Página da BIBLIOTECA SIGMUND FREUD
Introdução teórica
às funções da psicanálise em criminologia
Jacques Lacan
COMUNICAÇÃO PARA A XIII CONFERÊNCIA
DOS PSICANALISTAS DE LÍNGUA FRANCESA
EM COLABORAÇÃO COM MICHEL CÉNAC.
(29 DE MAIO DE 1950)
Publicado na Revue Française de Psychanalyse, vol. IV, nº 01,
janeiro-março de 1951, p. 07-29.
=[Este estudo de Lacan permite vislumbrar o destino
da existência humana de Caim, o fundador da consciência moral,
tema estudado cada vez mais a partir das contribuições de Szondi.]*
[...] aux confins
où la parole se démet commence le domaine de la violence[...].
LACAN, Écrits, p. 375.
Dans le schéma R, figure ici, on peut situer de i à M,
soit en a, les figures de l'autre imaginaire dans les relations d'agression
érotique où elles se réalisent.
LACAN, Écrits, p. 553.
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SECÇÃO 01: Do movimento da verdade
nas ciências do homem.
§01/ Se a teoria nas ciências físicas
nunca escapou realmente à exigência de coerência interna
que constitui o próprio movimento do conhecimento, as ciências
do homem, por se encarnarem em comportamentos na própria realidade
de seu objeto, não pode eludir a questão de seu sentido, nem
fazer com que a resposta se imponha em termos de verdade.
§02/ Que a realidade do homem implique esse
processo de revelação, eis aí um fato que fundamenta
para alguns pensar a história como uma dialética inscrita na
matéria; é inclusive uma verdade que nenhum ritual de proteção
"behaviorista" do sujeito frente a seu objeto há de castrar com sua
agudeza criadora e mortal, e que faz do próprio estudioso, devoto do
"puro" conhecimento, um responsável em primeiro grau.
§03/ Ninguém sabe disso melhor que o
psicanalista, que, no entendimento do que lhe confia seu sujeito assim como
no manejo dos comportamentos condicionados pela técnica, age por uma
revelação cuja verdade condiciona a eficácia.
§04/ Por outro lado, não seria a busca da verdade
o que constitui o objeto da criminologia na ordem das coisas judiciárias,
e também o que unifica suas duas faces: a verdade do crime em sua face
policial, a verdade do criminoso em sua face antropológica?
§05/ Em que contribuem para essa busca a técnica
que norteia nosso diálogo com o sujeito e as noções que
nossa experiência definiu em psicologia, eis o problema que constituirá
hoje nosso propósito: menos para falar de nossa contribuição
ao estudo da [127]** delinqüência - exposta nos outros relatórios
- do que para estabelecer seus limites legítimos, e por certo não
para propagar a letra de nossa doutrina sem uma preocupação
de método, mas para repensá-la, como nos é recomendado
fazer incessantemente, em função de um novo objeto.
SECÇÃO 02: Da realidade sociológica
do crime e da lei, e da relação da psicanálise com seu
fundamento dialético.
§06/ Nem o crime nem o criminoso são objetos que
se possam conceber fora de sua referência sociológica.
§07/ A máxima "é a lei que faz o pecado"
continua a ser verdadeira fora da perspectiva escatológica da Graça
em que são Paulo a formulou. =[Cf. Rom 07: 07-08: “ROM 7:7 Que
diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Contudo, eu não
conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a
concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás.
ROM 7:8 Mas o pecado, tomando ocasião, pelo mandamento operou em mim
toda espécie de concupiscência; porquanto onde não há
lei está morto o pecado.” É importante conhecer
todo esse Capítulo 07 e, melhor ainda, toda essa epístola que
tanta fortuna crítica já engendrou e continua a engendrar. Ver
adiante o § 17, onde Lacan realça o valor dessa concepção
paulina.]¨
§08/ Ela é cientificamente confirmada pela constatação
de que não há sociedade que não comporte uma lei positiva,
seja esta tradicional ou escrita, de costume ou de direito. Tampouco existe
aquela em que não apareçam no grupo todos os graus de transgressão
que definem o crime.
§09/ A pretensa obediência "inconsciente", "forçada"
ou "intuitiva" do primitivo à regra do grupo é uma concepção
etnológica, fruto de uma insistência imaginária que lançou
seu reflexo sobre muitas outras concepções das "origens", porém
tão mítica quanto elas.
