz, é uma ordem fundamentada no artifício para evidenciar esse elemento irredutível no real. Reserva-se à necessidade sexual uma parcela mínima do gozo sexual que não pode ser sublimado. Essa necessidade, esse traço irredutível na relação sexual, é claro que podemos admitir que ele sempre existe. Contudo, ele não é mensurável [pg. 122]. Por isso a relação sexual não é inscritível, fundável [fondable] como relação1 [pg. 122].

•    O que a descoberta freudiana demonstra é que, por intermédio do inconsciente, vislumbramos que tudo o que é da linguagem que nos habita mantém uma certa relação com o sexo, mas há um resto, um irredutível dessa relação, que é o gozo, que não alcança ser escrita pela linguagem.

•    Para ser inscritível, essa relação precisa ser escrita. Assim diz Lacan: se digo inscritível, é porque o exigível para que haja função é que, pela linguagem, possa produzir-se algo que seja expressamente a escrita, com tal da função. [pg.123.]

•    Todo o problema é que a função sexual, via linguagem, não dá conta da relação sexual; e como escrever essa parcela de gozo que resiste a inscrever-se na linguagem?

•    Por isso, Lacan se dirige ao discurso da matemática, mais especificamente na linguagem matemática dos quantificadores universais, para buscar os elementos e elaborar uma fórmula que permita a inscrição dessa função do sexual que não pode se escrever, essa F(x), impossível de escrever. E por ser da ordem do impossível, não cessa de não se escrever.
 
•    E isso, ao que tudo indica, é por haver dois termos, homem e mulher, que se inscrevem de forma diferente na lei da linguagem, que parece recolocar na ordem do dia a questão feita a Tirésias por ocasião de uma discussão dentre Zeus e Hera: quem goza mais, o homem ou a mulher?

•    Como saber a verdade? O mito sempre foi um dos caminhos buscado para se formular um saber sobre a verdade na sua origem. No seminário anterior, o XVII, O avesso da psicanálise, Lacan havia dito que o mito é um saber que tem função de verdade e, que o mito é um enunciado do impossível [pg.118]. Ambas as afirmações, colocam a verdade como uma interpretação, uma construção. O mito tem a função de nos fazer não esquecer da verdade da qual nada sabemos, já que o saber como verdade, na psicanálise, é um saber que não se sabe. Tal qual o conteúdo da carta, do conto de Poe.

•    Daí também a afirmação, mais uma vez evocada por Lacan nessa aula, de que a verdade só progride por uma estrutura de ficção [pg.124].

•    Lacan nos remete, então, aos Primeiros Analíticos, de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), para recorrer ao silogismo. Um silogismo2 é uma forma de raciocínio lógico, na qual há duas premissas e uma conclusão distinta destas premissas, sendo todas proposições categóricas ou singulares. Fala mais especificamente do silogismo de darii, onde há uma universal afirmativa e duas particulares. Note-se que todo silogismo contém somente três termos: maior, médio e menor.

•     O exemplo que Lacan apresenta é:
Todo homem (termo médio) é bom (termo maior), sendo todo homem a universal.
A segunda afirmativa particular é Alguns animais (termo menor) são homens e a terceira afirmativa particular é a conclusão Logo, alguns animais são bons.
A validade de um silogismo depende do respeito às regras de estruturação. Tais regras, em número de oito, permitem verificar a correção ou incorreção do silogismo. As quatro primeiras regras são referentes aos termos e as quatro últimas são referentes às premissas.

•    Lacan faz todo um raciocínio a partir dessas proposições lógicas que não são fáceis de acompanhar quando não se domina esse conhecimento da matemática. Mas, suas construções nos conduzem à relação dessas proposições com o discurso, apontando para o fato de que a linguagem possibilita apenas um número determinado de discursos. [pg.128]

•    E com isso, chega, via discurso da lógica, as fórmulas dos quantificadores, tomando as leis de Morgan que simplificou as expressões de Boole.3
•    Essas leis e expressões permitem Lacan de escreve afirmações e negações a partir dos quantificadores Todos e Alguns, ao lado da incógnita x, e escreve duas negações possíveis relativas à função fálica, sendo o x para os termos homem/mulher.
1) Não é com todo o x que a função
Фx pode se inscrever.
                                                                      ___
x.Фx
2) Não é com a existência de um x que a função Fi de x pode se escrever.
                                                                     ___
Ǝx.Фx

•    Essas equações colocam no cerne a impossibilidade de escrever o que acontece com a relação sexual. Mas há todo um raciocínio de Lacan, ainda um tanto obscuro para mim, que busca articular a função fálica aos termos homem e mulher, de modo a afirmar ou negar esta função para cada um. E, acaba por dizer o seguinte: O homem é uma função fálica na qualidade de todo homem. [pg. 132].

•    Em seguida, coloca dúvida sobre se todo homem existe, tal como já tinha feito sobre a questão de todas as mulheres, no caso do mito da Horda, para dizer que o homem só pode ser todo homem, na qualidade de um significante, ao que escreve como touthomme, todohomem.

•    E seguindo essa lógica de que não existe toda mulher, dirá que para a mulher só será possível inscrever-se na equação como uma mulher.

•    A lógica porta a marca do impasse sexual [pg.133].

•    E para articular esses dois termos, todohomem e uma mulher, o falo é o terceiro elemento, que a mulher terá de buscá-lo em ao menos um, uma vez que todo homem não existe. Este ahomenoszum é a função essencial da relação sexual.

Notas:
1. Em matemática, uma relação é uma correspondência (ou associação) entre elementos de dois conjuntos não vazios.
2. No grego significa conclusão ou inferência.
3. Augustus De Morgan (Madura, Índia, 27 de junho de 1806 — Londres, 18 de março de 1871) foi um matemático e lógico britânico. Formulou as Leis de Morgan.  A primeira lei de Morgan propõe a negação de duas proposições afirmativas unidas por ‘e’ ou ‘ou’. A Segunda Leis de Morgan permitem-nos efetuar a negação de proposições com quantificadores (universais e existenciais).
George Boole nasceu em Lincoln - Inglaterra em 2 de Novembro de 1815.Autodidata, fundou aos 20 anos de idade a sua própria escola e dedicou-se ao estudo da Matemática. Na Álgebra de Boole existem apenas três operadores E, OU e NÃO (AND, OR, NOT).Atualmente todos os computadores usam a Álgebra de Boole materializada em microchips que contêm milhares de interruptores miniaturizados combinados em portas (gates) que produzem os resultados das operações utilizando uma linguagem binária.
Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
17 de novembro de 2020

