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BSFreud - Programa de Estudos 2021
Leituras do
Seminário 19 de Jacques Lacan ...ou pior 1971 - 72 Início: 27 de abril de 2021. Horário: terças-feiras, das 17:30 às 19h. Funcionamento: encontros mensais, via plataforma Meeting. Inscrições: para participar, os interessados devem enviar uma solicitação para o e-mail: bs.freud@uol.com.br, com seu nome, escolaridade, profissão, motivação e instituição da qual faz parte. Consideraremos as solicitações recebidas até 5 horas de antecedência do horário do encontro para enviar a senha do ingresso. Os participantes serão admitidos na reunião, 5 minutos antes do horário. Os ingressos encerram no início da atividade. Coordenação: M.Glória Telles da Silva, Maristela Leivas e Luiz-Olyntho Telles da Silva. ____ Não me toques
Maristela
Costa Leivas
A frase latina Noli me tangere (não me toques) é conhecida como referência a um trecho do Evangelho de São João, descrevendo a cena onde Maria Madalena, dirigindo-se a Jesus, após sua ressurreição, e manifestando a intenção de aproximação, leva a mão em sua direção. Em reação a este movimento, Jesus virando-se para ela, diz: não me toques, porque ainda não subi ao Pai. Estas palavras foram tema para intensos debates, gerados por diferentes interpretações entre os leitores do Evangelho. Desde que a cena se tornou assunto, foi retratada por muitos pintores na arte cristã. Considerando o momento que estamos vivendo, frente aos cuidados em evitar a transmissão e propagação do Coronavírus (Covid 19) em nosso meio, com a consequente recomendação em manter o distanciamento social, retomo o estudo de um caso da clínica, no qual utilizo esta expressão como título. Noli me tangere, por aproximação às dificuldades de uma jovem mulher em tocar no dinheiro, operar caixas eletrônicos, e especialmente em se deixar tocar. Para seguir examinando o caso retomarei a teorização freudiana sobre o tema, onde lemos que tais dificuldades, associadas aos sintomas obsessivos, também poderiam ser chamadas como a doença do tabu. E, desde uma leitura sobre o tabu de contato, pretendo avaliar as possíveis repercussões da ordem: mantenha distanciamento, advinda dos cuidados atuais propostos pelos infectologistas, nos sujeitos que já se situavam antes da Pandemia, numa estrutura de evitação e isolamento nas relações sociais. Conforme lemos em Totem e Tabu (1913), o termo tabu tem uma significação divergente: por um lado inclui o sagrado, o consagrado; e, por outro, o perturbador, o perigoso, o proibido, o impuro. Como a origem da palavra tabu é Polinésia, o seu oposto nesta língua, seria o comum, o acessível a todos. Freud, partindo da hipótese de uma correspondência entre as crenças e costumes dos povos primitivos e a realidade psíquica dos neuróticos, dirá que as restrições do tabu quanto ao tocar são semelhantes às funções que operam nas fobias de contato, contudo, na neurose o significado secreto da proibição não se apresentaria tão evidente. Diz Freud que o tabu tem sua origem em uma proibição dos primeiros tempos, forçosamente imposta (por alguma autoridade) de fora, e dirigida contra os anseios a que estão sujeitos os seres humanos. O tabu se manifesta através de proibições e restrições, ou seja, o fundamento do tabu é uma ação interditada, a ordem é não tocar, para a qual existe uma forte inclinação no inconsciente em tocar. Escreve ele: a ordem da proibição é consciente, e corresponde a uma ação inconscientemente desejada. O sujeito não para de querer realizar esta ação de tocar, mas não tem o direito de realizá-la, incluindo a culpabilidade como um sentimento presente, caso um determinado ato se concretize. A proibição não se aplica meramente ao contato físico imediato, mas tem uma extensão tão ampla quanto o emprego metafórico da expressão “entrar em contato com”. Qualquer coisa que dirija os pensamentos ao objeto proibido, qualquer coisa que o coloque em contato intelectual com ele, é tão proibida quanto o contato físico direto. Entendemos que o ato de tocar torna-se um tabu, por que o tocar, é o primeiro passo para qualquer domínio, no sentido de apropriação, ou qualquer controle