Página da Biblioteca Sigmund Freud

 

Pode a violência ser combatida com outra violência?

                                                                           Marisa Cherubini

                                                                                              Psicanalista

                                                                                                                   Julho/2000

  

                 Não duvido que a sociedade deva se proteger da violência. É certamente o papel dos que administram a polis fazer com que cidadãos sejam protegidos contra as ameaças da vida e dos bens. Gostaria, no entanto, de fazer algumas observações, desde o lugar psicanalítico, sobre o sentido profundo das tentativas de paralisação da violência através de instrumentos caracterizados como não-letais. Não sou contra outros modos de repressão necessários para a defesa da sociedade; gostaria, contudo, de fazer minhas considerações sobre os sintomas que se revelam nos modos “civilizados” de repressão.

                  Hoje, fala-se em armamentos não-letais no combate à violência. Trata-se de armamentos como spray de pimenta, cola imobilizadora, redes tipo alçapão, raios de microondas derrubando helicópteros, etc. São nomeados de não-letais, mas para muitos isso não se confirma, já que estes tais armamentos nomeados de não-letais, também são letais.

                  Questiono essa forma de combate à violência, no sentido de a violência também ter uma função social, isto é, denuncia o que não funciona neste social; assim, trata-se de um alarme. O uso dos armamentos não-letais é a tentativa de paralisar (calar) os indivíduos violentos, seja através de spray de pimenta, seja através de sprays de calmantes, paralisando, por exemplo, manifestações de protestos. Reconheço nessa tentativa de combate ao crime, atos de violência tão iguais ou superiores àquela tentam combater.

                   Justifico esse argumento pensando no fato de que pior que os crimes cometidos é a autorização da sociedade para o uso desses armamentos denominados não-letais. Dizer não ao crime é um direito do cidadão, mas também é um direito (e ao meu ver ainda maior) do cidadão poder reconhecer o que não funciona nesse social.

                   A revolta contra os atos de violência me parece ter alcance maior; a revolta tem como origem a sociedade que não se sustenta como tal, ou seja, sociedade origina-se de alianças, de escolhas de vida. É no fracasso dessa condição que a violência se apresenta. Hoje, as razões desse fracasso se apresentam na impossibilidade dos indivíduos se reconhecerem enquanto sujeitos pensantes. Hoje, mais que ontem eles não pensam. Nesse sentido, a criação dos armamentos não-letais vêm paralisar não só os chamados criminosos, mas também as razões dessas violências que se fazem anunciar.

                    Os armamentos não-letais fazem calar aqueles que ainda tentam reagir com seu ato. O mesmo ocorre com os “calmantes” oferecidos aos que, através da dor, falam. Os calmantes não servem somente para amenizar o sofrimento; servem também para calar aquilo que é conveniente ou, talvez, até insuportável saber; não interessa, deixa pra lá! Faz-se de conta que tudo está bem. Nega-se que algo, no encaixe da máquina, não funciona. Entendo por máquina a história privada e social disso que padece. Pergunto-me: não podemos reconhecer nessas violências a própria violência? Escutar essas violências é fazer algo falar e não simplesmente “normalizar” (calar) relações entre os homens através de meios paralisantes.

                   Uma sociedade se faz reconhecer pelos seus sintomas. Os indivíduos criadores de armamentos não-letais, de normalização, desejam na verdade transferir para o outro, no caso, o “criminoso”, o que na verdade é deles mesmos. Pode-se dizer que há uma violência indomável nesses homens desejosos de pacificação. Por serem possuidores de agressividade em suas próprias vidas transferem ao(s) outro(s) o que neles não se faz calar, pois ao(s) criminoso(s), ela está identificada.

                     Sob esse aspecto, sentindo prazer na paralisação do(s) outro(s) é como se, fantasiosamente, paralisassem também parte de suas próprias pulsões agressivas, isto é, domassem a si próprios através do(s) outro(s). 


Biblioteca on line
Biblioteca
Atividades
Página principal da BSF