Página da Biblioteca Sigmund Freud

Tessituras - Sons que se Inscrevem
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por
Ester Mirian Menda

A música não tem palavras.
Claude Levi-Strauss, Olhar, Escutar, 
Ler
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O primeiro inimigo do estético foi o significado.
O símbolo aparece como uma imagem
que é também outra coisa.

Roberto Calasso
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Urge extrair do piano o som dramático.
Carlos Drummond de Andrade, A Música
da Terra
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Num dia como hoje, dedicado aos 150 anos do nascimento de Sigmund Freud, viemos homenageá-lo com um escrito, examinando uma revista que trata de texturas, que traz como significante a “aracne” do mito grego na apresentação da mesma. Texturas, podemos ver como um tecido criado pela rede de escritos, palavras que se enlaçam num discurso, como no tecido das teias das aranhas.

Todos conhecemos a palavra Abracadabra. Ela é a que abre as portas para o tesouro e quer dizer  “eu criarei à medida que falo”, (vem de uma contribuição do aramaico nos estudos da Cabalah e do Talmud), que nos remete à fala, considerada o tesouro entre os homens, como resíduo dos conteúdos inconscientes, que ao serem expulsos, querem dizer alguma coisa.

Mas o tema escolhido dessa revista, e é onde pretendo me deter, trata de música. Esta não se expressa por palavras e, no entanto, contem, ao ser executada, os mesmos conteúdos daquele que não sabe dizer, mas o deseja de alguma maneira.

À propósito das aracnes, há algo interessante trazido por Levy-Strauss acerca de Michel-Paul-Guy de Chabanon,  (francês, contemporâneo de Mozart, homem de música e letras). Este  tinha um interesse pelas aranhas que o levava a tocar para elas canções ao violão, para saber que gênero de música as sensibilizaria.  Com isso, ele propõe uma imagem de grande beleza que dá à noção de correspondência toda a sua amplitude.  Para Chabanon, a Filosofia da arte deve ter por missão mais elevada fazer com que cada sentido isoladamente perceba aquilo que os outros sentidos lhe transmitem, e explica:  “Assim a aranha, posta no centro de sua teia, corresponde com todos os fios, vive de certo modo em cada um deles, e poderia transmitir a cada um a impressão que os outros lhe tivessem dado.”
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Julio Palacio, autor de um dos textos que se encontram nesta revista Texturas
6, desenvolve um escrito dedicado à “música que se escreve e o que se escreve sobre música”, e assim intitulado. E é desde essa leitura que pretendo abordar algumas idéias que foram suscitando e se fizeram presente no desenrolar da mesma.  Em seu desenvolvimento, ele vai dizer o que nas palavras de Lévi-Strauss pode-se colocar que  “a música não tem palavras.”7 Porque a particularidade dela é não ter nenhum vocabulário.

Música e Psicanálise, têm algo em comum por serem expressões que se fazem pela sonoridade, para o ouvido. E aproveito este momento para também homenagear Mozart, que neste ano de 2006, comemora-se 250 anos de seu nascimento. Cem anos separam o gênio musical do gênio da Psicanálise Sigmund Freud, que foi o descobridor do tesouro, preocupado em desvendar os mistérios da palavra falada.

Mozart vai nos ajudar neste escrito através de Kierkegaard. Quando este destaca a ópera Don Giovanni como obra do mais alto grau musical de Mozart, está dando ênfase ao fato de que ela não pode ser dita em palavras, mas em música. O galante Don Juan, protagonizado em tantas obras literárias, só foi eternizado na música, porque ela não pode ser dita em palavras, e, portanto, não dispõe de um significado.
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Existe  a teoria, a partitura, que encaminham à execução, mas “musicalmente, há um deslocamento, cuja função seria a de ocultar algo que se sente  e que não se pode pensar”, diz Julio Palacio.