O QUE SEMPRE SE SOUBE E AINDA NÃO SABEMOS

O homem e a mulher sempre foram misteriosos. Talvez devesse referir-me explicitamente, à figura do homem e da mulher, como enigmáticos. Cada um é um desconhecido para si mesmo, embora o mais comum seja o reconhecimento do enigma no outro. O reconhecimento da ignorância sobre si mesmo é de segundo grau, ao nível de doutorado, ao nível da docta ignorantia. Enfocado o tema, pelo ângulo da sexualidade, a complexidade só aumenta. Na literatura, desde que temos notícia, um intermédio trágico nas relações amorosas esteve incluído desde sempre como fruto da incompreensão. Na pintura renascentista, com a retomada de temas clássicos e religiosos, as cenas de Adão e Eva, nus, tem sempre um traço comum. Seja em Dürer, Ticiano, Lucas Cranach, ou em Jan Grossaert, com cujo Adão e Eva ilustrei o convite para este encontro, em todos aparecem os genitais cobertos por algum tipo de folhagem. E o interessante é que a espécie de folha que cobre um também cobre o outro. Em Lucas Cranach, o velho, são as folhas do mesmo galho que cobre Adão a cobrir Eva (ver figura a baixo). 

Se tivesse de dizer isso algebricamente, teria de dizer que ambos estão cobertos pela mesma F, ou, se quiserem, pela mesma Fi. Para Lacan, trata-se da inscrição de uma letra.

Para o reconhecimento dos sexos, os assim chamados caracteres secundários sempre foram muito importantes, mas nunca definitivos pois costumam ser os primeiros a serem falseados. Ah! Diadorin... para explorar o sertão tem que se travestir. E a alma de Riobaldo se transtorna.

Lacan quer saber como a transmissão da letra se relaciona com o gozo. Nas lições anteriores, a letra era, para ele, a lettre. Gostou da ideia de tomá-la como carta na medida em que o significante vinha, aí, envelopada na letra da carta, na lettre de la lettre. E isso proporcionava um efeito feminizante ao portador da carta, fosse quem fosse. Como a carta estava endereçada a uma mulher e, pelo que se deduz, pelo fato de ser mulher, aquele que por ela se interessa, independentemente de seu particular motivo, se feminiliza, vítima do efeito da sombra. E trata-se de uma sombra que não é sem as luzes. Daí a importância da filosofia das luzes, da Aufklärung e da estrutura de ficção que lhe acompanha. Quando a luz é projetada aparece também a sombra e, nela, o sujeito que no fantasma está dividido. E será por meio desta lógica do fantasma que poderemos vislumbrar a relação do homem e da mulher, e concluir que a relação sexual não pode ser escrita. Entende-se que não pode ser escrita de forma definitiva e de modo lógico.


Para chegar a isso, Lacan propõe seguir um raciocínio lógico, conforme proposto por Aristóteles nos seus Analíticos Anteriores, também conhecidos como Primeiros Analíticos. O primeiro raciocínio é o silogismo. Nada mais lógico: em grego, para raciocínio, diz-se συλλογισμóς. Trata-se de um raciocínio dedutivo formado por duas proposições e uma conclusão: Todos os homens são mortais, os gregos são homens, logo todos os gregos são mortais.

Entre os silogismos, Lacan toma o conhecido como Darii, no qual o termo médio ocupa a posição de sujeito na premissa maior e predicado na premissa menor.

                ∀ B → A: Todo homem é bom
                Ǝ C  → B: Alguns animais são homens
                … Ǝ C → A: Logo, alguns animais são bons.

Trata-se de um raciocínio que só se sustenta pelo uso da letra. Mas isso vem desde Platão, antes de Aristóteles, quando partiu da ideia do bem. Mas quando se diz bom, com isso pode-se dizer qualquer coisa, inclusive que se trata de uma boa porcaria. Se algo pode introduzir alguma diferença, por um lado, será o significante e, por outro os quantificadores, o que está para todos e o que está para alguns. Trata-se de saber se para todo x se cumpre a função de x [∀x.Φx]. Então, o x de ∀x é uma incógnita e para saber o valor dela, Laca se vale de uma equação de segundo grau, esta que só tem uma incógnita e cuja raiz será o resultado da equação, para perguntar se a raiz dessa equação pode inscrever-se na função F que define o x como variável. E a resposta é não! [p.130] Não pode inscrever-se porque existem [Ǝ] raízes da equação de segundo grau que são números imaginários, i.e., números complexos cuja parte real é igual a zero. Quer dizer, existem raízes que satisfazem a função do número real e outras que não satisfazem. É isto que diz da impossibilidade de escrever o que sucede com a relação sexual.


 

Para Lacan, é muito difícil mostrar em imagens que há algo de desconhecido que está aí, o homem, que é algo desconhecido que está aí, ele repete, como para sublinhar que o desconhecido da mulher não é o mesmo desconhecido do homem, e há um terceiro termo que ele chama de médium.

O problema, aponta Lacan, é que se ligarmos o termo homem, ou o termo mulher a esse médium, esse médium não se comunicará com o outro termo. Então não existe isto de que todo homem é fálico e toda mulher não o é, mesmo porque o todo da mulher não existe e também porque existem sérias dúvidas se o todo homem existe. Se existisse esse touthomme, diz Lacan, não seria mais do que um significante, seria o mítico pai da horda primeva imaginado por Freud. Mas é como algum que o homem pode ser fálico. E as histéricas, essas que permitiram a Freud criar a psicanálise, se se tratasse de bancar o
touthomme, ela seria tão capaz de fazê-lo como o próprio touthomme.



SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
9 de junho de 1971
IX. Lição sobre Um homem e uma mulher e a psicanálise.
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
1º de dezembro de 2020

•    Seguindo seu caminho, Lacan se ocupará nesta aula de situar como um homem e uma mulher se encontram em relação a este impossível de se escrever da relação sexual.

•    Começa invocando seus Escritos. Tomando a homofonia dos Escritos, (Écrits, em francês), com a palavra grito, crí, Lacan dirá que, um homem e uma mulher, não podendo se entender de outra maneira, podem ouvir-se gritar [pg.135]. A outra maneira de se entender, dirá ele, é na cama, onde não tem nenhuma necessidade de falar.

