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A infindável planície avermelhada
Biografia de Dênis de Moraes destaca a figura monumental de
Graciliano Ramos

MARCOS PASCHE*
 O jornal literário Rascunho, nº 155
- março 2013
.

Graciliano Ramos nasceu ainda no século 19, em 27 de outubro de 1892, e morreu em 20 de março de 1953, quando raiavam os primeiros momentos da segunda metade do conturbado século 20. Em face do imediatismo do tempo presente (típico da ideologia de mercado), ele é um homem do passado; se considerarmos o profundo teor político de suas obras literárias, será fácil tomá-lo como anacrônico, uma vez que a literatura contemporânea é refratária à politização; e mesmo entre seus colegas de “geração literária”, Graciliano figura como um autor deslocado, pois em seus romances o documento não se sobrepôs ao literário.

Mas o calor de acontecimentos recentes pode nos dar a dimensão da atualidade do homem de que falamos. Permito-me registrar que no dia 18 de fevereiro de 2013 terminei a leitura de O velho Graça, espetacular biografia de Graciliano Ramos escrita por Dênis de Moraes, publicada originalmente em 1992, ano do centenário do “velho”, e recentemente revista e ampliada. Por meio dela se vê um cidadão patrulhado, perseguido e preso pelas ramificações da ditadura de Getúlio Vargas, sem qualquer justificativa. Tornou-o condenável o fato de ter sido um homem público de conduta visceralmente exemplar, possuir opinião franca e independente e ser autor de uma obra literária radicalmente crítica. Anos após sua soltura, o autor de Vidas secas filiou-se, em 1945, ao Partido Comunista Brasileiro, e da primeira à última hora foi um militante dedicado e fiel. Mas era um homem independente, e a independência não é boa esposa da militância. Daí que altos dirigentes brasileiros do partido tentaram inviabilizar a publicação de Memórias do cárcere e de Viagem, porque ambos os livros não estampavam beijos e abraços de namorado cego ao socialismo, a seus homens e a algumas de suas práticas. Ironicamente, o ex-perseguido pela ditadura Vargas foi, nos últimos anos de sua vida, perseguido pelos perseguidos — os perseguidos então perseguidores que agiam em nome da revolução, da justiça e da liberdade. Primeiramente, veio a tentativa, por meio de reuniões, de enquadrá-lo no realismo socialista; em seguida, a tentativa de censurá-lo de fato, conforme aponta Dênis de Moraes:

Poucos souberam que, entre a morte de Graciliano e o lançamento da obra [Memórias do cárcere], a cúpula do PCB negou a grandeza que tivera ao assisti-lo durante a enfermidade [a entidade custeou despesas da internação de Graciliano para um tratamento, em vão, contra o câncer]. O partido decidira vetar a publicação de Memórias do cárcere e também de Viagem, que, na visão oficial, fazia referências pouco lisonjeiras à União Soviética. Ricardo Ramos [filho do romancista e também integrante do PCB] me confirmou o fato.

Justamente neste 18 de fevereiro a blogueira cubana Yoani Sánchez foi não apenas alvo de protestos na Bahia, mas de uma brutalidade da parte de fanáticos que interromperam um evento da qual participaria. Não faço aqui qualquer equivalência entre o alagoano e a cubana, mas interessa identificar que ambos foram patrulhados pela palavra deslocada: o crime de Yoani é criticar a ditadura cubana; o de Graciliano, apontar os males do setor reacionário e os limites do progressista. Note-se que a patrulha foi empreendida justamente por integrantes de partidos supostamente de esquerda — a esquerda que, naquele tempo, manifestou apoio a Getúlio, e, hoje, está aliada ao que há de mais atrasado na política nacional. Como existe o leitor que não sabe ler, registro que não manifesto apoio à cubana. Quero salientar algo que os revoltosos de hoje não vêem, como também não viram os que se acercaram de Graciliano: xingar Fidel nem sempre significa beijar Obama.

A literatura é um fenômeno libertário, que vai de encontro a todo tipo de dogma — familiar, religioso, político ou intelectual. Também nesse sentido a figura de Graciliano Ramos avulta como lição, pois sua vinculação política jamais esteve isenta de problematizar o que o cercava. Diz o biógrafo na introdução, esclarecendo que só publicou informações que pudessem ser atestadas pela consulta de pelo menos duas fontes diferentes:

Revisitei sua militância no PCB, sempre tratada com maniqueísmo: ou o viam como estátua das virtudes partidárias ou lhe torciam o nariz pela crença no marxismo. Fugindo ao esquematismo, encontrei o fio da meada de uma convivência ambígua e difícil com o realismo socialista — a dogmática orientação cultural emanada de Moscou nos conturbados anos da Guerra Fria.

A esse respeito, o livro estampa no capítulo “Os ventríloquos de Zdanov” (Zdanov foi o grande orientador do realismo socialista) uma declaração do próprio escritor, em entrevista concedida a Heráclio Salles, a respeito da intromissão institucional na produção literária. Quando perguntado a respeito da principal objeção que fazia ao realismo socialista, o autor de Insônia foi enfático: “Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e barrancos as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o narrador diz: ‘O camarada Stalin…’. Ora, porra! Isso no meio de um romance?! Tomei horror”.

Mas voltemos exclusivamente ao protagonista da biografia — assunto bem mais interessante —, antes que este jornal seja denunciado como agente da CIA.