§10/ Toda sociedade, por fim, manifesta a relação
do crime com a lei através de castigos cuja realização,
sejam quais forem suas modalidades, exige um assentimento subjetivo. Quer
o criminoso, com efeito, se constitua ele mesmo no executor da punição
que a lei dispõe como preço do crime - como no caso do incesto
cometido nas ilhas Trobriand entre primos matrilineares, e cujo desfecho Malinowski
nos relata em seu livro, capital nessa matéria, sobre O crime e
o costume nas sociedades selvagens (e não importam as motivações
psicológicas em que se decompõe a razão do ato, nem
tampouco as oscilações de vendeta que as maldições
do suicida podem gerar no grupo) -, quer a sanção prevista
por um código penal comporte um processo que exija aparelhos sociais
muito diferenciados, esse assentimento subjetivo é necessário
à própria significação da punição.
[128]**
§11/ As crenças mediante as quais essa punição
se motiva no indivíduo, assim como as instituições pelas
quais ela passa ao ato no grupo, permitem-nos definir numa dada sociedade
aquilo que designamos, na nossa, pelo termo responsabilidade. =[Como harmonizar
a concepção de responsabilidade com a determinação
do inconsciente, se o sujeito do inconsciente não pode escolher entre
ser ou não ser sujeito do inconsciente?]*
§12/ Mas, é preciso que a entidade responsável
seja sempre equivalente. Digamos que se, primitivamente, é a sociedade
em seu conjunto (sempre fechado, em princípio, como realçaram
os etnólogos) que é considerada afetada, pelo fato de que um
de seus membros deva ser restabelecido de um desequilíbrio, esse membro
é tão pouco responsável como indivíduo que, muitas
vezes, a lei exige satisfações à custa ou bem de um dos
defensores ou bem da coletividade de um "in-group" que o encobre.
§13/ Ocorre até que a sociedade se considere tão
alterada em sua estrutura que recorre a processos de exclusão do mal
sob a forma de um bode expiatório, ou então de regeneração
através de um recurso externo. Responsabilidade coletiva ou mística
da qual nossos costumes trazem os vestígios, quando não tenta
vir novamente à luz por meios invertidos.
§14/ Mas, também nos casos em que a punição
limita-se a atingir o indivíduo fautor do crime, não é
na mesma função nem, se quisermos, na mesma imagem dele mesmo
que ele é tido como responsável, o que fica evidente ao refletirmos
sobre a diferença da pessoa que tem que responder por seus atos conforme
seu juiz represente o Santo Ofício ou presida o Tribunal do Povo.
§15/ É aí que a psicanálise, pelas
instâncias que distingue no indivíduo moderno, pode esclarecer
as vacilações da noção de responsabilidade em
nossa época e o advento correlato de uma objetivação
do crime para a qual ela pode colaborar.
§16/ Pois, com efeito, se em razão de
limitar ao indivíduo a experiência que ela constitui, ela não
pode ter a pretensão de apreender a totalidade de qualquer objeto
sociológico, nem tampouco o conjunto das motivações atualmente
em ação em nossa sociedade, persiste o fato de que ela descobriu
tensões relacionais que parecem desempenhar em todas as sociedades
uma função basal, como se o mal-estar da civilização
desnudasse a própria articulação da cultura com a natureza.
Podemos estender suas equações, com a ressalva de efetuar sua
transformação correta, às ciências do homem que
podem utilizá-las e, especialmente, como veremos, à criminologia.
[129]
§17/ Acresce que, se o recurso à confissão
do sujeito, que é uma das chaves da verdade criminológica, e
a reintegração na comu¬nidade social, que é uma das
finalidades de sua aplicação, parecem encontrar uma forma privilegiada
no diálogo analítico, isso se dá, antes de mais nada,
porque, podendo ser levado às significações mais radicais,
esse diálogo aproxima-se do universal que está incluído
na linguagem e que, longe de podermos eliminá-lo da antropologia,
constitui seu fundamento e seu fim, pois a psicanálise é apenas
uma extensão técnica que explora no indivíduo o alcance
da dialética que escande as produções de nossa sociedade
e onde a máxima pauliniana recupera sua verdade absoluta. =[Então,
se prestaste bem atenção ao que se diz no 07, agora podes
ver que Lacan, mutatis mutandis se alinha à concepção
paulina.]*
§18/ A quem nos perguntar aonde nos leva tal colocação,
respon¬deremos, com o risco gratamente assumido de descartar a jactância
clínica e o farisaísmo preventivo, remetendo-o a um dos diálogos
que nos relatam os atos do herói da dialética e, em especial,
ao Górgias, cujo subtítulo, invocando a retórica
e bem feito para distrair a incultura contemporânea, contém um
verdadeiro tratado do movimento do Justo e do Injusto.