•    Mas, sendo o homem e a mulher, fatos de discurso [pg.136] e discurso é semblante, como se posicionam um e outro nesse discurso?

•    O semblante só se enuncia a partir da verdade [pg.136]. E onde está a verdade? Já sabemos que a verdade só aparece as meias, e que só pode expressar-se como semblante do gozo.

•    Retoma daí suas formulações da mulher e do homem, elaborado nas aulas anteriores, para dizer, da mulher, que não é de todo x que se pode postular a função Φ
de x. E por esse não é de todo x que se postula a mulher. E, para o homem, não existe um x tal que satisfaça a função pela qual se define a variável, por ser a função de Φx. E a partir de ele não existir que se formula o que acontece com o homem, com o macho [pg.137].

•    Lacan nos lembrará que o semblante, que faz circular a verdade, é assez phalle [pg.138], jogando com a homofonia, em francês, de falo e acéfalo, sem cabeça, ou seja, a verdade não tem um dono.

•    Mas Lacan enfatizará que é todo esse gozo sexual, interdito, nos põe a falar, e falar é essa divisão irremediável entre o gozo e o semblante, ou seja, o discurso [pg.141]. É nesse deslizamento moebiano do gozo e do semblante que a verdade se expressa.

•    Volta a lembrar que a condição do inconsciente é a linguagem. Daí dizer que ele sabe coisas. E o que o inconsciente sabe tem relação com a significação do falo, que emerge como semblante dessa falta que não podemos inscrever: a relação sexual.

•    Tal obstáculo impulsionou Lacan a buscar na figura topológica da garrafa Klein, um modelo de referência do discurso da histérica, que conjuga a verdade do seu gozo com seu saber implacável de que Outro apropriado para causa-lo é o falo, o seja, um semblante [pg.143].

•    E porque a garrafa de Klein?1 (https://youtu.be/mF4x8svpSgA)

 
Garrafa de Klein


•    Essa figura topológica tem como característica ser não orientável, ou seja, não é possível definir um interior e um exterior. Ao se tomar um ponto isolado, leva a pensar em uma estrutura bidimensional com um dentro e um fora. Como um todo, o dentro e o fora se comunicam de modo contínuo. Lacan a tomará para caracterizar a estrutura do desejo insatisfeito, marca do discurso histérico, que ao destacar ao menos um ponto dessa estrutura, ao projetar no Campo do Outro esse objeto que faz semblante de completude, o falo. Do ponto que vista da histérica, seu discurso, para suportar essa castração, vive a exaltar e depreciar esse elemento terceiro, o falo, enquanto semblante que marca a completude imaginária, e que a coloca na direção de ahomenozum como via de obtenção do falo.

•    Disse Lacan: A histérica se situa por introduzir o nãomaiskium com que se institui cada uma das mulheres, por intermédio do não é toda mulher que se pode dizer que ela é função do falo. Que seja de toda mulher é o que compõe seu desejo, e é por isso que esse desejo se sustenta por ficar insatisfeito, porque dele resulta uma mulher [pg.146].

•    E Lacan encaminha o final dessa aula questionando o quanto o mito fundamental da psicanálise, o Édipo, dá conta de responder à genealogia do desejo. Ele diz: a genealogia do desejo decorre de uma combinatória mais complexa que a do mito [pg.147]
. Os mitos são estruturas que buscam responder ao enigma da origem. E nisso seu valor foi marcadamente validado pelos estudos de Levis-Strauss. Mas Lacan quer ir além do fato de estrutura. Busca um discurso que responda a impossibilidade de escreve a relação sexual desse gozo que precisa ser castrado.

•    O Édipo tem a vantagem de mostrarem que o homem pode corresponder à exigência do nãomaisqueum que está no ser de uma mulher. Ele mesmo amaria nãomaisqueuma, nos diz Lacan. [pg.148] Mas nessa fábula edipiana o homem só se sustenta por ser um garotinho: que no frigir dos ovos, seu desejo é gozar com a mãe.

•    Isso leva Lacan a comparar o mito do Édipo e o de Totem e Tabu, o mito do pai da Horda. Dirá que o primeiro foi ditado a Freud pela insatisfação das histéricas, e o segundo pelos próprios impasses de Freud. As questões presentes no primeiro mito, a marca do trágico na passagem do falo do pai para o filho, que condensa numa única revelação o assassinato do pai e o desejo do filho pela mãe, tais elementos não estão presentes no mito do pai da Horda. Ali a questão é que o assassinato surge com vingança. No Édipo o assassinato do pai é um fato desconhecido a priori.

•    Lacan parece preocupado em reconhecer os efeitos da lei que interdita o gozo e produz, como efeito, essa impossibilidade de escrever a relação sexual.

•    No mito do Édipo, esse gozo do filho com a mãe é velado ao casal real, mas está ali e no momento em que é revelado faz todo um estrago. Essa revelação e seu exílio como castração simbólica só são necessárias para restabelecer a garantia do gozo do povo. Édipo, representante do falo de seu povo, e não de Jocasta, diz Lacan, então, bem podemos reconhecer que, ao punir-se pela sua desmedida, sua hybris (ὕϐρις), em relação ao gozo, foi o modo de expressar que o valor da lei é para todos.

•    Em Totem e Tabu, esse gozo está explícito e é o que motiva o assassinato do pai. Não só assassinado, as devorado pelos filhos, ficando cada um apenas com uma parte. O pai como um todo, só se constitui numa comunhão. Os efeitos são outros. Se estabelece um contrato social onde se instaura a interdição da mãe, primordialmente enquanto mulheres do pai.

•    E Lacan finaliza apontando as diferenças em suas funções, entre os dois mitos, e o que tem de comum:

§    No Édipo a lei está desde o princípio e é a saída da profusão do gozo. Ali, o lugar do pai precisa ser assegurado pela lei.
§    Em Totem e tabu, primeiro está o gozo e depois a lei. Esta lei é efeito de uma conjuração, ou seja, de um acordo comum que, via proibição das mulheres do pai, instaura um acordo que limita o gozo. O pai só será reconhecido na comunhão dos filhos.
•    Aliás, esse efeito de conjuração é o que Lacan aponta de comum entre os dois mitos e que Totem e Tabu é o mito apresentado por Freud como um produto neurótico, recurso usado por ele justo por ser impossível de formular no discurso a relação sexual.

