Página da Biblioteca Sigmund Freud

Trançar, Tecer - Inventar um texto  

Maristela Costa Leivas
2006


    O que pretendo dizer hoje deriva de restos tramados na leitura de textos publicados pela revista Texturas en Psicoanalisis (ano 5 – nov. 2005) que neste número apresenta diferentes artigos dedicados ao tema - as escrituras.  Movidos pela leitura, seguiremos hoje com este tema, na ocasião em que nos reunimos lembrando os 150 anos de nascimento de  Freud e o homenageamos com nosso trabalho.

    Aproveitamos então a proposta da revista, de  apresentar aos leitores e à comunidade analítica uma rede de textos que possam ser novamente ‘tecidos e re-tecidos’, com isso firmando a origem de seu título – Texturas - que remete tanto aos textos quanto às tessituras, tanto ao ato de tecer um texto, quanto ao que esta trama pode designar enquanto conjunto de notas  em um trecho musical.

    Entre as importantes questões encontradas na revista, recorto o escrito pelo psicanalista Ignácio Guirao, baseado em um artigo de Jorge Luis Borges e publicado no jornal La Nación. Retomando a história, conta que na época homérica estava o predomínio da palavra oral sobre a escrita; os gregos pensavam na importância da palavra escrita para registrar a história, como um recurso à memória, mas guardavam contudo alguma ambivalência com relação à escrita, privilegiando o aspecto oral de transmissão da palavra. Nas situações de ensino os gregos costumavam ler em voz alta, interpretavam o texto como atores, recitando, de maneira que pretendiam fazer ‘reviver a palavra que jazia calada no texto escrito’. Desde estes tempos, a expressividade oral, apresentada na poesia ou na religião, eram utilizadas como terapêutica. Através da palavra oral acreditavam que se poderia modificar ou mesmo curar a alma dos indivíduos. Conforme crenças da época, as feridas se produziam por obra dos espíritos maléficos, então usavam fórmulas verbais salmodiadas ou cantadas, conservadas por tradição, que iam contra esses espíritos. Mostra-nos o autor que tais idéias podem ser encontradas em Aristóteles (Tratado de Retórica) onde este sugere a aplicação da palavra persuasiva quando pretendemos mudanças na alma dos doentes, acentuando que o discurso persuasivo deveria acompanhar toda a ação terapêutica.

     Lembra o autor que nos tempos atuais, o recurso da palavra oral ficou restrito à prática de crenças populares. A medicina oficial, a partir do século IV antes de Cristo se afastou dessa concepção, aderindo mais e mais à técnica. De modo que a arte de curar foi se reservando aos livros através da palavra escrita, restando à palavra oral o terreno do mágico e do religioso até os dias de hoje.

     Contudo, sabendo que a palavra escrita se reduz ao alcance do que ela significa e que o ato de falar não é o mesmo que o de escrever, pois quando alguém fala aparece um modo particular de dizer, a psicanálise acentua e mantêm o valor da palavra falada.

No início o tratamento analítico era conhecido como a cura pela palavra; no início era deixar falar, depois veio a  interpretação, cortar o texto, lavrar, apontar para o analisante aquilo que lhe escapa, o que desconhece em seu dizer.  E referindo-se a interpretação, Freud irá advertir que o analista não deve apenas interpretar, deverá também construir. A construção aponta “uma imagem confiável e íntegra em todas as suas peças essenciais, dos anos esquecidos da vida do paciente”. A construção, como é colocada por Freud neste texto, participa da ordem de um escrito, escrito que deverá ser lido nos significantes colocados em jogo numa análise. Falamos  também aqui de um escrito, que neste momento não se refere à palavra escrita nos livros, como antes nos referíamos, mas de um escrito que é escritura, marca inscrita no corpo pelo Outro, num tempo que é logicamente outro que o do trabalho interpretativo do analista, e por se apresentar novamente na repetição significante, entre um significante e outro, tornará possível, através da interpretação, a inscrição de algo novo na história do sujeito, como o que opera na música; interpreta-se também o que não está escrito.