sobre uma pessoa ou objeto, envolvendo tudo que representa uma sedução ou concerne a um movimento de aproximação. Então, a ordem não tocar, inclui os dois movimentos, o desejo e a proibição. Na neurose, a proibição ao tocar se reveste de um caráter sexual. O contágio que ali se propaga ocorre através do deslocamento, a ordem não tocar como fonte de excitação sexual está associada à interdição de gozo, interdição como marca separadora da constituição subjetiva, separadora das relações com os primeiros objetos de amor, própria ao reconhecimento de diferença sexual e propiciadora da identificação edípica. No fundamento das proibições (tanto nos neuróticos, quanto nos tabus dos povos primitivos) está uma hostilidade inconsciente, um impulso hostil contra alguém, possivelmente um ser amado, que aparece como uma ideia de satisfação pela morte deste alguém. A possibilidade de realização de um ato hostil leva ao medo da morte ou uma ameaça de morte deste objeto de amor, atualizando a culpabilidade. A culpabilidade é relativa a algo onde aparece uma interdição, na medida em que concerne ao desejo. Assim, o desejo dá lugar ao medo e evidencia a ambivalência de sentimentos, por um lado um sentimento imenso de afeição e por outro uma intensa hostilidade inconsciente. Aqui vale lembrar a provocação lacaniana: diga o que mais temes e te direi o que desejas. Para encaminharmos a análise de um caso, vemos como importante identificarmos qual o laço entre o sujeito e o objeto do tabu, ou seja, como se constrói a fantasmática. Na história anteriormente referida observamos que a evitação em lidar com o dinheiro e operar caixas eletrônicos, levou a jovem a delegar estas ações, mais frequentemente a sua mãe. Ao lado desta dificuldade relatava sua familiaridade e muita habilidade com o computador e atividades afins, e esta era sua área de estudos universitários. Justificava sua inibição dizendo que os caixas se situavam em ambientes de circulação social e sentia-se exposta ao olhar do outro, ou à crítica quanto ao tempo que necessitaria para a atividade ser concluída, e também estava a ideia de que enquanto realizava a operação, estaria sendo observada. Quando se obrigava a fazê-lo, negava-se a sacar dinheiro, pois o dinheiro lembrava algo sujo, que já teria passado por muitas mãos, realizando no caixa somente outras funções. Com a chance de realizar várias operações através do aplicativo do banco, sua angústia parecia mais controlada. Contudo, na relação com seu namorado, também se produziam inibições, não dormia uma noite inteira ao seu lado, referindo que só dormia bem em sua própria cama, desacompanhada. E, por muito tempo, o diálogo entre eles fluía melhor através de mensagens escritas, preferiam conversar à distância. Assim que, com a Pandemia deixaram de se encontrar pessoalmente. A jovem residia com os pais e seguiu com tranquilidade à ordem de não sair de casa, sem resistir a ela. Dizia que seria melhor deixar para depois o namoro e adequava-se à nova conformação da rotina. O fato de todas as questões serem resolvidas desde a casa fez com que a relação entre ela e os pais se tornasse mais próxima, já não estavam as brigas pelo fato dela sair de casa para outras atividades, podia compartilhar o horário das refeições, o que era fundamental para a mãe; e estando em casa poderia assistir filmes com seus pais e o irmão, preparar pratos especiais para as refeições e certamente as brigas entre o pai e a mãe seriam aplacadas, uma vez que, estariam todos juntos, como costumava ser a expressão de satisfação da mãe. Caracterizava a mãe como uma pessoa dominadora, que exercia total controle sobre tudo e sobre todos da casa. Diante da mãe, o irmão, o pai e ela, já sabiam como proceder; um olhar entre eles e sabiam como evitar uma crise de insatisfação da mãe, todos se colocavam de maneira a servir seus desejos e comandos, evitando que se desenrolasse uma explosão. Seguindo com a ideia de identificar o laço entre o sujeito e o objeto do tabu, vale lembrar que um dos objetos tabu, o caixa eletrônico aí em questão, porta esta propriedade misteriosa que irá declarar a fantasia de castração em jogo, esta que está na base de