Notas:
1.   Construída pelo matemático Felix Klein, em 1884, a garrafa de Klein é um objeto matemático que vive em um espaço de quatro dimensões embora possa ser visualizado em um espaço de três dimensões. A garrafa de Klein, um conceito da matemática bastante interessante, trata-se de uma superfície fechada sem margens e não orientável, isto é, uma superfície onde não é possível definir um “interior” e um “exterior”.
Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
1º de dezembro de 2020

Pois, enfim, que é o homem na natureza? Um nada ante o infinito, um tudo ante o nada, um intermediário entre nada e tudo. Infinitamente distante da compreensão dos extremos, o fim das coisas e seu princípio estão para ele infinitamente escondidos em um segredo impenetrável, igualmente incapaz de ver o nada de onde ele foi arrancado, e o infinito no qual ele é engolido.
PASCAL, Pensamentos. Fragmento 72.

DO HOMO SAPIENS
E eis que, ante a infinita criação,
O próprio Deus parou,
desconcertado e mudo!
Num sorriso, inventou o homo sapiens, então,
Para que lhe explicasse aquilo tudo...
MARIO QUINTANA, Espelho Mágico.



















A trilha sonora para essa lição de Lacan bem poderia ser a mesma que Francis Lai compôs para o filme de Claude Lelouch, Um homem, uma mulher, de 1966. Desse filme, aliás, dizem que as partes em preto e branco deveram-se à falta de dinheiro para comprar filmes coloridos. Mas ficaram tão bem, com tanta harmonia na apresentação do romance, que acabaram sendo responsáveis pelos prêmios recebidos, como o Oscar de melhor filme estrangeiro e o Palma de Ouro, de Cannes. Em preto e branco, como uma escritura, estavam as reminiscências dos personagens. E, para o final, Lelouch filmou duas cenas: uma, em que o casal fica junto, e outra, em que fica separado. Por pena de ver os dois separados, Lelouch deixou-os ficarem juntos. A verdade é que, quando nos lembramos da história, os dois finais estão sempre presentes. Separados e juntos!

Esta nona lição trata disso, da impossível relação sexual do homem e da mulher. Para chegar à constatação desse impossível, Lacan, com outro valor à pena, recorre à lógica. Tudo depende de uma significação. Trata-se de uma questão de Bedeutung, ou, como diz Lacan, de Bedeutung des Phallus, tal qual o título de sua exposição berlinense. Esse é o ponto central de sua lição, e ele chega a dizer que a Bedeutung des Phallus é, na verdade, um pleonasmo, porque, enfim, na linguagem, o falo é a única Bedeutung (p.139). Lembram quando era voz corrente que, para a psicanálise, tudo é sexo? E a linguagem é, antes de tudo, sim, o habitat dos seres que sustentam a fala. Falar significa a divisão irremediável entre o gozo e o semblant. Essa Bedeutung, longe do conceito de interpretação de Paul Ricoeur, cuja hermenêutica levou a um exame da riqueza da linguagem, tem a ver com a falta inerente à linguagem que nos serve, no final das contas, apenas para a construção de metáforas e metonímias. A verdade é gozar de fazer semblant (p.141). É das metáforas que surgem todas as criações e, diz o mestre, também todas as insanidades míticas (nem por isso menos importantes!), incluídas aí tanto o Édipo como o Totem e Tabu, enquanto da metonímia os habitantes da linguagem podem extrair o pouco de realidade que lhes resta. Esse pouco de realidade provavelmente Lacan o tenha aproveitado do manifesto surrealista, de André Brenton, que o publicou como uma Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade. A vida é um teatro eterno e toda máscara fracassa no papel de representar o eu; contudo, há que escolher uma para assegurar esse pouco de realidade necessário à presença no mundo1 e esse pouco nos aparece sob a forma de plus-de-gozar.

Lacan registra também a importância da escrita para o registro da história, e não parece demais lembrá-la como registro da linguagem, sem a qual não há memória. Veja-se a falta de memória dos períodos anteriores à aquisição da linguagem e daí Vitor, o menino que foi criado por lobos: como não teve acesso à linguagem, não se lembrava de nada. A escrita nunca passa de algo que se articula como ossos, cuja carne seria a linguagem. Concernente a isso, lembro de um chiste que muito ouvia dos hermanos argentinos: a língua espanhola e a portuguesa são feitas da mesma carne, só que a primeira é com osso. Pois uma vez, então, perguntei-lhes: - Se o português não tem osso, como será que fica em pé? – E nunca mais ouvi o tal dito! Quando Lacan diz que o gozo sexual não tem osso (p.139), algo dessa história passa por aí.

O destaque para a escrita é por sua capacidade de prover de ossos todos os gozos, o que lhe possibilita sublinhar que a relação sexual falta no campo da verdade (p.139). Causa disso é ter sua fonte apenas no semblant. Desse modo, a verdade só abre caminho para gozos que parodiam o gozo efetivo, enquanto este lhe permanece alheio.

Com outra pontuação, Lacan dirá: Assim é o Outro do gozo: é para sempre interdito àquele cuja habitação a linguagem só permite ao lhe fornecer escafandros. Seu titubeio, ao usar essa figura (p.139), faz-me pensar que esteja se referindo ao solicitado por Dali quando foi convidado a fazer uma conferência sobre o surrealismo, em Londres. Para tal, o artista encomendou, de uma empresa especializada, um escafandro. E quando lhe perguntaram para que profundidade iria precisá-lo, respondeu: - Um escafandro que me permita descer às profundezas do inconsciente.

E da Verdade, chamada por Lacan de sua companheira e cuja prosopopeia ele desenvolve na conferência A coisa freudiana, ele diz tê-la extraído de um poço, de um puits, embora a tradução não tenha visto necessidade de incluí-lo (p.141). É que esse poço, muito provavelmente, era aquele de águas tão claras e frescas que a Mentira convenceu a Verdade de aí mergulhar em uma tarde de verão e, enquanto a Verdade nua aí se refrescava, vestiu suas roupas e foi-se, como se fosse ela a própria Verdade.

As máscaras, como se vê, não são coisas de agora. Lacan menciona a história de Ashikaga Yashimasa (1435-1490) – cujo nome não enuncia –, o oitavo shogun do período Muromachi da história do Japão, que teria construído, em Kyoto, o templo conhecido como Pavilhão de Prata, onde guardam, ainda hoje, sua máscara, sua persona de apaixonado pela lua. E quem não é apaixonado por Selene? No Carnaval, cantávamos que, se ela não fosse casada, faríamos uma escada para ir ao céu beijá-la. Mas, depois, como na obra de Alfonse Allais, Um drama bem parisiense, quando tiram as máscaras, não era ele, não era ela.