§19/ Ali, Sócrates refuta a enfatuação
do Mestre/Senhor, encarnado num homem livre dessa polis antiga cujo limite
é dado pela realidade do Servo. Forma que abre caminho para o homem
livre da Sabedoria, ao reconhecer o absoluto da Justiça nela estabelecido
em virtude da simples linguagem, sob a maiêutica do Interlocutor. Assim,
Sócrates, não sem fazê-lo aperceber-se da dialética,
tão sem fundo quanto o tonel das Danaides, das paixões do poder,
nem poupá-lo de reconhecer a lei de seu próprio ser político
na injustiça da pólis, acaba por incliná-lo ante os mitos
eternos em que se exprime o sentido do castigo, da emenda para o indivíduo
e do exemplo para o grupo, muito embora ele próprio, em nome do mesmo
universal, aceite o destino que lhe cabe e se submeta de antemão ao
veredicto insensato da polis que o fez homem.
§20/ Nada há de inútil, com efeito, em lembrar
o momento histórico em que nasceu uma tradição que condicionou
o aparecimento de todas as nossas ciências e na qual se afirmou o pensamento
do iniciador da psicanálise, quando ele proferiu com uma confiança
patética: "A voz do intelecto é baixa, mas não pára
enquanto não se faz ouvida" - onde cremos ouvir, num eco abafado,
a própria voz de Sócrates dirigindo-se a Cálicles: "A
filosofia diz sempre a mesma coisa." [130]
SECÇÃO 03: Do crime que exprime o simbolismo
do supereu como instância psicopatológica: se a psicanálise
irrealiza o crime, ela não desumaniza o criminoso.
§21/ Se nem sequer podemos captar a realidade concreta
do crime sem referi-lo a um simbolismo cujas formas positivas coorde¬nam-se
na sociedade, mas que se inscreve nas estruturas radicais que a linguagem
transmite inconscientemente, esse simbolismo foi também o primeiro
sobre o qual a experiência psicanalítica demonstrou, através
de efeitos patogênicos, a que limites até então desconhecidos
ele repercute no indivíduo, tanto em sua fisiologia quanto em sua conduta.
§22/ Assim, foi partindo de uma das significações
de relação que a psicologia das "sínteses mentais" recalcava
ao máximo em sua reconstrução das funções
individuais que Freud inaugurou a psicologia que se reconheceu bizarramente
como sendo a das profundezas, sem dúvida em razão do alcance
totalmente superficial daquilo cujo lugar ela tomou.
§23/ Esses efeitos, dos quais ela descobriu o sentido,
ela os designou audaciosamente pelo sentimento que lhes é correspondente
na vivência: a culpa.
§24/ Nada poderia manifestar melhor a importância
da revolução freudiana do que o uso técnico ou vulgar,
implícito ou rigoroso, confesso ou sub-reptício, que é
feito em psicologia dessa verdadeira categoria onipresente desde então,
de tão desconhecida que era - nada, a não ser os estranhos esforços
de alguns para reduzi-la a formas "genéticas" ou "objetivas", trazendo
a garantia de um experimentalismo "behaviorista" que há muito se haveria
calado, caso se abstivesse de ler nos fatos humanos as significações
que os especificam como tais.
§25/ E mais, a primeira situação,
cuja noção ainda somos devedores à iniciativa freudiana
por tê-la introduzido em psicologia para que ela ali obtivesse, no correr
do tempo, o mais prodigioso sucesso - primeira situação, dizemos,
não como confronto abstrato esboçando uma relação,
mas como crise dramática que se resolve como estrutura -, é
justamente a do crime em suas duas formas mais abominadas, o Incesto e o Parricídio,
cuja sombra engendra toda a patogênese do Édipo.
§26/ E concebível que, havendo recebido na psicologia
tamanha contribuição do social, o médico Freud tenha
ficado tentado a [129] lhe fazer algumas retribuições
e que, com Totem e tabu, em 1912, tenha querido demonstrar no crime
primordial a origem da Lei universal. Não importa a que crítica
de método esteja sujeito esse trabalho, o importante foi que ele reconheceu
que com a Lei e o Crime começava o homem, depois de o clínico
haver mostrado que suas significações sustentavam inclusive
a forma do indivíduo, não apenas em seu valor para o outro,
mas também em sua ereção para si mesmo.