A vida em linhas tortas

Dênis de Moraes elabora um detido inventário graciliânico. O relato é dividido em duas grandes partes — “Os anos de invenção” e “O testemunho do tempo” —, correspondentes a Alagoas e ao Rio de Janeiro, as duas instâncias locais por onde Graciliano dividiu sua vida. Ao longo dos mais de vinte capítulos, o biógrafo vasculha com lupa inúmeros e preciosos detalhes — fornecidos por depoimentos de pessoas próximas e também pelas incontáveis cartas que o escritor enviou a diversos interlocutores —, no intuito de nos apresentar com clareza o ficcionista e, com igual destaque, o personagem Graciliano Ramos — ríspido, austero, pessimista, talentoso e incorruptível.

Em tudo a figura de Graciliano Ramos de Oliveira inspirava a de um nordestino ordinário. Nascido em Quebrangulo, no sertão alagoano, primogênito de uma prole de dezesseis rebentos, bem cedo conheceu a severidade familiar quando foi submetido ao processo de letramento. Os eventuais deslizes nas lições renderam-lhe costumeiras agressões físicas e morais, como ele mesmo retrata no memorialístico Infância, de 1945.

Porém, as extensões do letramento fizeram dele um brasileiro monumental. Já no internato em Maceió, onde fez os estudos fundamentais, e, depois, em Palmeira dos Índios, para onde a família se mudara quando o escritor tinha por volta de dezessete anos, a vocação para as letras se manifestava constantemente, fosse pela publicação de sonetos e contos, fosse pela edição de jornais amadores. Jovem autodidata, Graciliano chegou a lecionar num ginásio local, dando aulas de Português, Francês, Italiano e Esperanto.

Em agosto de 1914, aos vinte e dois anos, o filho mais velho de Sebastião Ramos desembarcou no Rio de Janeiro. A parcimônia de recursos e uma epidemia que lhe vitimou três irmãos fez com que ele retornasse a Palmeira quando sua partida completava exatamente um ano. Ali se casou, em 21 de outubro, com Maria Augusta de Barros, uma antiga namorada. Do matrimônio, nasceram quatro filhos.

Em 1917 Graciliano assume o comércio do pai, e, em 1920, a esposa morre após complicações de parto, o que afundou em tristeza o jovem marido. Relata Dênis de Moraes que, anos à frente, a escrita o resgatava aos poucos, como se ele jogasse para o papel a treva que lhe engasgava: nesse período (entre 1925 e 1926) surgem esboços de Caetés e São Bernardo. Naquela ocasião era plantada a semente de aspereza que perpassaria toda a sua obra. Em fevereiro de 1928, casa-se com Heloísa Leite de Medeiros, sua companheira até o fim da vida, com a qual teve mais quatro filhos.

Em 1929 Graciliano Ramos foi eleito, pelo partido Democrata, prefeito de Palmeira dos Índios. O fato mudaria sua vida, pois o rigor com que moralizou a administração local traduziu-se nos relatórios que enviou ao governador de Alagoas na ocasião. De tão bem escritos, os relatórios tiveram grande repercussão, chegando inclusive às mãos do poeta Augusto Fredrico Schmidt, no Rio de Janeiro. Formou-se um contato que ocasionaria a redação definitiva de Caetés, publicado apenas em 1933, tendo sido bem recebido pela crítica. Àquela altura, o autor dirigiu a Imprensa Oficial de Alagoas e, depois, a Instrução Pública daquele estado. Em meio às gestões, saiu, em 1934, São Bernardo, ainda mais aplaudido pelos críticos.

A firmeza moral de Graciliano Ramos gerou avanços para a população, mas inevitavelmente desagradou aos que usam o serviço público para favorecimento pessoal. Em 1936 (ano da publicação de Angústia), quando o Estado Novo dava sinais de vida (de morte), o autor foi demitido da Instrução Pública e preso, por absoluta perseguição política. Foi então para o Rio de Janeiro, onde transitou em mais de um presídio, chegando a ficar encarcerado na Ilha Grande, à época uma espécie de fim da linha para os detentos.

Graciliano foi libertado em 12 de janeiro de 1937. Àquela altura já havia exercido três cargos públicos de grande relevância, bem como havia publicado três romances que davam a seu nome lugar privilegiado, com o aval da crítica de então, entre os romancistas brasileiros. Mas a liberdade não lhe trouxe paz, porque se viu desempregado, com parcos recursos e absolutamente sem perspectivas.

Dali até o fim da vida, Graciliano Ramos se viu assombrado pela ameaça de perseguição política e pela absoluta falta de abastança financeira. Sua vida profissional foi marcada pelos infindáveis biscates que fez para revistas e jornais e pelos favores de amigos, caso de Aurélio Buarque de Holanda, que o empregou no extinto Correio da Manhã como revisor. Ou seja: um dos três maiores romancistas brasileiros, ombreado aos maiores do Ocidente, pagou caro, em forma de penúria, pelo defeito de ser um homem de grande talento e de comprovada honestidade. Mesmo em sua maturidade e início de velhice, a existência continuava a ser uma infindável planície avermelhada, pela qual os retirantes buscam algum conforto.

Nosso espaço é curto, e nele não cabem confortavelmente o vulto de Graciliano Ramos e a amplidão da biografia. O desfecho é, por isso, inevitavelmente precoce, mas nele é preciso imprimir a reverência ao grande romancista e homem público, bem como destacar o brilho de O velho Graça, de Dênis de Moraes.
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*É crítico literário. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
**Nasceu no Rio de Janeiro em 1954. É doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), sediado em Buenos Aires. É autor e organizador de mais de vinte livros, dos quais oito foram editados no exterior (Argentina, Espanha, Cuba e México). Além de O velho Graça, publicou Vianinha, cúmplice da paixão: uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho e O rebelde do traço: a vida de Henfil.

Graciliano Ramos por Fábio Abreu