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Reflexões sobre a morte
ALCIR PÉCORA
Sábias
palavras de La Rochefoucauld sobre um tema que se costuma evitar pensar
ou, na atualidade, banalizá-la ao pondo de explorar seu temor como
item de consumo: a morte.
Em sua última máxima, La Rochefoucauld reflete sobre
tema que absorvia jesuítas e jansenistas, no século 17.
O embate entre jesuítas e jansenistas que absorveu boa parte da
vida religiosa, intelectual e política ao longo do século
17, na França, exibe uma de suas facetas mais esclarecedoras em torno
do sentimento diante da morte. Assim, seguindo os passos dos Exercícios
Espirituais de seu Patriarca, Inácio de Loyola, os jesuítas
tendiam a enxergar na morte uma fertilíssima fonte de imaginação,
que era também a mais importante ocasião de uma consciência
do desengano dos bens mundanos, traduzindo-se num ato de conversão
em favor de uma vida racional e pia. Já os jansenistas, os quais,
a certa altura, arrebataram a aristocracia parisiense em revolta contra a
crescente centralização monárquica, eram mais pessimistas
sobre o que a morte pudesse oferecer de proveito à alma ou ao espírito
humanos – como seguramente nenhum bem oferecia ao corpo.
Mais próximo dessa última posição, o Duque
François de La Rochefoucauld (1613-1680), um dos mais importantes
homens de armas e letras do período, empregou-se a expor o seu pensamento
a respeito da morte naquela que se tornou a última e mais longa de
suas Reflexões ou Sentenças e Máximas Morais. Apresento
a seguir uma modesta tentativa de traduzi-la, tomando por base o texto da
quinta edição, de 1678:
Após ter falado da falsidade de tantas virtudes aparentes, é
razoável dizer alguma coisa da falsidade do desprezo pela morte.
Eu quero falar sobre esse desprezo pela morte que os ímpios se vangloriam
de retirar de suas próprias forças sem a esperança
de uma vida melhor. Existe diferença entre suportar constantemente
a morte e desprezá-la. O primeiro é bastante comum, porém
creio que o outro jamais é sincero. Apesar disso, escreveu-se tudo
o que poderia haver de mais persuasivo a respeito de a morte não ser
um mal; os homens mais fracos, assim como os heróis, deram mil exemplos
célebres para firmar essa opinião. Eu duvido, entretanto,
que alguém de bom senso já tenha acreditado nisso; o esforço
empregado para persuadir aos outros e a si mesmo bem demonstra que a empreitada
não é fácil.
Podemos ter diversos motivos de desgosto na vida, porém jamais temos
razão para desprezar a morte; mesmo aqueles que voluntariamente se
entregam a ela não têm a morte por coisa tão pequena,
e eles se horrorizam e repudiam-na, como os demais, se ela lhes chega por
uma via distinta da que escolheram. A desigualdade que notamos na coragem
de um número infinito de homens de valor deve-se a que a morte se
revela de modos diferentes à sua imaginação e mostra-se
mais presente num período do que em outro. Ocorre, assim, que após
terem desprezado aquilo que não conhecem, eles temem enfim aquilo
que conhecem. Se não quisermos acreditar que ela é o maior
de todos os males, será preciso evitar encará-la em todas as
suas circunstâncias. Os mais hábeis e os mais corajosos são
os que encontram os pretextos mais honestos para impedirem-se de tomá-la
em consideração.
Porém qualquer homem que saiba vê-la tal como é, acha
que é uma coisa pavorosa. A necessidade de morrer gerava toda a constância
dos filósofos. Eles acreditavam que era preciso ir de bom grado aonde
não podiam deixar de ir; e, não podendo eternizar suas vidas,
não há nada que tenham deixado de fazer para eternizar sua
reputação e livrar do naufrágio o que não podia
estar a salvo. Contentemo-nos com a boa disposição de não
dizer a nós mesmos tudo aquilo que pensamos, e esperemos mais de nosso
caráter do que desses frágeis arrazoados que nos fazem crer
que podemos nos aproximar da morte com indiferença.
A glória de morrer sem abatimento, a esperança de ser lembrado
com saudade, o desejo de deixar uma bela reputação, a confiança
em estar livre das misérias da vida e em não mais depender
dos caprichos da fortuna são remédios que não devem
ser desprezados. Porém não devemos acreditar igualmente que
sejam infalíveis. Eles fazem pela nossa confiança o mesmo que
frequentemente faz uma simples cerca, na guerra, para dar confiança
aos que devem se aproximar do lugar de onde atiram. Quando estamos afastados,
imaginamos que ela possa cobrir-nos, porém, quando estamos próximos,
achamos que é de pouca valia. É vanglória acreditar
que a morte nos pareça de perto aquilo que julgamos de longe, e que
nossos sentimentos, que não passam de fraquezas, sejam de uma têmpera
forte o bastante para não sofrer dano algum na mais dura de todas
as provas.
É também
conhecer mal os efeitos do amor-próprio pensar que ele possa ajudar-nos
a ter por nada aquilo que deve necessariamente destruí-lo; e a razão,
na qual acreditamos encontrar tantos recursos, é, neste encontro,
fraca demais para nos persuadir do que queremos. Ao contrário, é
ela que mais frequentemente nos trai e que, ao invés de nos inspirar
o desprezo pela morte, faz-nos descobrir o que tem de horrendo e terrível.
Tudo o que a razão pode fazer por nós é aconselhar-nos
a desviar os olhos para colocá-los em outros objetos.
Catão e Brutus escolheram os ilustres. Um criado, há algum
tempo, contentou-se em dançar no cadafalso onde ia sofrer o suplício
da roda. Assim, embora os motivos sejam diferentes, produzem os mesmos efeitos.
De maneira que, por mais desproporção que haja entre os grandes
homens e a gente comum, a verdade é que vimos uns e outros, mil vezes,
receberem a morte com um mesmo rosto; porém, isto sempre ocorreu
com a diferença de que, no desprezo que os grandes homens mostram
pela morte, é o amor pela glória que lhes desvia a vista,
e, no da gente comum, é apenas um efeito das parcas luzes que a impedem
de conhecer o tamanho de seu mal e deixam-na livre para pensar em outra coisa.
Revista Cult, nº 176.
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Estela funerária
romana, que data do século 1 a.C., imitando o estilo grego clássico
do século 5 a.C. A serpente simboliza a alma do morto (Foto:
Marie-Lan Nguyen/CC)
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