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Amar, verbo ridículo
Mineiros enamorados disputam quem escreve a carta mais romântica
Nuno Manna
Revista Piauí, ed. 76
A voz mais quente do rádio mineiro, companhia das almas solitárias que erram pelas madrugadas belo-horizontinas, entrou em cena mais uma noite para emprestar sua calorosa dicção às palavras apaixonadas enviadas por um coração despedaçado. Agnaldo Silva, locutor e produtor há onze anos do Good Times, tradicional programa noturno de sucessos de antanho, leu uma mensagem de amor: “Outros romances virão. Amores, não mais. Não darei a outros o amor que guardei para você. E sei que eles não me darão, jamais, a plenitude que senti ao seu lado.”
 Dessa vez, no entanto, Agnaldo não estava em seu estúdio, sozinho, como todas as noites. Suas palavras não eram levadas pelas ondas do rádio, e aquela mensagem não fora enviada por um ouvinte. Naquela noite abafada de dezembro, o locutor estava no palco de uma casa de shows, diante de uma plateia que se deleitava com sua interpretação grave do texto vencedor do 1º Concurso Mineiro de Cartas de Amor.
Muitas das missivas inscritas no concurso estavam dependuradas em um longo barbante, seguras por prendedores de roupa ao lado de rosas vermelhas. No varal do amor, um amante espiritualista confessou: “Com seu jeito calmo, manso, você veio e se despejou sobre meu ser, meu querer. Sem saber, me acendeu como um crente acende a vela em uma oração silenciosa, intimista se tornou.” Um outro, de tato aguçado, descreveu um beijo na amada: “Roço teu rosto com minhas mãos trêmulas, elas padecem frias, mas guardam todo o carinho inefável de uma poesia. Tremes um pouco. Balouça como se a brisa fosse sua rede. Recuo. Ponho, então, meu lábio rude sobre o seu róseo estandarte real.”
Outras cartas estavam expostas no recanto intimista dos banheiros. “Com longos goles de champagne frappé, tocarei um estribilho nas cordas da sua voz. Espantarei as moscas do seu doce tédio e edificarei potes de amor lacrimejado, quando você se entristecer por um motivo qualquer”, escreveu um apaixonado voluntarioso. No toalete masculino, estrategicamente posicionadas acima dos mictórios, confissões eram compartilhadas com os que se aliviavam: “Você é minha gitana, minha Musetta e eu sou seu mouro.”
Quem julgou as 35 cartas inscritas no concurso foi Mariângela Paraizo, professora da Faculdade de Letras da UFMG. Ela se disse comovida com a forma como os missivistas trouxeram à luz seus sentimentos mais íntimos. O desprendimento, especulou, talvez se explicasse pelo fato de as cartas se dirigirem a alguém que provavelmente jamais as leria. “Isso me parece lindo nas cartas de amor: são criadas por um gesto equivocado e sempre erram de endereço”, afirmou a acadêmica. “Considerando as impossibilidades próprias da linguagem, as cartas de amor, dito de uma maneira bem brega, são milagres esfarrapados.” Questionada se todas as cartas de amor são mesmo ridículas, como escreveu Fernando Pessoa, ela respondeu: “Quem sou eu para discordar?”
 
O concurso foi promovido por ocasião do aniversário de três anos da Orquestra Mineira de Brega, coletivo de jovens músicos que interpretam clássicos de motel como Borbulhas de Amor, de Fagner, ou Je T’aime... Moi non Plus, de Jane Birkin e Serge Gainsbourg. Segundo Artênius Daniel, tecladista e um dos vocalistas da banda, a ideia nasceu da vontade do grupo de convidar Agnaldo Silva ao palco. Numa chamada nas redes sociais, os mineiros foram instados a conceber “aquelas coisas para escrever no papel e borrifar perfume depois”. O vencedor ganharia um par de ingressos para o show da banda, champanhe e morangos no camarim, além da incomparável oportunidade de ter sua carta lida em bom som pela voz de veludo do cupido em pessoa.
A entrada em cena catártica de Agnaldo Silva foi acompanhada de uma explosão prateada de papel picado enquanto a música-tema de seu programa, a arrebatadora Love’s Theme, de Barry White, era executada pela Orquestra. Aos 41 anos, o locutor miúdo, de feições levemente orientais e postura comedida, agradeceu a recepção e deu início à leitura da carta vencedora: “Dizem que o amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente”, entoou, caprichando na citação de Camões. “Pois a ferida que restou em meu peito depois que você partiu dói, queima, lateja, com tanta intensidade que quase posso tocar.”
 
Jéssica Freitas, a advogada de 24 anos que escreveu a missiva premiada, foi recebida com palmas no camarim. “Parabéns! Sua carta é muito brega”, elogiou um músico. Uma mulher lhe trouxe uma garrafa de espumante e lamentou que só tivesse copos descartáveis para servi-la. Enquanto pegava um dos morangos dispostos numa bandeja de papel, Jéssica contou que escreveu a carta “no limite da emoção, numa tarde de trabalho, depois de terminar uma petição”.
Ciosa de sua reputação profissional, a advogada frisou que não lança mão de tantos adjetivos em peças de direito criminal. Acrescentou que, na redação da carta, tinha plena consciência de que desafiava a gramática – num gesto voluntário de licença poética – ao iniciar uma frase com uma conjunção coordenativa: “Pois sei que o verdadeiro amor é coisa rara, que toca o coração de poucos seres.”
Sorridente e espirituosa, Jéssica parecia esconder bem ou ter superado a dor lancinante que transbordava do seu texto. E não era para menos. Questionada sobre o destinatário da missiva, motivador de tão devastadora mágoa, a vencedora do concurso revelou tratar-se de um caso fictício.
Seja como for, sua mãe se entusiasmou quando soube do prêmio, na esperança de que a carta lhe rendesse um genro. “Ela é do tipo que até já comprou roupas para o neto”, explicou Jéssica. Mas a jovem não parecia tão preocupada. O ramo de santo Antônio que ganhou de Agnaldo Silva seria guardado em casa dentro de uma lata do Atlético Mineiro. “Vamos ver qual milagre será mais forte em 2013.”