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James
Joyce na cultura popular Jonathan Goldman
Joyce e sua obra foram apropriados pela indústria cultural, passando pelo cinema, pelo rock . James Joyce, Samuel Beckett, George Bernard Shaw e Oscar Wilde
no episódio
"In the name of the grandfather", d'Os Simpsons (Foto: Reprodução) James
Joyce era viciado em cultura popular. Seus escritos estão, desde o
começo, repletos de referências a entretenimentos populares de
sua época, bem exemplificados com as histórias de “faroeste”
que inflamam a mente do narrador do segundo conto de Dublinenses, “Um Encontro”,
publicado em 1916, mas escrito mais de uma década antes. Quando publica
Ulysses e Finnegans Wake, referências recorrentes
a revistas, quadrinhos, canções populares, programas de rádio,
filmes, televisão, ficção e fotografia erótica
etc. já se tornam norma.
E a cultura
popular retornou o favor. No decorrer do último século, Joyce
e sua obra foram apropriados por toda a gama de gêneros populares. Seus
textos serviram de fonte para adaptações (por mais frouxas que
fossem) no cinema, no rock, na opereta e nos romances gráficos, para
não mencionar as versões literárias e teatrais que nos
são mais familiares. A quantidade e variedade dessas adaptações
atestam o calibre da realização literária e a estatura
alcançada pelo conjunto de textos de Joyce, uma obra que fascina a
tal ponto que deve ser continuamente relida e revisitada. Além disso,
inúmeros textos populares invocam o ícone Joyce, seja usando
seu nome ou imagem (adornado por chapéu, óculos e bigode). Tais
referências, frequentemente encontradas nos lugares mais inesperados,
apontam para o alcance cultural de sua reputação e a durabilidade
de sua celebridade, questões relacionadas, mas bem distintas de seu
legado literário.
Estátuas de James Joyce em Dublin e Zurique
(Fotos: theilr/CC; uggboy/CC; Jim McDougall/CC; Roberth Scarth/CC) Para
colocar de outra maneira: James Joyce não apenas é reverenciado
como um dos autores mais importantes do século 20, mas também
aparece n’Os Simpsons, em animação, é claro, ao menos
duas vezes. Um episódio mostra um carro alegórico dos “Romancistas
Irlandeses Bêbados de Springfield”, com destaque para um personagem
com cara de Joyce situado na frente, acenando para o público. Quando
uma briga começa na multidão, ele pula para o meio da confusão.
Vale notar que, na vida real, Joyce não era lá um grande lutador:
na Paris dos anos 1920, circulava a história de que ele havia provocado
um conflito e depois se escondido atrás de seu companheiro mais corpulento,
exortando: “Pega ele, Hemingway!”. A falta de fidelidade à biografia
de Joyce, no entanto, não vem ao caso. O fato de que n’Os Simpsons
a imagem de Joyce era reconhecível tanto sublinha a permanência
cultural do ícone, quanto sinaliza para as qualidades como que de culto
entre seus fãs.
Esse
também é o afeto do astuto tributo dedicado a Joyce pelos Pogues,
uma banda anglo-irlandesa, cujo album If I Should Fall From Grace With
God (1985) [Se Eu Perder a Graça com Deus] contém
uma capa “alternativa” que mostra o rosto de cada um dos músicos superposto
sobre uma fotografia icônica de Joyce (chapéu fedora, óculos
escuros, mãos quase cruzadas). O original está no centro, exibindo
uma banda de nove sósias de Joyce. O fato de que a imagem foi usada
apenas para algumas edições especiais só enfatiza o caráter
rarefeito do legado de Joyce. Cinquenta anos após sua morte, ele aparecia
como um herói modernista para um disco pós-moderno e pós-colonial,
em um LP digno de uma música irlandesa populista tornada cosmopolita
e global.
Pedra de toque Joyce
morreu em 1941, e quase dez anos depois ele já era uma pedra de toque
para a cultura popular. Pelo menos foi o que aconteceu no cinema, ao ser mencionado
em duas produções auspiciosas. O Terceiro Homem, de
Carol Reed (1949), contém uma cena na qual o protagonista Holly Martins,
um autor de livros de faroeste (do tipo que atrairiam o protagonista de “Um
Encontro”) é erroneamente tido por um escritor de alta literatura
e obrigado a participar em uma seção de perguntas e respostas
com literatos de Viena. Um jovem austríaco coloca uma série
de questões que culminam com: “Onde situaria o sr. James Joyce?”.
Esse contraste entre a alta e a baixa cultura, sugerido pelo escritor de
pulp fiction e o legendário modernista repete-se na referência
ao autor em Sunset Boulevard (1951), dirigido por Billy Wilder. Lá,
o protagonista, Joe Gillis, é um roteirista que, ao ser acusado de
não escrever seriamente, pergunta se prefeririam James Joyce (ou Dostoiévski).