uma neurose e teremos necessariamente de encontrar e superar, ou que não cessaremos de encontrar e superar. Como uma caixa preta, o caixa eletrônico produz informações valiosas e secretas, é uma máquina que reconhece aquele que a maneja, estabelece alguma relação com aquele que faz uso dela e de outro modo, como máquina que é, exclui o sujeito. A angústia caracterizada neste caso, implica a questão do olhar e, como tal, aponta a angústia de castração própria a estrutura histérica. A angústia dispara frente a ideia de estar sendo observada, um outro repararia em algo que remeteria a imagem de que falta algo ao sujeito naquela operação. Faltaria a habilidade para acionar o caixa, poderia faltar o dinheiro que também não está disposta a sacar? De qualquer modo, o olhar do outro seria revelador de que algo falta. A ameaça da visão da castração é colocada em cheque e a angústia é transferida para o corpo ou para um objeto externo. O excesso de erotização do corpo desde o olhar do outro, implica neste caso, numa inibição da ação. O caixa eletrônico por apresentar esta característica perturbadora e impura associada ao dinheiro dá margem a muitas significações. E conhecemos a equivalência simbólica entre dinheiro e sujeira, entre dinheiro e fezes, dinheiro e falo, dinheiro e domínio. O dinheiro é um significante abrangente e é um tema desenvolvido por Freud em Caráter e Erotismo Anal (1908). À evitação ao uso do caixa eletrônico, associamos a divergência nas intenções da analisante que, ao mesmo tempo em que pretende alguma independização do meio familiar, algum domínio sobre sua própria vida, evita tocar no dinheiro, tê-lo em sua própria mão. Ao não tocar distancia-se do que parece representar algum domínio sobre a situação e entrega aos cuidados da mãe tal ação. Paralelo a isso, reluta em ter acesso a satisfação sexual, neutralizando o valor erótico da relação com o namorado, destaca que isso pode ser deixado para depois. Em contrapartida, é mantida a relação sintomática, angustiante por que aponta ao incestuoso, no retorno ao fechamento familiar. Não haverá brigas por que o distanciamento social, dos outros, foi adotado. Contudo, os movimentos de separação dos primeiros objetos de amor serão adiados e o desejo de separação será mantido à distância. Lembramos que em tais organizações neuróticas, onde se evidenciam os sintomas obsessivos estará sempre presente uma questão de vida ou morte. Como será muito difícil se enfrentar com a morte, aí equivalente a dizer não a satisfação do desejo da mãe, ao desejo do Outro; o sujeito seguirá neutralizando a morte e mantendo o erótico excluído, como se, deste modo, alcançasse preservar a vida. Tal sintomatologia se acomoda muito bem às solicitações de manutenção de distanciamento entre as pessoas nestes tempos de Pandemia, também justificado no isolamento pela preservação da vida. Assim que, deveremos estar atentos aos efeitos da solicitação de isolamento social nos tempos atuais, pois poderá incidir como uma contribuição externa à paralisia de um movimento antes iniciado na análise, servindo e acomodando a sintomatologia, e incluindo um certo tabu de pensar, entrar em contato com o que se passa na intimidade das relações. Porto
Alegre, julho de 2020.
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Aliquis: acerca do lugar para o dizer do analista.1
M. Glória S. Telles da Silva
Reescrito em janeiro/2021 O texto que apresento
hoje é fruto de questões que retornam em vários momentos
do meu trabalho.
O que faz com que uma situação se defina como analítica? Qual o rigor que a determina? Ou, formulado de outro modo, o que determina o lugar para a intervenção do psicanalista? Para examinar estas questões,
tomo como referência o relato apresentado por Freud no capítulo
II da Psicopatologia da Vida Cotidiana2,
onde escreve sobre o esquecimento de palavras estrangeiras. Ali,
ele conta um breve episódio ocorrido durante uma viagem de férias.
É o chamado exemplo de Aliquis.
Poderíamos pensar:
qual o valor analítico que pode ter uma situação que
ocorre fora do esperado e habitual contexto analítico? Há
possibilidade de análise quando um analista se diz em férias?