O texto de Lacan tem um pouco dessa mascarada. Impenetrável nas primeiras leituras, vai se abrindo como um corpo de mulher e, depois, o leitor não sabe se o captou exatamente como gostaria, ou como deveria. É assim, desde a frase de abertura:

Um homem e uma mulher podem se ouvir, não digo que não.
 Podem, como tais, ouvir-se gritar.


Lacan usa o verbo entendre, que pode ser traduzido tanto como ouvir como entender. Como ele está ocupado com o escrito, tendo mesmo redigido algumas notas para essa aula, ele destaca do ecrit o cri, o grito, tema do qual diz que, pelo menos naquele momento, não voltará a falar. Mas como Lacan não costuma dizer coisas por dizer, temos de prestar atenção em tudo, como se fosse um Heiligue text, o texto sagrado de um sonho. Lembro, então, dois momentos em que fala do grito. Primeiro, no seminário da Angústia, quando se ocupa da pintura de Munch, intitulada justamente de O Grito. Edvard está sobre uma ponte com os amigos, de repente vê aquele céu com línguas vermelhas, os amigos seguem e ele para, paralisado pelo medo, e sente um grito infindável a atravessar a natureza. Interessante que, desse Seminário, Miller nos conta que Lacan deixou transcrição das aulas, por tê-las relatado cada uma delas à sua filha Judith que, nestes dias, estava em viagem. Quero dizer que delas também fez um escrito. Depois o retoma, no Seminário sobre os Problemas cruciais da psicanálise. Está ocupado com o significado do grito da criança. Em ambos os momentos, ele diz que o grito não se dá sobre um fundo de silêncio, como talvez a obra de Munch fizesse pensar, mas que o grito cria o silêncio, este silêncio que também assusta Pascal, ao dar-lhe uma noção de seu tamanho frente à imensidão do universo. Souberam, a propósito, que dois anos atrás, em 2018, os astrônomos, liderados por Olga Cucciati, descobriram um superaglomerado ancestral de galáxias, batizado, por seu tamanho colossal, como Hyperion, com massa de um milhão de bilhões de vezes a do sol e cuja luz leva mais de onze bilhões de anos para chegar até nós? E Pascal, o pobre, nem sabia disso... Quando a criança grita, cria-se um momento de interpenetração do interior com o exterior, e é neste momento de remboursement que Lacan está interessado, nesse momento de virada, de aproximação dos espaços, cuja torção ele aponta, mais para o final dessa aula, na garrafa de Klein, no momento em que acontece a transformação do fundo, do culier, uma palavra aludida quando falava do

Clique na figura e assista (via Youtube) a construção
de uma Garrafa deKlein.


orgulho do fundo das garrafas, mas que, nesse momento, o texto estabelecido não o registra. Lacan está naquele momento em que, ocupado com a questão da histérica, critica André Green (que também não cita) por só se ocupar do teatro, e não ter lido o Ménon, de Aristóteles, porque, enfim, a histérica não é uma mulher (p.145). O Ménon trata da virtude e do conhecimento. Sócrates mostra como o escravo, que não sabia saber, sabe matemática, o que, para Platão, é prova da reminiscência. Lacan está interessado aí na distinção entre verdade e saber. É aí que lhe serve a reversão da garrafa de Klein, na medida em que o saber se prolonga revelando-se como saber da verdade (p.145).

Não se trata de amar a verdade, o que, claramente, não seria mais do que uma festa de caridade (p.144). Neste claramente, Lacan reconhece a presença da Aufklärung, representada pela presença do discurso do analista. É que a histérica conjuga a verdade de seu gozo com seu saber implacável de que o Outro apropriado para causar o seu gozo é o falo, vale dizer, um semblant. E isso, antes de tudo, por sua própria estrutura de sujeito (p.143). Como o alcance desse gozo, contudo, é da ordem do impossível, a histérica atribui esse poder de detenção do semblant ao menos a um, que Lacan chama de homoinzun, cuja escrita pode ser expressa algebricamente como a-1, para não esquecer que pode funcionar como um objeto a (p.143) e passar do discurso da histérica ao discurso do analista, o que equivale a um xeque-mate no mestre. É assim que ela cumpre seu destino de relançar o analista ao saber.

Notas:
André Brenton. (1924b/1992) Introduction au discours sur le peu de réalité, in Point du jour, Oeuvres Complètes II. Bibliothèque de la Pléiade, Paris, Gallimard, p. 266.

SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
16 de junho de 1971
X. Lição "Do mito forjado por Freud".
Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva
12 de janeiro de 2021

Quando o homem não faz idéia das coisas
remotas e desconhecidas, as estima pelas
coisas presentes e conhecidas
.
GIAMBAPTISTA VICO, Scienza Nuova, 1725.







•    Chegamos à última aula desse Seminário. Mas, numa perspectiva viconiana,1 ela bem poderia ser a primeira, inaugurando um novo ciclo de leitura desse complexo Seminário, já que os pontos cruciais que Lacan trabalhou ao longo desse ano estão aí presentes. A começar pelo título, destacando que o colocou no tempo condicional, como hipótese, o que reforça a colocação de Luiz-Olyntho no comentário a primeira lição, de que a melhor tradução ao português é De um discurso que não seria do semblant.

•    Retoma que os discursos que estabeleceu no seu seminário do ano anterior se dispõem numa certa ordem, privilegiando o discurso do analista, na medida que é o discurso que esclarece a articulação da verdade com o saber, ou seja, o saber que importa e move o sujeito vem de uma verdade que não se tem acesso de modo direto.

•    Daí o valor da descoberta freudiana, através das histéricas e obsessivos, do sintoma, ou seja, no lugar do que não pode ser reconhecido como causa do gozo, algo emerge como substituto dessa verdade.

•    Daí também Lacan vai precisar da noção de semblant, sendo justo isso que pode ser articulado num discurso, valendo-se dos recursos da linguagem, para fazer emergir a verdade do sujeito de modo a dar sentido aos efeitos da castração. Isso tudo para enfrentar a verdade que realmente importa: não existe a relação sexual. Ao menos, é o que Lacan passou este ano a nos dizer, do impossível de escrevê-la.