§27/ Assim veio à luz a concepção do supereu,
inicialmente fundamentada em efeitos de censura inconsciente que explicavam
estruturas psicopatológicas já identificadas, logo depois esclarecendo
as anomalias da vida cotidiana e, por último, correlata à descoberta
de uma morbidez imensa, ao mesmo tempo que de seus móveis psicogenéticos:
a neurose de caráter, os mecanismos do fracasso, as impotências
sexuais, "der gehemmte Mensch".
§28/ Revelou-se assim uma imagem moderna ao homem que contrastava
estranhamente com as profecias dos pensadores do fim do século, imagem
tão derrisória para as ilusões alimentadas pelos libertários
quanto para as inquietações inspiradas nos moralistas pela emancipação
das crenças religiosas e pelo enfraquecimento dos laços tradicionais.
À concupiscência que reluzia nos olhos do velho Karamazov quando
ele interrogava seu filho - "Deus está morto, agora tudo é
permitido" -, esse homem, o mesmo que sonha com o suicídio niilista
do herói de Dostoievski ou se obriga a encher a lingüiça
nietzschiana, res¬ponde com todos os seus males e com todos os seus gestos:
-"Deus está morto, nada mais é permitido."
§29/ Esses males e esses gestos, a significação da
autopunição os abrange a todos. Caberá então estendê-la
a todos os criminosos, na medida em que, segundo a fórmula pela qual
se exprime o humor glacial do legislador, como ninguém pode alegar
desconhecer a lei, qualquer um pode prever sua incidência e deve, portanto,
ser tido como procurando seu castigo? =[Esse princípio, continua
sendo um paradoxo ético para todo o cidadão: a ninguém
é dado desoconhecer a lei!]*
§30/ Esse comentário irônico deve, ao nos obrigar a
definir o que a psicanálise reconhece como crimes ou delitos provenientes
do supereu, permitir-nos formular uma crítica do alcance dessa
noção em antropologia.
§31/ Reportemo-nos às notáveis observações
princeps pelas quais Alexander e Staub introduziram a psicanálise
na criminologia. Seu teor é convincente, quer se trate de "tentativa
de homicídio [132] de um neurótico", quer dos furtos
singulares do estudante de medicina que não sossegou enquanto não
se fez aprisionar pela polícia berlinense, e que, em vez de adquirir
o diploma a que seus conhecimentos e seus dons reais lhe davam direito, preferia
exercê-los infringindo a lei, quer se trate ainda do "possesso das viagens
de automóvel". Releiamos também a análise que fez a
sra. Marie Bonaparte do caso da sra. Lefebvre: a estrutura mórbida
do crime ou dos delitos é evidente: o caráter forçado
destes na execução, sua estereotipia quando eles se repetem,
o estilo provocador da defesa ou da confissão, a incompreensibilidade
dos motivos, tudo confirma a “coação por uma força a
que o sujeito não pôde resistir”, e os juízes de todos
esses casos concluíram nesse sentido.
§32/ @[Essas condutas, no entanto, tornam-se perfeitamente
claras à luz da interpretação edipiana. Mas o que as
distingue como mórbidas é seus caráter simbólico.
Sua estrutura psicopatológica não está, de modo algum,
na situação criminal que elas exprimem, mas no modo irreal
dessa expressão.]***
§33/ Para nos fazermos compreender até o fim, contrastemos
com elas um fato que, apesar de constante nos anais dos exércitos,
adquire toda a sua importância do modo, ao mesmo tempo muito extenso
e seletivo dos elementos associais, pelo qual se efetua há mais de
um século, em nossas populações, o recrutamento dos defensores
da pátria ou da ordem social, qual seja, o gosto que se manifesta
na coletividade assim formada, no dia de glória que a põe em
contato com seus adversários civis, pela situação que
consiste em violar uma ou várias mulheres na presença de um
macho, de preferência idoso e previamente reduzido à impotência,
sem que nada leve a presumir que os indivíduos que a realizam se distingam,
antes ou depois, como filhos ou maridos, como pais ou cidadãos, da
moralidade normal. Fato simples, que bem podemos qualificar de fait divers,
pela diversidade do crédito que lhe é atribuído conforme
sua fonte, e até, propriamente falando, de divertido, pelo material
que essa diversidade oferece às propagandas. =[???]*
§34/ Dizemos que há nisso um crime real, embora ele seja
praticado precisamente numa forma edipiana, e o fautor seria justificadamente
castigado se as condições heróicas em que se considera
que tenha sido realizado não fizessem, na maioria das vezes, com que
a responsabilidade fosse assumida pelo grupo que encobre o indivíduo.