Convido-os a pensar, então, de que
modo se pode localizar o que esteja fora ou dentro do contexto analítico.
E, o que define estar em férias para um analista. Antes de adentrar no exemplo
de Freud, reporto-me a um texto de Isidoro Vegh, intitulado A clínica
freudiana: uma aposta perdida. Comentando este exemplo de Freud ele
diz, e estou de acordo, que o que Freud nos conta é um exemplo
de uma boa sessão de Psicanálise.3
Sobre o fato de se passar durante as férias de Freud,
diz o seguinte:
Diria, então, que
o tempo de trabalho para um psicanalista vigora toda vez que o desejo
do analista é convocado; sempre que é posto em causa pela
demanda do sujeito. E, como sabemos, o sujeito se faz representar por um
significante frente a outro, sendo via discurso que a demanda vai se apresentar.
Toda a demanda é uma demanda de amor e o amor que importa para desencadear uma ação psicanalítica é o amor de transferência. Lacan, no Seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais escreve: Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber – que eu abreviei (...) por S.s.S - há transferência.6 Mas sabemos também
que será por um significante, que representa o sujeito frente a
outro, quando dirigido a este Sujeito suposto Saber, o analista,
que o desejo do analista é acionado, posicionando-o no lugar que
lhe cabe ocupar na estrutura do discurso: lugar de semblant de a.
Na primeira versão
da Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan escreve
claramente:
Vamos agora ao exemplo
de Freud.
Ele inicia apresentando este jovem de extensa cultura, como denomina a seu interlocutor. Diz que ele conhecia alguma de suas obras8 e refere, então, que a conversa que travavam encaminhou-se para tratar da situação social do povo a que ambos pertenciam. Assim escreve Freud:
Surge aí o tropeço
do jovem. Ao querer citar a frase, diz a primeira palavra e trava. Não
lembra a sequência, e na tentativa de preencher uma notória
lacuna, como diz Freud, expressa a frase do seguinte modo: Exoriar(e)
ex nostris ossibus ultor!10
É possível que o jovem tenha reconhecido no rosto de Freud a expressão de sua falha, pois de imediato irá dizer:
Freud aceita o pedido
e diz o verso: Exoriar(e) aliquis nostris ex ossibus ultor!
(Deixa que alguém surja de meus ossos como vingador).
Frente ao surgimento da
palavra esquecida aliquis, o jovem exclama: que estupidez esquecer
uma palavra assim!, e formula a Freud uma demanda:
É possível
reconhecer nesta demanda um viés de desafio, onde o jovem põe
em questão o saber suposto de Freud.
E como Freud responde
a esta demanda? Posicionando-se como analista, ou seja, ao invés de
aceitar o desafio de convencê-lo de suas teorias pelo saber sabido,
propõe ao jovem que ele produza um saber textual. Única forma
de fazer emergir a verdade do sujeito. Freud formula a ele, então,
uma condição: peço a você que me vá
comunicando sinceramente, e abstendo-se de toda crítica, tudo o que
ocorre sobre a palavra esquecida.13
O que lhe diz Freud, nada mais é que a
regra fundamental da análise. No texto de Isidoro Vegh,
ele dirá que ao recusar o desafio proposto pelo jovem, Freud suspendeu
a possibilidade de ganhar a aposta convencendo, deixa essa aposta perdida
para propor outra onde não será ele quem ganhe, mas onde
convida o sujeito a entrar na roda do azar.14
Creio que a referência aí é
aos jogos de azar como contraponto aos jogos de competição.
Estes últimos existem também no reino animal, enquanto os primeiros
só existem entre os seres falantes, e caracterizam-se por ser onde
a habilidade pessoal dos jogadores fica colocada fora do jogo. No que implica esta posição
tomada por Freud?