•    E afirma que todo discurso possível só apareceria como semblant (pg.156), fazendo suplência ao que fala.

•    Lacan também deixa aberta, na lição final deste Seminário, a questão de saber se é pelo fato de ser falante que as coisas são assim ou se, ao contrário, é pelo fato de a origem estar em que a relação (sexual) não é falável que é preciso, para todos que habitam a linguagem, que se elabore aquilo que possibilita, sob a forma da castração, a hiância deixada no que é biologicamente essencial à reprodução desses seres como viventes para que sua raça continue. (pgs. 156/7)

•    Parece apostar nessa última hipótese, ao colocar que os rituais de iniciação sexual, presentes até hoje em inúmeras culturas, surgem no lugar da impossibilidade de escrever a relação sexual. É o recurso da cultura para fazer marca ao órgão que representa o terceiro elemento necessário para inscrever a castração, ou seja, a submissão à lei que instaura o falo como limitador e ordenador do gozo entre o homem e a mulher.

•    Ao que parece, habitar a linguagem nos retira da condição de responder à natureza e, consequentemente, no que diz respeito ao gozo sexual, coloca uma dificuldade ao não ser possível escrever a relação sexual. Isto é a castração.

•    Pela histérica Freud nos conduziu a reconhecer que sua relação com o falo faz semblant a esse mistério do gozo sexual. Pela linguagem, só alcançamos uma Bedeutung do falo, uma significação, sem jamais alcançar seu sentido verdadeiro. Só sabemos da verdade por um discurso oblíquo, onde jamais teremos a = a, onde um termo está sempre a significar a outro termo, mesmo quando usamos um mesmo nome, fazendo Lacan ai diferença entre nome (name, como nome próprio, em inglês) e nome (noun, como substantivo).

•    É no nível do nome próprio que fica claro que sua função é fazer falar. O nome é aquilo que chama, diz Lacan (pg.160), chama a quê? A falar. Já o falo, chame o quanto quiser, continuará a não dizer nada (pg. 160).

•    Eis a importância, da formulação de Lacan, da metáfora paterna, do Nome-do-Pai como o que vem para dar nome e encarnar o falo, um significante a dar sentido ao desejo da mãe, desejo esse que é o x, o sentido que não se alcança saber.

•    Lá na aula 3, de 10 de fevereiro, Lacan havia explorado a relação do significante como referente do discurso, e retomo aqui o que lá registrei nos meus comentários: O referente de um discurso é sempre real, por isso impossível de designar, e toda designação é metafórica. O significante evoca um referente, mas nunca o certo e assim construímos uma linguagem.

•    É nesse sentido que o significante mestre do discurso analítico é realmente o Nome-do-Pai, afirma Lacan (pg.161). Isso por ser o nome do pai que implica a lei, segundo Freud, e segundo Lacan, por instaurar o pai como o que inaugura a castração, o marco zero da castração, por assim dizer.

•    Isso é o que o mito engendrado por Freud em Totem e tabu, o mito do pai da Horda, representa. A partir desse pai castrado, todos os outros deverão ser numerados. E para nos ilustrar esse feito, Lacan lembra o valor da nomeação nas dinastias, que inclui uma numeração: Geoge I, George II, George III, etc. A necessidade lógica disto diz da verdade do bem conhecido ditado latino, Mater semper certa est, pater nunquan: a mãe sempre é certa, quanto ao pai, nunca. Isso vale para lembrar que o pai está submetido à castração a ponto de ser apenas um número. A relação da mãe com um filho é um dado da natureza que não deixa dúvida, já o pai, como elemento da cultura, necessita ser nomeado/numerado (nom/nombre). O pai é uma questão de fé.

•    A seguir, Lacan define o neurótico pela evitação da castração. Para a histérica, a forma lógica de proceder essa recusa é colocando a castração no outro, como princípio da possibilidade do gozo histérico, ao mesmo tempo em que o outro deve responder no lugar do falo. Se, de acordo a Lacan, o assassinato do pai é o substituto dessa recusa da castração, e o falo é o que fecunda, sendo toda criança uma reprodução do falo, vemos o quanto é complexo para a histérica aceder ao gozo, pois primeiro precisa recusar a castração como elemento associado ao todo-gozo do pai, e faz isso colocando-a no outro, ou seja, o outro é não-todo gozo; só assim pode tomar o outro como ocupante desse lugar que lhe dá acesso ao falo, logo, ao gozo. Uma operação logicamente difícil.

•    Para o obsessivo, alcançar o gozo passa pela dívida de não existir (pg.165); ele se esquiva do não existir, diz Lacan (pg. 165), onde não existir remete ao gozo original do pai, logo, à castração. Se o pai mítico da Horda precisou ser assassinado para que os filhos pudessem aceder ao gozo, logo, gozar remete ao assassinato do pai, leia-se ai, à castração do pai. Por isso o Nome-do-Pai opera no filho como herança e é o que suporta a função fálica, ao unir o desejo à lei, lembrando sempre que o gozo absoluto é punido com a morte, logo, só resta aceitar a castração, um gozo limitado. O problema para o obsessivo é que parece que ele fica paralisado frente a constatação que afirma: Se Deus está morto, nada mais é permitido. O efeito da marca deixada pelo pai morto é mais imperiosa que sua vigência em vida.

•    Lacan encaminha o final dessa aula dizendo que, aquilo que se herda da operação do Édipo, o luto pelo pai morto, é o supereu. Este terá na sua essência um apelo a esta reminiscência do gozo puro, a não castração, sendo seu mandato essa ordem impossível de satisfazer: Goza!(pg.166)

•    Amar e gozar é o paradoxo que vive o neurótico e que o paralisa ao tomar esse mandato do supereu como um condicionante moral. E Lacan finaliza a aula invocando as palavras do Eclesiastes.2 Trago aqui o versículo que suponho ser de onde Lacan buscou a citação que faz: Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã, os quais Deus te deu debaixo do sol, todos os dias da tua vaidade; porque esta é a tua porção nesta vida, e no teu trabalho, que tu fizeste debaixo do sol. (Eclesiastes 9.9)
____________________
Notas:
1.  Giambaptista Vico (Nápoles, 1668-1744). Filósofo, historiador e jurista italiano. Sua principal obra, Scienza Nuova (Ciência Nova), de 1725,  tornou-se um verdadeiro clássico da teoria da história a partir do século XIX, Para ele existem verdades humanas que não podem ser demonstradas através das evidências racionais. Para Vico, a história é uma repetição cíclica de três idades: dos deuses, dos heróis e dos homens.
2. O nome Eclesiastes é uma tradução da palavra hebraica Koheleth, que significa “aquele que reúne” ou simplesmente um pregador. No início do livro, este se denomina como filho de Davi, rei em Jerusalém. Não se sabe ao certo a data em que foi escrito, alguns estimam que foi em 935 a.C, na era do rei Salomão, outros, que foi escrito aproximadamente em 250 a.C. Este livro é muito conhecido por dizer que, na vida, tudo é vaidade.



