Página da Biblioteca Sigmund Freud
Alfredo Bosi desvenda vida e obra de Machado de Assis
Escrito por um dos maiores especialistas brasileiros no assunto,
o volume "Machado de Assis", da coleção "Folha Explica", da Publifolha,
trata de toda a produção machadiana --romances, novelas, contos, crônicas,
teatro e poesia. O primeiro capítulo pode ser lido abaixo.
A obra reúne, também, o pensamento dos principais críticos
acerca da obra de Machado de Assis e explica a estrutura, o enredo e a as
características das principais personagens dos romances "Memórias Póstumas
de Brás Cubas", "Quincas Borba", "Esaú e Jacó", "Memorial de Aires" e "Dom
Casmurro".
O livro "Folha Explica Machado de Assis" é assinado por Alfredo Bosi,
professor titular de literatura brasileira da USP (Universidade de São Paulo).
Escreveu também "Machado de Assis: O Enigma do Olhar" e "Literatura e Resistência",
entre outros livros.
Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos
tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor
condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir
sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do
país.
"Folha Explica Machado de Assis"
Autor: Alfredo Bosi
Editora: Publifolha
Páginas: 112
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090
ou pelo site da Publifolha
Confira a introdução do "Folha Explica Machado de Assis":
Caminhos da Crítica
Machado de Assis é considerado o melhor romancista brasileiro. E, à
medida que a sua obra for traduzida para as principais línguas cultas, crescerá
a probabilidade de seu nome incluir-se entre os maiores narradores do século
19. A sua estatura ombreia-se com a de alguns contemporâneos que alcançaram
renome internacional: Zola, Maupassant, Verga, Eça de Queirós, Thomas Hardy,
Henry James, Tchekhov.
Entre nós, o reconhecimento do valor da ficção machadiana já se fez
em vida do autor. Os principais críticos literários do seu tempo, Sílvio
Romero e José Veríssimo, definiram --negativa e positivamente_- as linhas
mestras da fortuna crítica. Um grande escritor, mas menos brasileiro do
que seria de desejar: era a avaliação de Sílvio Romero1. Um escritor
profundo, introspectivo, universal: era a consagração de Veríssimo, que
fecharia a sua História da Literatura Brasileira (1916) com um longo capítulo
sobre Machado. Assim, a mesma ênfase na excelência da sua escrita, qualidade
que conquistaria o consenso de todos os leitores, dava margem a juízos diferenciados,
conforme o critério fosse nacionalista ou estético.
A crítica posterior matizou e afinal corrigiu as avaliações restritivas
de Sílvio, mostrando com fartos exemplos a presença do Brasil, sobretudo
do Brasil fluminense, escravista e patriarcal, em toda a obra de Machado.
Com o tempo, o que o patriotismo romântico achara escasso, o historicismo
sociológico passou a considerar como a substância mesma das situações e das
personagens construídas pelo romancista.
Convém repensar o problema. Os vários métodos de interpretação do texto
ficcional já acumularam suficiente lastro teórico para não se regredir
a visões estereotipadas de um dos criadores mais complexos da nossa literatura.
A escrita de um grande narrador trava uma luta, às vezes em surdina, com
certas vertentes ideológicas e estilísticas do seu meio e do seu tempo: daí
ser preciso acompanhar de perto o seu ponto de vista, que não só representa
como rearticula, exprime e julga a matéria da sua observação. A fortuna crítica
de Machado nos ajuda a rever o mapeamento do seu universo (esfera da mimesis),
mas também nos chama para compreender o pathos e o ethos peculiar que lhe
deram uma voz inconfundível no coro dos nossos narradores.
Pouco depois da morte de Machado, em 1908, leitores atentos como Alcides
Maia e Alfredo Pujol insistiram na presença do humor predominante na segunda
fase da sua obra, que se abre nos anos de 1880 com as Memórias Póstumas
de Brás Cubas e os contos de Papéis Avulsos. Influências inglesas foram igualmente
apontadas por ambos, vindo sempre à baila os nomes de Swift (1667-1745) e
Sterne (1713-68). Entretanto, menos do que a procedência européia, interessa
notar a vinculação, que se constatou desde o início, do humor machadiano
com a sua visão pessimista da História e da Natureza.
Uma leitura de cunho naturalista buscou na vida do autor as causas
desse pessimismo: a timidez, a morbidez, certos traços esquizóides, a
gagueira, distúrbios oculares, em suma "a doença e constituição de Machado
de Assis", título da obra clínica de Peregrino Jr., datada de 1938. Mas,
se hoje parece não ter restado nada, ou quase nada, dessas tentativas de
etiologia do humor de Machado, ficou, sem dúvida, o reconhecimento da expressão
artística de uma difusa melancolia que permeia os enredos e os comentários
desenganados do narrador. O que caiu de moda, até segunda ordem, foi a
identificação de uma gênese psicossomática desse tom fundamental.
Augusto Meyer e Barreto Filho
A melhor crítica dos decênios de 1930 a 1950 concentrou-se no significado
imanente das formas do humor, do tédio e daquele nonsense joco-sério tão
entranhado na linguagem da segunda fase de Machado. O que Augusto Meyer
e Barreto Filho exploraram nos seus ensaios poderia ser descrito como tentativas
de leitura fenomenológica, embora nenhum deles faça praça do método. A
caracterização que Augusto Meyer faz do homem subterrâneo é, nesse sentido,
exemplar2. Atrás da "pseudo-autobiografia" de Brás Cubas ou
do conselheiro Aires, ambos forjadores de memórias, póstumas ou tardias,
opera um espírito de dúvida ou negação que relativiza todas as certezas
e deita por terra as mais caras ilusões do leitor daquele tempo e do nosso.