E para seguir com o que ocorre neste espaço ‘entre’, entre um significante e outro, faço um recorte do que iremos localizar no texto da psicanalista Maria da Glória Telles da Silva, também publicado nesta revista com o título: Para falar de Finn, Pesadelo e Labirinto. O texto se constrói desde sua leitura da novela de James Joyce - Finnegans Wake - e destaco alguns trechos. O primeiro é o que aproximo disso que se produz entre um significante e outro: ‘O que Joyce declara com todas as letras em sua novela é que o que constitui nossa vida, se produz neste interstício, no território do entre: fim e início, vida e morte, sonho e vigília, loucura e sensatez. Tudo está ali. E a linguagem é nosso precário instrumento para aceder a este território ao qual damos o nome de Real.’ Isto que parece curioso e que também podemos perceber de algum modo, quando lemos o texto sobre a escritura da música, alguma coisa se passa entre o traço e o som, isso que esta entre, o que está interdito e que pede leitura, pede expressividade, é o desejo.

Do texto de Maria da Glória seguirei um pouco mais com esta   imagem de ‘fim’, diz o texto: não há fim, apenas recomeço, apontando a circularidade e a idéia de que a vida se alimenta, se renova dos restos que se decompõem a nossa volta. A esta idéia aproximo a leitura recente de um texto de Freud em que trata a respeito da transitoriedade. Conta ele que passeava com amigos num lindo dia de verão, admirando os campos floridos. Ficou surpreso quando um destes se mostrava perturbado com o pensamento de que toda a beleza estava fadada a extinguir-se logo que chegasse o inverno, ‘como toda a beleza humana e todo o esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Com isso o amigo parecia retirar o valor dos objetos que admirava por estarem fadados a transitoriedade. E segue dizendo que embora a imortalidade siga como produto de nossos desejos a transitoriedade é inegável. Contudo, enquanto a morte delimita o tempo, a escassez do tempo, este mesmo limite poderá implicar num acréscimo ao valor desta fruição e tão logo passe o luto pela desaparição das flores daquele verão, renova-se a esperança quanto ao próximo. E assim segue a vida, como o fluxo de um rio, o momento que estava passou, não volta mais e, se falamos em repetição não será repetição do mesmo.

Com a idéia de que o que está entre é o desejo e a imagem do fluxo de um rio proposta por Joyce, fluxo que corre entre duas bordas e também de que fluxo é um importante significante do feminino, encontramos com o texto de Osvaldo Couso no final da revista, que trata da demanda feminina ao pai.

Num primeiro momento, na leitura da revista, me parecia estranho que ali, entre os diferentes textos que falam sobre escritura, estivesse aquele sobre sexualidade feminina. Mas como no estranho sempre encontramos algo familiar, pensei na possibilidade de que estivesse justamente ali como ilustração do que possam ser as ditas escrituras, como uma forma de dizer como pode se inscrever o feminino, mas também para dizer que a escrita, o ato de escrever tem alguma relação com o feminino.  

Nas diferentes formas de tramar o feminino encontramos com a frase onde Freud diz que tramar e tecer são invenções do feminino. Sabemos que desde o alvorecer do mundo as primeiras atribuições da mulher estavam ligadas a arte de fiar. Freud associa a trama dos fios aos pelos pubianos que estão presos ao corpo, ao que, por deslocamento, aproximamos das demais figuras de fios que se cruzam, ao trabalho feminino de tramar e tecer, fios que se unem uns aos outros produzindo tecidos. O fio é vínculo de entrelaçamento, de determinação da origem, identifica o lugar de engendramento, mas também na ligação com outros fios enrola o tempo e constrói a história. E o corpo ele mesmo voltado à escrita, é um fio prodigioso, servindo como lugar de inscrição do traço e de leitura.  

