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A educação pela escuta

Heitor Ferraz Mello

Revista Cult, nº 178

Em “Carta ao filho”, Betty Milan refaz toda sua trajetória para poder compreender o filho; autora lança livro no Espaço CULT

 
Na segunda-feira, dia 22/4 às 19h,
Betty Milan lançou seu novo trabalho no Espaço Revista CULT. Após bate-papo com a historiadora Mary del Priore e a jornalista Liliane Oraggio, ela autografou exemplares de “Carta ao Filho”.

Ela deixa umas folhas impressas de sulfite sobre a mesa oval de jantar. Levanta-se para atender a porta. Nas folhas de cima, dá para ler a frase “modelo de mãe não existe e mãe modelo não existe”. Ela volta para a sala, agora acompanhada de sua assistente, Helena Castello Branco. Betty Milan, autora de mais de 17 livros, entre ficção e não ficção, logo explica aquelas folhas soltas: são frases pinçadas das mais de 156 páginas de seu novo livro, Carta ao filho: Ninguém ensina a ser mãe, um relato tão emocionante quanto corajoso, que sai agora em abril, pela Editora Record.

Claro, há uma boa dose de coragem em tornar pública uma carta endereçada ao filho – filho único – que, depois de uma ríspida discussão, bateu a porta da casa materna, levando sua mochila, e passou uns bons dias sem dar notícia de seu paradeiro. Talvez na casa de algum amigo. Dias depois, reapareceu, mas ainda sem querer papo com a mãe, hospedado na casa da avó materna. O fato, até onde se sabe, é pura verdade. Não tem nada de ficcional. Mas foi um prato cheio para a psicanalista, com formação em medicina, começar a refletir sobre as rusgas, muitas vezes tão desagradáveis, mas inevitáveis, dos relacionamentos familiares. Santo de casa não faz milagre, ou ainda, em casa de ferreiro, espeto é de pau: velhas máximas que voltam, certamente, quando a mãe é uma psicanalista que passou até mesmo pelo consultório do dr. Lacan, na França.

Como ela mesma sublinha no subtítulo de seu livro, “ninguém ensina a ser mãe”. O aprendizado se dá mesmo no campo da vivência cotidiana. De certa maneira, é isso que o leitor encontrará nas rememorações e reflexões de Carta ao filho, no qual a autora desta longa e bela missiva explora sua vida, desde a infância, passando pelas viagens a Capivari, onde se encontrava com a família, de origem libanesa, falando sobre seus anos de formação no Brasil e na França, do nascimento do filho, do casamento, do amante brasileiro, da morte do marido francês, enfim, revelando um tanto de sua intimidade. O objetivo não é não prestar contas de suas histórias, mas legá-las ao filho para, neste processo, compreendê-lo.

Modelo kafkiano
O movimento é este mesmo, de bumerangue, voltar ao passado, lançar luzes nos acontecimentos pessoais e íntimos, para poder entender o presente, e mais que isso, entender a explosão de raiva do filho único. Neste ponto, seu livro se distancia bastante do grande modelo literário que o próprio título da obra reverbera, o Carta ao pai, de Franz Kafka. Ela pensou em Kafka, mas, para escrever sua carta, deixou de lado a escrita violenta e duríssima do narrador austríaco,* que a certa altura do famoso documento lembra que, sim, está julgando o pai – um processo kafkiano, doloridíssimo, onde há uma série de provas e que certamente reflete em suas grandes obras, como Metamorfose e O processo. É a imagem do tirano, encarnada pelo pai, que está sendo julgada.

No caso de Betty Milan, não. Encontramos uma mãe de família libanesa, toda derretida, amorosa ao extremo, que no decorrer da vida agregou ao seu modo de ser toda a contracultura dos anos 1960 e 70, ou, como ela mesma diz, “uma mãe de Woodstock”. A carta, então, é mais do que a reflexão, mas a busca de um relato sincero e de uma escuta de mão dupla. Bom, aí o leitor atento já se deu conta de que o termo vem da psicanálise – da escuta psicanalítica. Mas se lá o que está em jogo é o universo da simbolização, a escuta procurada por Betty, que desde sempre se apropriou das teorias psicanalíticas com grande liberdade, pode até mesmo partir da psicanálise, mas se encontra mais próxima do ato da escuta, e não da interpretação: “Escutar é uma arte. Implica a contenção e a prontidão. Saber se calar e saber falar na hora certa. Me exercitei nisso de várias maneiras, mas nem sempre soube te escutar. Por não haver entre mãe e filho o distanciamento que permite escutar com sabedoria?”, escreve. Mais adiante, abre o jogo: “Mais de uma vez, o fato de ser analista me cegou em vez de me iluminar”.