A música é, pode-se dizer, impensável. Kierkegaard  explica dizendo que ela expressa “imediatez” e que a prosa, por outro lado, é fruto da reflexão. A primeira é dirigida ao ouvido; quando se ouve, os sons passam e não dizem nada, embora eles sejam uma tentativa de expressar alguma coisa. Por isso, a música é sensual.
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O biógrafo de Mozart, Alfred Einstein, coloca que foi sua falta de compreensão pela música que o fez crescer como compositor. A falta de compreensão deixa lacunas que podem ser preenchidas com conteúdos puramente sensuais, isto é, com aquilo que não se pode dizer.

Mozart nunca conseguia explicar de onde teria tirado a idéia musical para compor seus personagens na ópera Don Giovanni. Como não foram criados através do pensamento, e porque não formava opinião sobre eles, desta forma os universalizou. Então Don Giovanni pode representar isso que a música não pode dizer.  “Ele não é homem de intelecto, é a música que lhe dá vida. A sua existência é determinada pela irreflexão, por isso não pode ser concebido em palavras”, afirma Kierkegaard.
10  Então Don Giovanni é só música.

A interpretação é para alguns mestres, o que está justamente entre as notas, e não na partitura musical. Ao citar Maria Callas, o autor Julio Palacio se refere a isso, ao que não está escrito no texto musical e que aparece na execução. Trata-se de uma leitura subjetiva, própria. Então, o que não está escrito vai ao campo emocional. Ele diz que a execução da cantora nem sempre era perfeita, porém, ela ia além do escrito, o que lhe valia era interpretar, trazendo o sentimento a tona.

Na percepção de alguns mestres, o instrumentista, e cabe lembrar que a voz é instrumento, deve-se valer da técnica para atingir o nível de virtuose. Mas esta técnica deve ser apenas um recurso para que ele possa deixar-se levar pela interpretação. O executante é mais valorizado por isto, e não tanto por sua habilidade, embora precise dela. Aí está o valor de Maria Callas, o trêmulo de sua voz, o trinado, nem sempre escritos na pauta, vem sempre de uma reação emocional, como interpretação, que se inscreve melhor ao ouvido. Desta forma Palacio diz que “a interpretação cai no domínio ilimitado da subjetividade”. E o autor citando Schaefer diz que “ música é uma maneira de escutar.” Há a leitura, a execução da mesma, e o som que se espalha. Há um texto, aquele que executa e o interpreta, e o ouvinte que escuta e também interpreta, numa linha subjetiva. São muitas leituras extraídas de uma mesma tessitura.

Entre as notas e a frase não há nada, porque as notas não tendo sentido em si mesmas, sentido que poderia resultar de uma combinação, estas não dizem nada. A música exclui o dicionário.

À propósito disto, verifica-se que há uma tentativa para nomear algumas obras, quando em muitas delas os editores, ou  aqueles dedicados a elas, atribuem-lhe um título que as signifique. Exemplo disto podemos ver em Chopin, que apenas numerava seus estudos e os classificava e que, no entanto, mais tarde, alguns deles passaram a chamar-se Tristesse, Revolucionário, etc. Estes eram simples exercícios, não tão simples, que ele havia composto  para seus alunos como recurso de prática, mas tão sublimes, que nos dias de hoje são consideradas obras para executadas em recitais. Exemplificando Beethoven, temos a Sonata ao Luar, a Patética, e outras, que eram apenas reconhecidas inicialmente pelo número da obra  e tom. Não foram os compositores que lhes deram estes nomes. Os compositores eram pura inspiração daquilo que não podiam dizer em palavras. Beethoven colocava toda a sua inquietude na partitura mais do que ninguém e, se um aluno perguntar a seu mestre, surpreendido com o jogo de acordes e sons que propõe este compositor, o mestre não saberá responder. Ele apenas dirá, isso é “divino”, isso é “sublime”.  

