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NECROLÓGICO

BRUNO TOLENTINO
A voz do antigo Brasil moderno


Morto na última quarta-feira, aos 66 anos, vítima de falência múltipla dos órgãos, o poeta paulista ficou célebre por suas polêmicas contra Caetano e os concretistas. Falava em nome da alta cultura. Praticava uma lírica de inspiração católica


LUÍS AUGUSTO FISCHER
Escritor, doutor em Letras, professor da UFRGS
Publicado no jornal Zero Hora,
30 de junho de 2007
 
 
 
Depois que morreram os derradeiros grandes poetas modernos brasileiros - Vinícius em 1980, Drummond em 1987, Mário Quintana em 1994, João Cabral em 1999 - , ficamos meio órfãos. Bons poetas continuam aí, alguns até candidatos a grandes, como Manoel de Barros, Ferreira Gullar e Adélia Prado, quem sabe o recentemente falecido Haroldo de Campos. Mas nenhum desses foi capaz de imantar a opinião geral dos leitores, porque nenhum conseguiu ser uma referência pública generalizada em matéria de linguagem, mais precisamente de linguagem capaz de flagrar o rosto do tempo em que vivemos.

Talvez seja menos um problema dos poetas atuais, esse de não alcançar um patamar de reconhecimento vasto; talvez se trate de uma mudança realmente irreversível do lugar da poesia no mundo: os modernos, que começaram a publicar nos anos 1930, quando o rádio ainda se iniciava, encontraram espaço para validar publicamente sua linguagem, o que deu a sua poesia um estatuto de relevância alta, análoga à dos grandes romancistas de sua geração (Graciliano, Erico, Lins do Rego, depois Guimarães Rosa); já os posteriores a eles, que apresentaram sua poesia a um mundo povoado pela televisão, pela canção popular chancelada pela bossa nova, depois pela Internet, parecem não conseguir audiência pública ao mesmo tempo relevante, disseminada entre os leitores e capaz de propor uma visão consistente do mundo.

Não basta, assim, o poeta dominar seu metiê, freqüentar línguas, conhecer a tradição, publicar livros, para subir ao nível de ressonância social alcançado pelos modernos. Se bastasse, certamente haveríamos de arranjar um lugar entre eles para Bruno Tolentino, falecido esta semana.

Nascido em 1940, em família da mais letrada linhagem disponível no país (era parente de ninguém menos que a romancista e crítica Lúcia Miguel-Pereira, da tradutora e especialista em Shakespeare Bárbara Heliodora e do mais importante crítico que o Brasil já conheceu, Antonio Candido), Tolentino dominava de coração o português natal, mais o francês e o inglês, aprendidos com preceptores. Isso poderia não ser nada além de uma marca de classe, no Brasil; mas para um poeta isso é decisivo, naturalmente. Sua geração é a mesma dos também cariocas José Guilherme Merquior (1941 - 1991), Carlos Süssekind e Leandro Konder, três figuras de primeiro nível no campo literário; com eles, Tolentino representa bem um momento, já fenecido também, em que a elite cultural brasileira ainda via nas letras uma arena relevante. Hoje, onde andam seus filhos? Em que Miami mental?

Quando jovem, era fama sua rebeldia. Sua estréia no mundo letrado não podia ser mais tumultuada: venceu um concurso para inéditos, em 1960, mas o resultado foi contestado, por argüição de autoria, e a coisa só se desembaraçou com um processo judicial curioso. Para quem quiser conhecer, o livro daí resultante se chama Anulação e Outros Reparos, com reedição em 1997, pela Topbooks: um livro de jovem talentoso, culto, destro no manejo dos melhores recursos da língua, atravessado por uma espécie de existencialismo a que não faltam componentes católicos..

Aliás, por esse viés caminhou sua poesia, nos melhores momentos. Depois de uma longuíssima temporada na Europa (entre 1964, mas não por cassação política, e 1993), onde publicou em francês e em inglês, seu primeiro livro brasileiro foi o singular As Horas de Katharina (1994), em que o poeta deu voz a uma personagem freira que teria vivido entre 1861 e 1927. No livro, há poemas extraordinários, como "Estrela-do-mar":

Deram-me, quando criança,
uma estrela-do-mar,
e eu guardei dela a esperança
de durar

seca, ao longe, arrancada
também ao meu país
natural, a raiz
apenas, sem mais nada

que houvesse sido dela.
E vim parar aqui,
uma estrela
do mar, longe de tudo o que perdi.

mas não deu certo:
a coisa inanimada,
longe ou perto,
tardinha ou madrugada,

é sempre igual a si.
A criatura não.
O ser é uma emoção.
Eu sou feita de tudo o que senti.