 Os tecidos, os véus além da função de encobrir  servirão  para desenhar o corpo, e no entrelaçamento dos fios identificaremos que estão ali não para velar o que se tem, mas precisamente o que não se tem. E numa das escrituras possíveis, a mulher, no caminho da feminilidade, usará o véu encobridor do furo inominável, máscara fálica, fazendo diferença à histeria, pois comporta o reconhecimento, não sem dor, de que seu sexo permanece um enigma.

E se tomarmos o feminino como representando isso que é da ordem do vazio, algo que permanece fora do alcance da palavra, algo que não pode ser dito definitivamente e que se apresenta a partir de um tecido, poderemos supor que o mesmo também esteja colocado na construção das tramas tecidas no fio das letrinhas, na construção dos demais textos, no sentido de que no exercício da escrita estejam sempre os autores a construir uma borda em torno disso que representa o vazio.


Recortes da demanda dirigida ao pai


Considerando que a posição frente à castração faz a diferença nos caminhos que se seguirão no desenrolar do Complexo de Édipo no menino e na menina, iremos observar que o que para ele torna-se ameaça e o faz abandonar o Complexo de Édipo, para ela será fato consumado e marcará propriamente sua entrada no Édipo. E desde então a menina, influenciada pela inveja do pênis, se distanciará da mãe e  dirigirá a demanda de amor ao pai, contudo a demanda dirigida ao pai segue conflitiva.

A partir do texto Freudiano o autor aponta ao valor decisivo da demanda de amor ao pai nos destinos da sexualidade feminina e examina os três caminhos possíveis como destinos femininos: a inibição sexual ou a neurose,  uma modificação no caráter no sentido de um complexo de masculinidade e, como terceira possibilidade a feminilidade. Desde aí dirá que serão sempre conflitivos os caminhos da demanda ao pai ‘...as meninas demandam precisamente aquele que com sua resposta fálica originou a insuficiência e a insatisfação... que as levam a demandar’,   sempre  serão  conflitivos, por que como toda a demanda está condenada a insatisfação.

Desde os referidos destinos, encontraremos uma vigência ou evitação desta demanda, se constituindo assim a demanda de amor ao pai como um divisor de águas.  Sua vigência implica que a menina reconhece que não tem o falo, e espera receber do pai este falo amalgamado com seu amor. Este caminho permitirá a menina um ‘ser o falo’ que não se confunde com ser o falo da etapa pré-edipica, viabilizando desde aí uma saida ‘normalmente neurótica’.

 A vigência da demanda ao pai deverá se estender num momento posterior desde o pai aos demais homens, a aquele que escolherá como par, gerando uma marcada tendência pelo fato de seguirem atadas á demanda, a necessidade sempre presente de uma prova de amor, de um signo de amor do homem. A demanda ao pai perdura na histeria e na feminilidade e é evitada no complexo de masculinidade.

Osvaldo Cuoso fala dos casos em que não está a demanda ao pai.Ela não reconhece sua castração no ter e não necessita, então , receber nada do pai. Quase confundida co um menino, ela quer que a reconheçam como tal. Na verdade quer ser reconhecida com o que para ela é um menino, aquele que porta um falo que tende a conceber como absoluto.  

E nos apresenta uma outra posição que não se enquadra exatamente entre ás três antes referidas. Esta posição o autor ilustrou com  um conto de Gustave Flaubert, Um coração Simples, onde a personagem Felicidade dá forma a uma posição de desaparição da demanda, contudo não chegando a uma posição renegatória, característica do complexo de masculinidade, senão a uma posição de pacificação – renuncia a toda a demanda. Como se se estivesse determinada por um ideal de sacrifício, ascetismo e privações que faz quase desaparecer a dimensão mesma da demanda. Diz ele que Felicidade não demanda nada, não reclama nada, não parece sentir que a vida lhe deva, se manterá a distância da insatisfação que é consequencia ineludível da demanda ao pai, em troca serão deslocados a um ideal de autosuficiência.


Maristela Costa Leivas é Membro de BSFreud.

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