Mesmo que se deseje chegar a níveis de significação mais profundos sobre a música, se encontra resistência. Palacio coloca: “Ela resiste”. Ela com letra maiúscula, como que a dignificando. Brincando com as letras, El em hebraico é Deus, Ela fica como uma Deusa. Aí está o divino, o real.

Vemos também que o mesmo acontece com a Quinta Sinfonia de Beethoven citada pelo autor, nomeada de “O destino bate à Porta”, supostamente por seu biógrafo Schindler. A partitura não  remete a este apelido. Nela podem ser lidas notas comuns, enfeitadas com suas figuras de ritmo, lembrando que o dicionário não diria nada mais que notas, bolinhas pretas e brancas, com alguns tracinhos colocadas em algumas linhas.  Mas quando este sinais soam, algo inexplicável acontece, surge o som, que não está escrito, mas se produz uma inscrição no ouvido. “A escritura resulta um mediador entre a idéia sonora e o ouvinte”, diz o autor. Para Beethoven, não havia outra maneira de dizer.

Executar música, algo de criação própria, ou interpretação da composição de um outro, pode ser o exteriorizar conteúdos reprimidos de outra forma que não no discurso. Não seria possível analisar. Chopin quando ouvia Liszt executar suas obras, ficava encantado de como o amigo podia interpretá-las melhor que ele. O que é que ele ouvia no outro que não ouvia em si?

Lévy Strauss vai dizer que é preciso um título para ouvir as ondas do La Mer de Debussy.
11  O ouvinte desavisado não poderia dizer que se trata do mar, mas assim que conhece o conteúdo, pensa que compreende melhor. O título poderia trazer limites ao que se pode apreender da obra, embora muitas vezes, auxilie na interpretação. Mas os limites não permitem que ela se universalize.

Não existe, portanto, entre acordes e sons e a frase musical nada que se assemelhe ao nível intermediário de organização que, na linguagem articulada, é constituído por palavras. Não é possível encontrar nada que seja da ordem da palavra na música.

Lévi-Strauss diz que “os homens falam línguas ininteligíveis, mas é possível traduzi-las, porque possuem um vocabulário que remete a uma experiência universal. Isso é impossível na música, onde a ausência de palavras faz com que existam tantas linguagens quanto intérpretes e compositores, linguagens intraduzíveis uma às outras.”
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A música, em certos casos, pode fazer algum sentido para o ouvinte, quando há uma analogia entre determinados sentimentos e as impressões causadas ao ouvi-la. Lembro que quando criança algumas melodias causavam muito medo. Há quem diga que a segunda parte do Concerto número de 2 de Rachmaninof provoca uma melancolia, uma dor, inexplicáveis.

Quando se ouve, é sobre os sentidos que a música age diretamente, embora haja uma busca de analogias com objetos e feitos da natureza. Em um de seus prelúdios, O Ré bemol Maior, contam que Chopin, sentado em seu piano, percebe que está para chover.  Começa a compor uma melodia delicada, quando ouve os primeiros pingos, como que se esta melodia os significasse. À medida em que a chuva se intensifica, e ao mesmo tempo em que lembra que sua mulher George  está fora e poderá se molhar, sua preocupação aumenta, e a melodia progride para acordes fortes e pesados e, aos poucos, retorna aos sons delicados do início, piano, “morendo”, assim que a chuva diminui e passa. Sabedor desta história ou lenda a respeito das circunstâncias em que se encontrava o compositor e supostamente o que ele sentia no momento da composição, o executante pode usá-la para seu melhor entendimento. No entanto, sendo a interpretação localizada nas “entre-linhas”, ou melhor, nas “entre-notas”, há sempre a subjetividade, que faz com que um toque seja único, aquele som dramático, do drama de cada um.  