Betty Milan começou a escrever este livro depois da cena, dessas de dramalhão, com o seu filho único. E, de fato, ele saiu de casa. Este foi o estopim. Ela conta – em conversa com a CULT – que chegou a passar alguns dias vendo vários filmes de Woody Allen – apesar de não ser uma mãe judia: a mãe dos personagens de Allen, em toda a sua caricatura, ajuda a refletir sobre essa sempre problemática relação. E logo após se pôs a escrever a tal carta. De princípio, sem pensar que aquele texto, que ela ia digitando ao sabor das ideias, poderia vir a ser um livro. Quando o livro se impôs, teve de fazer seu velho e conhecido caminho: manter o registro pessoal, mas cuidadosamente retrabalhar as pistas reais, porém sem jamais apagá-las.

Entre ficção e realidade
Para esse tipo de literatura, conta ela, há uma denominação no campo da teoria literária: “autoficção”. Diante de qualquer interrogação, ela mesma explica: “É uma obra tanto autobiográfica quanto ficcional, algo que faço desde que comecei a publicar, com O sexophuro, de 1981, e depois com O papagaio e o doutor, de 1991”. No primeiro livro, por exemplo, ela chegou a escrever mais de 800 páginas. Era, diz ela, uma revolta contra o machismo. Já o outro livro, que lhe rendeu vários elogios quando da publicação, ela passou cinco anos escrevendo, o trabalho literário foi muito maior. Nele, o exercício que se impunha era relatar a separação dos ancestrais reais para se separar do imaginário, no caso o “doutor”, inspirado em Jacques Lacan. Ou seria o contrário? Toda dúvida é pertinente quando se caminha entre a ficção e a realidade, naquela linha fina que separa dois mundos que, na verdade, se completam.

Mas, conta, se a literatura procura transfigurar a realidade, ela segue por outra trilha, renuncia à transfiguração e valoriza a transparência. Não haveria nesse ato um certo risco de exposição demasiada? Betty olha para as suas folhas na mesa, enquanto vai elaborando a resposta: “Não há esse perigo se o poder de consciência introspectiva for aguçado e eu souber pisar em ovos… Na Carta, por exemplo, não se trata de uma mãe licenciosa”, justifica. E ainda podemos lançar uma outra boa justificativa: a de criar o contraste entre duas gerações, a que viveu intensamente o desbunde e o ativismo político dos anos 1970, e uma geração mais nova, que já recebeu as conquistas dos costumes de bandeja, sem o preço alto da ousadia.

A escrita, como ela mesma conta, é o único recurso para estabelecer esse diálogo. Mesmo com todas essas revoluções, a imagem sacralizada da mãe ainda é uma sombra no mundo. “Nesse sentido, no meu livro, exponho a subversão dos valores, dos anos 1970, a liberação sexual e sentimental, baseada na confiança da escuta do filho, que, enfim, pode me escutar”. Para ela, aí está a chave: a escuta não tem função de revelação, mas de reconhecer o amigo, podendo garantir a “perpetuação da relação”.

No seu caso, pelo menos, deve ter funcionado. Ela não abre muito jogo, mas revela que Mathias, seu filho, hoje com 30 anos e trabalhando com cinema, leu algumas vezes os originais dessa Carta, dando palpites, principalmente com um olhar de quem conhece as regras da continuidade, garantindo uma ordem lógica ao narrado. Mas o que ele pensou da carta? “Ele gostou, mas acha que eu escrevi para as mães”, conta. “Quer perguntar para ele?” Melhor não. Além do mais, o objetivo final da carta é “liberar o filho”. Ele agora segue seu caminho. Enquanto a mãe real, Betty Milan, seguirá o dela, ou melhor, manterá seu domicílio duplo, entre Paris e São Paulo, ficando seis meses em cada cidade, como já vem fazendo há mais de 30 anos. E certamente toda vez que voltar ao apartamento nas imediações da avenida Paulista, irá se surpreender com as diferenças culturais: “Só uma casa brasileira para ter todos esses instrumentos de faxina na porta”, comenta, sorrindo, ao se despedir.


* A bem da verdade, o escritor Franz Kafka, nascido em Praga, é, de origem Tchecoeslovaca.

Betty Milan