Contribuição de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
12 de janeiro de 2021


Que me importa esse Giges,
Potente rei de Sardes?
Não quero, nem invejo,
O cetro dos tiranos.
Se por tais glórias ardes,
Por certo que me vejo
De gostos mais humanos.
Prefiro perfumosas
Ter a barba e as melenas;
Coroar-me de rosas
E, antes que ele se acabe,
Gozar o dia de hoje.
Pois – amanhã – quem sabe?

ANACREONTE, As Anacreônticas. Ed. Campbell, Nº 8, 2001. Trad. de Almeida Cousin)



















Chegamos a última aula do 18º Seminário de Lacan. Ele busca, agora, fixar o sentido de seu título. Antecipa, em sua preocupação, a importância da Bedeutung, discriminada por Frege em Sinn e Bedeutung, o sentido e a significação, o sentido e a denotação e também o sentido e o nominatum.

Ressaltando também o tempo condicional da frase, uma observação que não parece ter sido registrada pela tradução, ele parte dos discursos já trabalhados no Seminário anterior, frisando a importância de sua ordem, começando pelo discurso do amo, e seguindo pelo da universidade, da histérica e do analista, estruturados sempre a partir de um semblant, sendo que o último privilegia a articulação da verdade com o saber.

1.
O saber de que se trata, é o do analista, enquanto suposto pelo neurótico, e a verdade em questão é a dos histéricos e dos obsessivos, estruturada através da linguagem, em especial de uma linguagem que se cristaliza no atravessamento de uma dimansão (Lacan diz demansion) construída no tempo da vida do sujeito, marcada, sobremaneira, pela religião, da qual diria, não se pode perder o sentido de re-ligar. Dizer que uma linguagem condiciona a verdade é dizer da limitação da verdade imposta pela linguagem de cada sujeito, e também dizer que o neurótico é aquele que dá mais crédito à sua verdade, ignorante que é do que ignora.

O discurso do neurótico surge com o sintoma. O sujeito imagina a vida de um jeito e ela lhe sai de outro, e isso a ponto de o sujeito não mais reconhecer-se. É nesse momento que Lacan associa com a operação de subversão marxista. Em parte porque Marx havia definido o sintoma como o que não funciona no Real e, em parte, por sua teoria do conhecimento contrária à posição idealista de Hegel – advogado da imobilidade das classes sociais –, e que acreditava na possibilidade subversiva da classe trabalhadora, que ele chamava de proletariado. Em outros termos, trata-se da distância do eu atual ao eu ideal, conforme proposto por Freud.

A importância de Marx, para Lacan, é que a subversão marxista introduz, pelo engano aí denunciado, a dimensão do semblant. E o discurso que lhe interessa não é, então, o do semblant, vale dizer o do engano. O motor da subversão é o reconhecimento de um valor cujo semblant, por seu peso e medida, é tomado como moeda sonante. E como esta denúncia gira em torno ao dinheiro, ao capital, ela enuncia algo da mais-valia, uma promoção da mais-valia como argumento da subversão.

Neste sentido, o discurso do capitalista é uma determinação do discurso do amo.  Agora, o que leva Lacan a chamar determinação, é uma inversão da posição do semblant com a da verdade: O $ – no lugar da verdade do amo – é o ocupante do lugar do agente, do lugar do semblant, e, apoiado na verdade o amo, explora o saber do outro para obter, como gozo, um lucro.
           
                                        
                                
Disc. do Amo                                            Disc. do Capitalista

Frente a isso, Lacan prefere ver o discurso freudiano colocando em causa o que se articula como verdade em oposição a um semblant. E o que se articula como verdade é a não existência da relação sexual.

Está bem, não há relação sexual. Mas como isso se apresenta no discurso do neurótico? Lacan responde: - Como um fio enrolado em torno ao vazio, e o analista fica a escuta, buscando valorizar o ponto de enigma. A detecção desse enigma apoia-se em uma discordância com o semblant. Algo em torno a uma composição do gozo com o semblant, de uma intrusão, nessa composição chamada de castração, e que no neurótico aparece como temor, como evitação.

Os rituais de iniciação passam todos eles por algum tipo de castração, seja real ou simbólica. A observação geral é de que se, por um lado, sempre inspira temor, por outro sempre há constância. As marcas dessa operação ficam registradas no órgão que, por isso, passa a funcionar como símbolo, na medida em que lhe ultrapassa. Trata-se do falo, representante, tanto para o homem, como para a mulher, das dificuldades com o gozo sexual.

Nesse propósito, Lacan ocupa-se com a coerção à castração na medida em que ela implica uma lei e a submissão à essa lei leva à complacência, em especial da histérica, da histérica em pessoa, mas valendo para todos. A prática da subincisão (p.157) ajudou-me a compreender todas estas práticas que deixam sua marca no pênis. Ela consiste em um aumento da abertura da uretra, no pênis, de até dois centímetros, praticada nos meninos, muito precocemente, em cerimônia pública. E o interessante é que, nessas ocasiões, os rapazes mais velhos dessas tribos australianas voluntariam-se, orgulhosamente, para aumentar essa abertura que, em alguns casos, pode ir até o início do escroto, obrigando os homens a urinar abaixados, do mesmo modo que as mulheres.