No mesmo 1995, publicou um livro que é um delicioso panfleto: Os Sapos de Ontem. É que Tolentino, de volta ao país natal, havia ocupado todas as posições de tiro relevantes na imprensa cultural, e por aí fez um ataque mais ou menos sistemático, que ele dizia ser reativo, contra a hegemonia do concretismo e da canção popular na poesia brasileira - para ele, tratava-se de duas pragas, que haviam interrompido danosamente o curso da alta poesia brasileira. Era uma voz do antigo Brasil moderno contra a submissão do mundo letrado à lógica pop, que ele recusava.

Ainda teve tempo de publicar outros livros, um dos quais pateticamente belo, A Balada do Cárcere, de 1996, nascido de uma de suas experiências impressionantes - passou quase dois anos preso, por envolvimento com drogas, na famosa prisão inglesa de Dartmoor, onde deu aulas de poesia a vários parceiros, entre os quais um assassino, que no livro é chamado de "o Numeropata", figura sinistra e bela. Adiante, em O Mundo como Idéia, de 2002, ele radicaliza ainda mais seu anacronismo, que rende bela poesia, mas quase incomunicável poesia: Tolentino refluiu para um catolicismo filosófico, erudito e lírico, temperado por uma visão nietzschiana, irracionalista, ou melhor, por uma militante recusa à modernidade ocidental em bloco, ao que para ele é, era, a perdição do mundo, o "hegelianismo" - o livro faz a apologia do mundo ocidental quando ainda era regido por um sentido transcendental católico.

Era mesmo? Alguma vez foi? Talvez Tolentino tenha perseguido uma miragem, o que mesmo assim não retira seu mérito de poeta, de hábil encadeador de versos, de virtuoso manipulador da língua portuguesa (ao lê-lo, a gente tem a reconfortante sensação de que o português é uma língua de vastos recursos - e olha que Tolentino não era de inventar palavras, de quebrá-las para encontrar pedaços concretos, nada disso). Sua obra provavelmente não se elevará acima do patamar de leitura que teve até hoje, menos por deficiência sua, e mais porque o mundo, definitivamente, não cabe mais na poesia.

Tolentino veio jantar conosco dois anos atrás, junto com outros amigos.  Comeu quase nada. Estava muito magro. Apareciam-lhe as fossas de Bichat! À tarde, havíamos participado de uma mesa no MARGS para conversar sobre A Dama de Branco, de Athur Timótheo da Costa, 1906. Uma pintura maravilhosa. Tolentino aproveitou-se da unica parte nua do corpo d'A Dama de Branco, a mão direita desenluvada, para associá-la à Cecília Meireles, e por aí passou a nos falar da intimidade de seu relacionamento com a poetisa. Sua casa, seu escritório, o pinheiro na frente da Janela. Tolentino foi um intimista.  Freqüentador assíduo da casa de Dona Lili (a viúva de Roberto Marinho), dona de uma fabulosa coleção de artes (veja-se uma amostra no volume publicado em 1987, por ocasião da exposição PINTURA MODERNA BRASILEÑA, Colección Roberto Marinho, no Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires), Tolentino mostrou-se muito à vontade em nossa casa. Falou-nos de arte, de sua estada na Inglaterra onde ensinou por vários anos Literatura em Oxford e onde também, como já disse o Prof. Fischer, foi hóspede da Rainha. Sempre muito vivo e simpático e, contudo, discretamente nostálgico. Antes de se ir, ainda autografou alguns livros seus para nós.  Ficaram seus livros. Uma poesia para ser lida com o tempo. Não foi o primeiro poeta a falar do cárcere, mas disse sua versão.

O Prof. fischer disse que o mundo não cabe mais na poesia! E coube alguma vez? Pode ser uma pergunta. Outra pergunta: Não foi a poesia que criou o mundo? Compreendê-lo, não é fácil. - Antoine Tudal, quatorze anos antes de Paris completar 2000 anos, disse assim:

Entre o homem e o amor
há a mulher.
Entre o homem e a mulher
há um mumdo.
Entre o homem e o mundo
há um muro.

Luiz-Olyntho Telles da Silva

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