Diria que esta posição é a que permite inaugurar esta análise. A demanda de amor, que leva a dirigir ao outro algum tipo de questionamento em busca de receber desse outro um reconhecimento de sua existência, é próprio da estrutura do discurso e marca do laço social entre os seres de fala, podendo ocorrer mesmo na ausência de um analista. Mas a função Sujeito suposto Saber (SsS), que inaugura a transferência, essa sim exige a presença de um analista. E isso é o que ocorreu neste episódio que Freud relata, onde respondeu ali desde sua posição de analista. Isso é o que ocorre numa análise, sendo esta relação analisante/analista – que não é uma relação entre duas pessoas, mas uma relação com o discurso que ali se produz –, é que, a partir da escuta do analista, possibilita a emergência do sujeito, construindo a produção de um saber sobre o objeto de seu desejo, sobre o que lhe move no mundo. É somente na particularidade dos significantes em jogo, direcionados a um determinado analista, que o sujeito constituirá um determinado saber sobre sua vida. Outro analista, outro saber. É preciso mencionar
aqui que esta particularidade vem da referência que Lacan faz na
segunda versão da Proposição15
às categorias de Aristóteles. Ricardo Romero no
livro Trasferencia y Discurso,16
comenta justamente essa referência e essa particularidade
do significante aliquis, de Aristóteles, como o que faz diferença
na operação analítica. Diz ele: Sujeito suposto
Saber é a constituição em um significante e por um
significante de aliquis, de uma particularidade no sentido de Aristóteles.
É a encarnação do aliquis no lugar onde o Outro
não está como sujeito.
Aliquis, do latim,
quer dizer alguém, pronome indefinido. Mas também
quer dizer realmente alguém, pessoa de importância.
Aliquis, enquanto particularidade, no sentido de Aristóteles,
é o que não é determinado, no sentido de que
não pode ser englobado em nenhum gênero.
No exemplo de Freud, na
frase Exoriar(e) aliquis nostis ex ossibus ultor,
este aliquis é alguém indeterminado, mas não
um alguém qualquer. É um alguém de nossos ossos, um
alguém particularizado.
E, na medida em que diz respeito à
transferência, é possível pensar que esse significante
que caiu sob a barra, opera, enquanto excluído, tanto para o analista
como para o analisante. Será por esta particularidade significante
que estabelece a transferência numa análise. Para o analista, enquanto
desejo do analista, para o analisante, enquanto desejo do Outro.
A dimensão do desejo está para ambos, e é o que põe
em movimento a prática analítica.
É o desejo do
analista que opera enquanto corte, permitindo que se destaque dos significantes
que representam o sujeito, o objeto causa de seu desejo. O sujeito se dirige
a este Outro, lugar do suposto Saber. O analista posiciona-se desde o desejo
do analista, ocupando um lugar na estrutura do discurso deste que demanda
– lugar de semblante de a. Este ato do analista inaugura a análise.
É o que depreendemos do exemplo
de Freud. Após enunciar a regra fundamental, o jovem inicia as associações.Primeiro divide a palavra: a e liquis
Depois vêm a série relíquias,
liquefação, fluido, líquido. Daí passa a Simão
de Trento, cujas relíquias viu numa igreja. Refere os assassinatos
de cristãos e ao sangue usado nas cerimônias religiosas. Passa
para Kleinpaul, um escritor, e depois para um escrito de Santo Agostinho
sobre as mulheres. Surge no jovem a crítica de que o que diz nada
tem a ver com o tema. Freud pede para que ele prossiga, deixando em suspenso
todo saber apriorístico, para que emerja das associações
o saber inconsciente do jovem, que prossegue, tendo na escuta de Freud o
ponto que efetuará a tradução desta outra escrita.
Quando o jovem lembra de um
velho arrogante que encontrou em sua viagem na semana anterior, designando-o
como um verdadeiro original, e que se chamava Benedicto, aí Freud
o interrompe e lhe diz:
Freud, recortando do discurso
do jovem os significantes que na particularidade de sua escuta fazem significação,
vai construindo um saber sobre o sujeito em questão.