2.
E o que é a histérica em pessoa? Uma máscara! Característica que permitiu a Lacan ver que o gozo, escrito com a variável algébrica x, não se situa por relação ao falo, escrito como Φ. Trata-se sempre do semblant do falo. Daí seu interesse pela Bedeutung, tanto no nível conotativo, subjetivo, como no denotativo, no nível de sua extensão e, principalmente, com a Bedeutng, na leitura de Frege, quando se detém no exemplo de o autor de Waverley, que veiculará um sentido (Sinn) e Sir Walter Scott, seu autor, que veiculará uma designação (Bedeutung). A pergunta de se será possível substituir, sempre, Sir Walter Scott por o autor de Waverley, justifica-se devido ao fato de a primeira edição desse primeiro romance histórico (Scott é o pai do romance histórico) ter saído anonimamente, e serviu para ele tornar-se conhecido assim, como o autor de Waverley.  Então, quando começaram a sair os outros romances do mesmo gênero, de sua autoria, o público se referia a ele assim, como o autor de Waverley.1 Seguindo com suas associações, Lacan percebe que o interesse pelo assunto surgiu de uma pergunta do Rei Jorge, o III ou o IV? Não importa qual, mas sim que o nome do pai pode ser numerado, enquanto o da mãe não. Escute-se a força da tautologia:  Mãe é mãe! Trata-se da diferença entre numéro e nombre, quer dizer, do número, enquanto cifra, e do número, enquanto quantidade, por um lado, e, por outro, da diferença entre name, que será sempre o nome próprio, e noum, que será o nome comum, o substantivo.

São dados que permitem ao autor dizer que a característica do falo não é propriamente ser o significante da falta, como se diz a três por quatro, mas sim aquilo de que não sai nenhuma palavra (p.159).

Sua ocupação com o nome passa por Carnap que traduziu a Bedeutung de Frege por nominatum. O nome é aquilo que chama, a quê? A falar. E o falo não diz nada. Mas serve para ver a consistência da metáfora paterna, escrita, desde A instância da Letra, não como registra a tradução, mas como

,
 
e não como x minúsculo, como consta no texto publicado por Zahar, mas sim com o s minúsculo do significado.

No caso de Schreber o nome do pai, que daí deriva pode dar sentido ao desejo da mãe, mas, no

caso da histérica, o discurso do analista pode produzir o nome-do-pai. Veja-se o relato da análise de Gérard Haddad, com Lacan, no momento em que volta a interessar-se pela religião dos pais e encontra, nas leis do Talmud, serventia para seu trabalho. Como diz Lacan, o nome implica essencialmente a lei (p.161).

3.
Lacan aborda um aspecto menos óbvio do Complexo de Édipo. Antes que apontar a primazia do pai, destaca sua numerabilidade. Lembram que o jovem Édipo foge de Corinto para escapar da previsão oracular. Para não matar o pai Pólibo termina por matar o pai Laio. O pai é sempre mais de um, daí sua numerabilidade observada em reis, faraós e tais, enquanto a mãe é inumerável. Por outro lado, avós e mesmo bisavós – que é outro modo de contar –, também podem ser pais. Entre os egípcios, a pratica do incesto entre os governantes foi bastante comum. Amenófis III, por exemplo, conforme recentes estudos genéticos, com uma de suas filhas foi pai de Tutankamon e, na morte deste, casou com sua esposa a qual, por sua vez, era sua neta. O pai tem uma história que pode ser contada, enumerada.

Quanto ao neurótico, um modo de defini-lo é pela evitação da castração. A histérica faz isso colocando-a por inteiro no seu parceiro: ele precisa ser castrado. A expectativa histérica é que desse modo ela possa gozar, pois, como bem diz Lacan, é a castração que permite a relação sexual (p.163).

Em seus estudos sobre o Moisés, Freud, de acordo com Sellin, também aceitou a hipótese histórica de que teriam havido dois, um que saiu do Egito e outro que, depois de 40 anos, chegou a terra prometida. Lacan chama a atenção para a ressalva feita por Freud de que não criticaria isso, mas ele não nos diz onde. Contudo, parece uma alusão à Nota Preliminar II, da parte III, do seu Moisés e o monoteísmo, onde compara seu livro a uma dançarina que se equilibra na ponta de um dedo do pé.

A sucessão numérica envolvendo o pai, vista pela lógica de Peano, postula o zero – um número natural, e neutro – como necessário à formação da série. É assim que compreendemos o que significa o assassinato do pai (p.164).

Lacan reporta-se a uma observação original de outro escritor: nenhum dramaturgo ousou manifestar o assassinato deliberado de um pai, na condição de pai, pelo filho (p.164). Nem no teatro grego. Quando Édipo mata Laio, não sabia que era seu pai, foi apenas uma disputa entre dois idiotas pelo poder. Mas o interessante, e agora a observação é do próprio Lacan, é Freud, na elaboração do seu mito, ter colocado o assassinato do pai no centro mesmo de sua formulação. Esse assassinato aparece como substituto da castração recusada, conforme a abordagem da histérica.

Nunca está demais lembrar que foram as histéricas a abrir, para Freud, a possibilidade da psicanálise. Do ponto de vista dela, é o falo que a fecunda. Engendrando-se assim o falo a si mesmo, a criança, seu filho, o reproduz.

Assim como Lacan designa como namaqum (papludun) a possiblidade logicizada da escolha na relação insatisfeita da proporção (rapport) sexual, também é por aí que Freud vai buscar o modelo para seu monoteísmo em Aquenaton (o horizonte de Aton, o Sol); afinal, para Freud, Moisés também era egípcio. E a figura desse faraó, que, antes de mudar seu nome, chamava-se Amenófis IV (ou Amenothep IV – Amon está satisfeito) e foi casado com Nefertiti (que não era sua parente), pareceu-lhe sexualmente ambígua, não apenas castrada mas francamente femininas, como se ele e sua mulher fossem duas irmãs.

A castração pode ter uma relação com Φ de x, mas não é por aí que podemos designá-la, mas sim pela relação do não todos, ou não todas com o falo (-∀  Φ x ).

A mediação que aí se encontra é efetuada pelo ao menos um encontrada no n + 1, de Peano, no qual se pressupõe que o n precedente se reduz a zero, uma redução possibilitada pelo assassinato do pai. É por esse sentido oblíquo (Frege diz ungerade) que o assassinato do pai se relaciona com a Bedeutung, com a significação do falo.


Em Totem e tabu, o gozo original, do pai da horda, corresponde à evitação da castração, tal como o obsessivo mostra ao esquivar-se da castração. Para ele não há x que possa inscrever-se na variável Φ de x. O obsessivo se esquiva simplesmente do não existir. É daí que Freud parte para a criação do supereu, cujo imperativo é: - goza!
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Notas:
1. Relato de uma viagem desde a civilização até a incivilização, ao selvagem.



Fonte:https://en.wikipedia.org/wiki/The_Meaning_of_Meaning#:~:text=The%20Meaning%20of%20Meaning%3A%20A,Crookshank.