É essa voz, ou, antes, são os "cochichos do nada", que o crítico-poeta soube
escutar e nos transmitir.
Para tanto, forjou conceitos lapidares. Por exemplo, o "perspectivismo
arbitrário" de Brás Cubas, matriz do capricho que alinhava bizarramente
as confidências do defunto autor. Ou a "atenção divertida e frouxa" que
o narrador de Esaú e Jacó dá aos sucessos políticos do fim do Império e
do início da República, meros pretextos que bóiam à superfície do texto
romanesco. Outros achados: "a necessidade da renovação pelo esquecimento",
tema do Memorial de Aires, onde les morts vont vite (vão-se os mortos depressa)
e com eles os velhos. Enfim, a ociosidade "como o verdadeiro clima da obra
romanesca" nas páginas da maturidade --conceito rico que funde o social
e o psicológico, mas que nos faz perguntar por que os pensamentos dos rentistas
desocupados dos romances se parecem tanto com as reflexões céticas do próprio
Machado de Assis cronista dos anos 1880 e 1890.
Com igual mestria, Augusto Meyer detém-se no trato analítico de personagens
e situações, pondo em relevo o cinismo de Brás, "solteirão desabusado",
a loucura progressiva de Rubião, a sensualidade coleante de Capitu, a perpétua
hesitação de Flora. E, voltando como leitmotiv, aquela "nota monocórdia"
do narrador, que intervém com digressões escarninhas ou apenas desconcertantes.
Atento aos mínimos movimentos da escrita, Meyer desenhou o mapa interno
da mina onde ainda hoje escavam os melhores leitores de Machado.
Em termos de interpretação, a leitura de Barreto Filho vale por ter-se
fixado em um núcleo de significados: o espírito trágico que enformaria
a obra inteira de Machado, guiando os destinos para a loucura, o absurdo
e, no melhor dos casos, a velhice solitária3. A matéria-prima
da análise existencial de Barreto Filho é o sentimento do tempo, que suscita
indefectivelmente a pergunta sobre o sentido da vida e da morte. Assim,
embora seja rica de informações históricas, a Introdução a Machado de Assis
acaba situando o roteiro ficcional do autor em um plano metafísico. A mesma
tendência já encontrara prenúncios em Afrânio Coutinho, autor de uma Filosofia
de Machado de Assis (1940). Não foi essa, porém, a vertente predominante
na segunda metade do século 20, quando se buscou dar solidez à figura de
um Machado de Assis brasileiro, sensível às contradições de nossa história
social.
A Construção De Um Machado Brasileiro
A íntima relação entre o escritor e a sociedade brasileira do seu tempo
começou a ser desvendada, como era de esperar, mediante a exploração sistemática
da sua biografia. A primeira, e até hoje a melhor de Machado de Assis, foi
escrita em 1936, por uma romancista estimável, dotada de singular acuidade
psicológica, Lúcia Miguel Pereira4. Embora o seu foco de interesse
fosse, em primeiro lugar, o homem Machado com as suas peculiaridades de
temperamento e caráter, a biógrafa teve o cuidado de marcar a situação de
classe, que, no caso, se configurou como um fenômeno de passagem.
O menino Joaquim Maria nasceu em 1839, em uma quinta no morro do Livramento,
de pai mulato (neto de escravos) e mãe vinda ainda criança dos Açores com
a família que migrava. Era um casal de agregados que recebia trabalho e
proteção de uma rica viúva, dona Maria José de Mendonça Barroso, cujo marido
fora senador no Primeiro Reinado. Dona Maria José foi escolhida para madrinha
de Joaquim Maria. Aos dez anos, o menino fica órfão de mãe e, aos 15, entra
em sua vida a madrasta, Maria Inês, que era mulata como seu pai e que, segundo
alguns biógrafos, teria sido uma verdadeira mãe. No entanto, e aqui começa
a armar-se o esquema psicossocial de Lúcia Miguel Pereira, nem bem entrado
na adolescência, Joaquim Maria sai da chácara e muda-se para a cidade, dando
as costas definitivamente à família e ao subúrbio onde até então vivera como
dependente.
O rapazinho iria superar, pelo talento e pelo mérito de um esforço
ininterrupto, a barreira da classe social a que suas origens humildes poderiam
tê-lo relegado. Mas não se cortam impunemente os laços com o passado: os
seus primeiros romances modelariam personagens determinadas a subir na vida,
como Guiomar, em A Mão e a Luva, e Iaiá Garcia, no romance de mesmo nome.
A ambição, misturada com um tanto de ingratidão e dureza nas relações familiares,
seria racionalizada e, a rigor, justificada pela voz do narrador como necessária
à sobrevivência da personagem. Segundo a intérprete, as figuras femininas
que lutam obstinadas para vencer naquele contexto patriarcal dos meados
do século seriam travestimentos da alma do jovem Machado, que nelas projetaria
o drama recalcado da sua própria ascensão social. Daí por diante, hipocrisia,
ingratidão e, no limite, traição seriam motivos recorrentes nos seus romances.
A dinâmica social se interioriza e se faz psicologia individual. O narrador
tem aguda consciência das forças modeladoras do meio. Sem essa consciência,
alerta e sofrida, não seria, aliás, possível a formação do humor machadiano,
que morde e sopra, levanta a máscara e logo a afivela de novo para subtrair
a evidência, mas deixando em pé a suspeita.
A interpretação de Lúcia Miguel Pereira tem o mérito, ainda hoje não
excedido, de fundir classe social, posição do indivíduo