No seguimento, o jovem
lembra de São Genaro e do milagre de seu sangue, que numa determinada
data se liquefaz. Quando o milagre não acontece no dia esperado
e atrasa, provoca grande agitação e, em seguida, refere um
episódio durante a ocupação francesa na Italia,17
quando as tropas do exército esperavam o milagre acontecer. Neste
momento, o jovem interrompe suas associações e lembra de algo
que reluta em revelar por considerar muito íntimo. Ante a posição
de Freud, de que se não falar não poderá explicar
o porquê do esquecimento da palavra aliquis, o jovem cede e
revela que pensou numa senhora, da qual aguardava uma notícia que
poderia ser desagradável a ela e a ele.
Freud, então, intervém
dizendo: que sua menstruação faltou este mês!
Surpreso o jovem exclama:
como pode você adivinhar?
Freud irá mostrar
que não se trata de adivinhação, mas que o próprio
jovem preparou muito bem o caminho. E anuncia a construção
deste saber:
O jovem, surpreso com
o que produziu, perguntou a Freud: Mas não pode ser isso uma pura
casualidade? Ao que Freud responde: Deixo ao seu juízo determinar
se toda esta serie de associações pode explicar-se pela intervenção
da casualidade.
Pela ação
do analista, a analise se desenrola na superfície mesma do discurso,
ou seja, não se trata da relação entre a pessoa do
analista e a pessoa do analisante, mas dos lugares que ocupam na estrutura
deste discurso, e que a relação transferencial possibilita
que se realize, fazendo com que os efeitos significantes produzam ali um
saber. Saber este que está em referência ao real que ele invoca;
o real do sexo.
________________Toda vez que um analista identifica uma demanda, instaurada pela transferência, a ocupar um lugar de SsS, sua ética o conduzirá a assumir a responsabilidade que lhe cabe, e esteja onde estiver, responder a esta demanda de modo a possibilitar que se instaure um trabalho de análise. Dos efeitos dessa posição, só saberemos a posteriori. Notas: 1. Trabalho apresentado no 8° Recorte
de Psicanálise, em junho de 1994, em Porto Alegre. Revisado e corrigido
para essa publicação.
2. FREUD, S. Psicopatologia de la vida
cotidiana. in: Obras completas, Vol. I. Biblioteca Nueva. 4ª ed.
3. VEGH, I. A Clínica Freudiana.
Editora Escuta Ltda. São Paulo, SP, 1991.
4. No contexto que estamos vivendo atualmente,
acrescentaria a palavra quarentena.
5. Idem nota 3.6. LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise in: O Seminário, livro 11. Zahar Editores,
Rio de Janeiro, 1979, pág.220.
7. LACAN, J. Proposición del 9
de octubre de 1967. 1ª versão in: Revista Ornicar? (español),
n° 1, Editora Petrel
8. Temos aí o indicador de que o
campo transferencial já havia se instalado.
9. dem nota 2.10. Idem nota 2. 11. Idem nota 2. 12. Idem nota 2. 13. Idem nota 2. 14. VEGH, I. A Clínica Freudiana.
Editora Escuta Ldta. São Paulo, SP, 1991. VEGH, I. A Clínica
Freudiana. Editora Escuta Ldta. São Paulo, SP, 1991.
15. LACAN, J. Proposición del
9 de octubre de 1967. 2ª versão in: Revista Scilicet, n°1,
Ed.du Seuil.
16. ROMERO, R. Trasferencia y Discurso.
Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 1992.
17. São Genaro é patrono de
Nápoles. Genaro foi bispo de Benevento no séc. III e condenado
a morte durante a perseguição aos cristãos de Dioclesiano.
Provavelmente a data aí referida está relacionada ao 22 de
janeiro de 1799, quando ocorreu a proclamação da república
italiana e fim a monarquia, quando o rei Fernando IV da dinastia dos Bourbon
abandona o castelo de Sant’Elmo e foge para a Ilha da Sicília. Porém,
haviam muitas revoltas sociais e tentativa de restabelecer o antigo regime.
Então, o general Championet conseguiu restabelecer a ordem em prol
da vitória republicana, e quando em 4 de maio de 1799 ocorre novamente
o milagre da liquefação do sangue do Santo, este foi considerado
a confirmação da vitória da Republíca frente
à Monarquia, como sendo por ‘vontade divina’. Esse episódio
é conhecido como a Batalha dos Santos.
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