Cenas dramáticas também necessitam música para serem melhor apreendidas. Uma ópera. Voltemos a Don Giovanni. Há um momento em que a música prepara o ouvinte para o que está para acontecer. Este não sabe ao certo o que é, ele desconhece o que virá no desenrolar da cena, não pode dizer. Os sons é que provocam um suspense que só pode ser sentido. Levi-Strauss refere que “ a música acompanhada de palavras pode supor um entendimento, e aquela puramente instrumental deixa um suspense na inquietude do significado”.
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Há um texto na ópera, ou mesmo no tango que o autor menciona. E este texto junto a melodia fazem um casamento estético, que perderia o atrativo se retirada a música. Mas sua mensagem permanece inalterada, como se a significação estivesse nele. Mesmo assim, esta mesma melodia poderia acompanhar outros escritos.

“As palavras são apenas signos convencionais das coisas; quando possuem equivalentes, podem ser substituídos”. A palavra substitui a coisa, mas os sons não são a expressão da coisa. “Eles são a própria coisa”.
14 Alguns tocam e se inscrevem.

Palacio fala do escrito inaudível, ilustrando o Humoresque de Schumann. Na partitura verifica-se que está escrita uma voz inaudível que não deve tocar. Está escrito, mas é inaudível. E o que é isto?  Há uma nota que fica presa enquanto as outras tocam, que dá um efeito à melodia e se inscreve nela.  Transportando, diria que é a nota inaudível que se compõe no discurso do analisante e faz supor que é a que está dizendo algo, algo que diz, mas não se ouve, ao menos imediatamente, a não ser quando se repete ou se mantém ... no silêncio. Quer dizer, quando as outras notas cessam, o inaudível poderá se fazer escutar, como o inconsciente.

E é nesse momento, que o autor, pedindo perdão a Saint-Exupery vai dizer que “o invisível é essencial aos sentidos”.

O autor gira em torno de duas questões: a primeira é  “para que deveríamos escrever sobre a música, se uma coisa é o que se diz sobre ela e outra é o que se escuta?” Se o que se escuta se inscreve não em palavras, como escrever?, diria eu.

A segunda é “ o que significa escutar música?” Ao citar alguns especialistas sobre o que eles poderiam dizer não responde, e ele sabe disto. O compositor se pudesse elaborar com palavras esta resposta, seria escritor, diz ele.

A resposta está em cada um, viriam muitas palavras girando em torno, mas sem conclusão. Que bom! Bela lacuna para seguir compondo. Talvez os poetas....E com eles termino  meu escrito.

À proporção que a dor aumenta, e em volta
nega-lhe o amor seus bálsamos terrestres,
ganha requinte a fábrica sonora
de eternizar a vida breve em arte.
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        Notas

1  -  Texto apresentado por ocasião da homenagem dos 150 anos de nascimento de Sigmund Freud, Freudtag, em 06.05.2006, na Biblioteca Sigmund Freud.

2    -  Levy -Strauss  -  Olhar Escutar Ler -  Companhia das Letras

3    -  Roberto Calasso  -  As núpcias de Cadmo e Harmonia  -  Companhia das Letras

4    -  Carlos Drummond de Andrade – A Música da Terra

5    -  Levy –Strauss  - idem ao 2

6    -  Revista Texturas  en Psicoanálisis -  ano 5 – nº1 – nov. 2005 – Buenos Aires

7    -  Levy Strauss  -  ídem ao 2

8    -  Ester Mirian Menda  - Don Juan: O erotismo musical em Mozart -    apresentado no 4* Recorte de Psicanálise – julho de 1991 -  Na Casa de Cultura Mário Quintana

9     -  Ester Mirian Menda  -  ídem ao 8

10    - Ester Mirian Menda  -ídem ao 8

11   -  Levy-Strauss  -  ídem ao 2

12    - Levy Strauss  -  ídem ao 2

13   -  Levy Strauss  -  ídem ao 2

14    - Levy Strauss  -  ídem ao 2

15    - Carlos Drummond de Andrade  -  ídem ao 4