MÚSICA PERDIDA


Luiz-Olyntho Telles da Silva

Omnis vulnerant, ultima necat.

Inscrição em um relógio de sol.





    

 


                                 Freqüentava ainda a Universidade quando vi um filme que me marcou. Era um curta-metragem francês: La Rivière d’Hibou. Na guerra de secessão americana, um jovem soldado é condenado à morte e está para ser enforcado por sobre a ponte do Rio da Coruja, aliás, um rio seco como o nosso Îtininga. O filme se passa na fração de segundos em que o corpo cai. Nesse instante o soldado relembra sua vida. Como disse Gabriel García Márques na epígrafe do seu Viver para contar: A vida não é o que a gente viveu, e sim o que a gente recorda.

    Em Música perdida, a história se passa em seis horas: das cinco da tarde - um pouco antes da hora da Ave Maria - até às onze horas da noite, número que não deixa de revelar um excesso a superar a plenitude do dez. Na verdade, há um depois, mesmo um depois das onze!

    São cinco capítulos a descrever a história de um músico e sua música, uma cantata, sua música perdida.

    Seis horas e cinco capítulos? Ora, é a escrita de uma música nos seis espaços permitidos pelas cinco linhas do pentagrama. Um pouco abaixo, as lembranças da infância;  as diversas notas de vida nas linhas e entrelinhas; e o um pouco depois. O tema é heróico: afinal, o personagem, o músico, o Maestro Mendanha, é o herói do romance, ainda que mais para o lado do anti-herói. Uma vida de muitos fracassos onde os poucos sucessos concorreram também para o fracasso! Para sobreviver foi mesmo obrigado a vestir-se com a pele do inimigo. Um fracasso, contudo, tratado como um espaço dentro do qual o artista construiu sua obra. E o tema, além de heróico, não deixemos de anotar, também é galante: trata-se de uma paixão. Paixão pela música. Mas quem a incorpora, quem representa a musa Euterpe, é uma singela - ainda que rara - copista de música, Pilar.

    Para dizer da história de uma cantata, Luiz Antonio de Assis Brasil usou a estrutura de uma cantata! A introdução de cada capítulo pode ser comparada às árias que vão contando a seqüência cronológica, marcando o tempo, seguido dos diversos recitativos a dizer, por sua vez, do tempo lógico, das lembranças concorrentes naquele instante. Em seguida, uma coda onde se especifica a clave em que foram inscritos aqueles acontecimentos.

    Não se pode dizer da história uma louvação, porque a música é clássica; sua cantata tende a um oratório – é forte o colorido religioso do drama.

    A Filosofia - lato senso - nos diz de um sujeito ligado a um objeto. Na Música de Assis Brasil, assim como na Psicanálise, o objeto é perdido. Quem contribui para isso é um arquiteto de nome Levasseur. Levas-seur conota aquele que leva o seu, ou o que é seu (ou meu)? Perdido por toda a vida, o reencontro presentifica a morte. O nastro a amarrar o objeto está trançado com os nomes-do-pai: seu próprio pai, o também Maestro Mendanha; Bento Arruda Bulcão, seu mecenas; Padre-Mestre José Maurício Nunes Garcia, seu professor, entre tantos outros, como a própria Adelaïde, e mesmo Pilar, cujo nome, por si só, indica sustentação. Nenhuma linha é sem sua escrita. Na lembrança dessas relações, a angústia resultante da impossibilidade - humana - de sustentar o ideal sonhado pelos outros (ou pelo Outro, como diria Lacan). Mendanha não conseguiu ser o sonho dos pais e, não o sendo, pensou durante a vida ser nada; só in extremis consegue se reconhecer, o que proporciona aquele Finale (por que não dizer?) Maestoso!

    Mendanha precisava se apresentar com algo ao Criador. Acreditava no depois, no além. O desafio de ultrapassar a última linha do pentagrama. Se não tomamos conhecimento de sua recepção no Paraíso, assistimos a seriedade, o carinho, o amor, enfim, de sua mulher nos cuidados para a encomendação de sua alma.

    Quando os músicos executam sua Cantata na Missa de Corpo Presente, somos nós todos, emocionados, a homenagear a grandiosa singeleza - se me permitem o oximoro - do autor do hino do Rio Grande do Sul. Aí, Euterpe e Calíope andam de mãos dadas.