Esses momentos cinematográficos aludem, na superfície, a um
contraste entre Joyce como um avatar das esferas mais elevadas da cultura
e formas de entretenimento popular nas quais ele é mencionado. Porém,
a comparação não é tão simples assim.
A autoconsciência sarcástica de tais cenas sugere uma relação
mais próxima entre as noções de elite e de popular,
um colapso das categorias de alto e baixo.
A complexidade
continua em uma das imagens mais reproduzidas no universo joyceano: a fotografia
tirada por Eve Arnold, em 1956, de Marilyn Monroe lendo Ulysses. O
impacto previsto aqui depende da percepção de Monroe como uma
vedete com cabeça de vento e a do romance como uma obra impenetrável.
É claro, o primeiro impulso é perguntar se Monroe realmente
leu o livro, algo ao qual Arnold se adiantou ao dizer que capturou a atriz
em um momento de sincero relaxamento. Acima de tudo, a fotografia, que vem
decorando livros de crítica joyceana ano após ano, mostra a
cultura de Hollywood participando do status cultural rarefeito de Joyce.
A atriz Marilyn Monroe lendo Ulysses
(Foto: Eve Arnold/Reprodução da capa de Ulysses and Us: The Art of Everyday Living, de Declan Kiberd) Não
foi muito depois dessas incursões cinematográficas que Joyce
adentrou a música popular estadunidense, começando com o hit
de Allan Sherman, “Camp Grenada” (1963), algumas vezes chamado de “Hello
Muddah, Hello Faddah” [Oi mãe, Oi pai]. Uma paródia
de cartas infantis escritas em colônias de férias, a canção
menciona um treinador que “não quer maricas” [wants no sissies]
e então lê Ulysses para os confusos meninos, aparentemente
pensando que seu conteúdo sexual os tornará verdadeiros homens.
Questões de cama também são abordadas em uma canção
da banda californiana Jefferson Airplane, “rejoyce” (1968, minúscula
intencional). Aqui, Grace Slick canta sobre os personagens Leopold e Molly
Bloom, Buck Mulligan e Blazes Boylan: “Mulligan Stew for Bloom… Molly’s
gone to Blazes… any woman whose husband sleeps with his head all buried down
at the foot of the bed” [ensopado de Mulligan para Bloom... Molly foi
para as chamas/Blazes... qualquer mulher cujo marido dorme com a cabeça
toda enterrada no pé da cama]. A vida erótica dos Bloom
continua a ser o foco na música popular e em “The Sensual World”
(1989), Kate Bush inspira-se no monólogo interior de Molly Bloom, que
conclui Ulysses. A canção
começa com sinos de igreja como o pano de fundo sonoro para os devaneios
noturnos de Molly. A versão original apropriou-se da linguagem do texto
de Joyce e acabou tendo problemas legais com os herdeiros do escritor, que
levaram a uma suspensão temporária e revisão. Depois
de finalmente obter permissão, em 2011, Bush regravou a música
como “Flower of the Mountain” (título tirado da autodescrição
de Molly). Talvez não seja surpreendente que a música popular
tenha centrado-se tanto no erotismo de Joyce – embora seja difícil
imaginar tratamentos mais diversos do que os de Sherman, Bush e Jefferson
Airplane. A música pop e o rock mencionaram Joyce em outros casos,
como em Lou Reed, Van Morrison e Black 47.
Capa do CD da banda anglo-irlandesa The Pogues (Foto: Reprodução)
Como
no exemplo do uso de Bush de Ulysses, a obra de Joyce tem sido adaptada repetidamente.
O cinema foi particularmente ativo; embora Sergei Eisenstein houvesse considerado
filmar Ulysses nos anos 1930, o primeiro projeto de levar Joyce para a tela
foi uma versão de Finnegans Wake: o Passages from Finnegans Wake
(1966), de Mary Bute. Adaptações posteriores incluem Ulysses
(1967) e Um Retrato do Artista Quando Jovem (1977) (ambos dirigidos
por Joseph Strick), Os Mortos (John Huston, 1987), baseado no conto
de Dublinenses, e Bloom (Sean Walsh, 2003) – para citar apenas alguns.
Outro gênero que se mostrou bem adequado para Joyce foi o romance gráfico.
Em particular, Ulysses Seen, de Robert Berry, que tem aparecido online
em partes desde 2009, traduz o método narrativo de Joyce em forma visual,
usando esse meio para verter os monólogos interiores, por exemplo.
A webpage de Ulysses Seen faz uso de tecnologia recente; ela inclui
guias de leitura e um dispositivo de participação que constrói,
por meio de ferramentas de chat e comentários, uma comunidade internacional
baseada na internet. Com efeito, parece que é na world wide web que
Joyce irá mais longe, em websites e mídias sociais – até
que surja um novo formato, para adaptá-lo ainda mais uma vez.
Traduzido por Fabio Akcelrud Durão. - Revista Cult, nº 176. Jonathan Goldman é professor do New York Institute of Technology, autor de Modernism is the Literature of Celebrity. |