[133]**
§35/ @[Reencontramos, pois, as fórmulas límpidas que
a morte de Mauss traz de novo à luz de nossa atenção:
as estruturas da sociedade são simbólicas; o indivíduo,
na medida em que é normal, serve-se delas em condutas reais; na medida
em que é psi¬copata, exprime-as por condutas simbólicas.]
=[Intuição genial que Lacan relaciona enquanto REAL e
SIMBÓLICO, como uma concepção lacaniana avant la lettre.]*
§36/ Mas é evidente que o simbolismo assim expresso só
pode ser parcelar, ou, quando muito, pode-se afirmar que ele marca o ponto
de ruptura ocupado pelo indivíduo na rede das agregações
sociais. A manifestação psicopática pode revelar a estrutura
da falha, mas essa estrutura só pode ser tomada por um elemento na
exploração do conjunto.
§37/ Eis por que as tentativas sempre renovadas e sempre falaciosas
de fundamentar na teoria analítica noções como as de
personalidade modal, caráter nacional ou supereu coletivo
devem por nós ser dela distinguidas com o máximo rigor. Compreende-se,
é claro, a atração que uma teoria que deixa transparecer
de maneira tão sensível a realidade humana exerce sobre os pioneiros
de campos da mais incerta objetivação; acaso não ouvimos
um eclesiástico, cheio de boa vontade, prevalecer-se perante nós
de sua intenção de aplicar os dados da psicanálise ao
simbolismo cristão? =[De que cristão Lacan está falando?
Seria Pfister?] Para cortar pela raiz essas extrapolações indevidas,
basta sempre referir novamente a teoria à experiência.
§38/ É nisso que o simbolismo, doravante reconhecido na primeira
ordem de delinqüência que a psicanálise isolou como psicopatológica,
deve permitir-nos precisar, em extensão e em com¬preensão,
a significação social do edipianismo, bem como criticar o alcance
da noção de supereu para o conjunto das ciências
do homem.
§39/ Ora, em sua maior parte, senão em sua totalidade, os
efeitos psicopatológicos em que se revelaram as tensões oriundas
do edipianismo, não menos do que as coordenadas históricas que
impuseram esses efeitos ao talento investigativo de Freud, permitem-nos pensar
que eles exprimem uma deiscência =[abertura] do grupo familiar no seio
da sociedade. Essa concepção, que se justifica pela redução
cada vez mais estreita desse grupo à sua forma conjugal, e pela conseqüência
que se segue do papel formador cada vez mais exclusivo que lhe é reservado
nas primeiras identificações da criança e na aprendizagem
das primeiras disciplinas, explica o aumento do poder captador desse grupo
sobre o indivíduo, na medida mesma do declínio de seu poder
social. [134] =[O livro de Philippe Julien, Abandonarás teu pai
e tua mãe, faz ressoar o tempo todo essa concepção de
Lacan.]*
§40/ Evoquemos apenas, para fixar as idéias, o fato de que,
numa sociedade matrilinear como a dos Zuni ou dos Hopi, os cuidados com a
criança, a partir do momento de seu nascimento, cabem por direito à
irmã de seu pai, o que a inscreve, desde que ela vem à luz,
num duplo sistema de relações parentais, que se enriquecerão
a cada etapa de sua vida por uma crescente complexidade de relações
hierarquizadas.
§41/ Está portanto superado o problema de comparar as vantagens
que pode apresentar, para a formação de um supereu suportável
para o indivíduo, uma certa pretensa organização matriarcal
da família, em relação ao triângulo clássico
da estrutura edipiana. A experiência deixou patente, doravante, que
esse triângulo é apenas a redução ao grupo natural,
efetuada por uma evolução histórica, de uma formação
em que a autoridade reservada ao pai, único traço subsistente
de sua estrutura original, mostra-se, de fato, cada vez mais instável
ou obsoleta, e as incidências psicopatológicas dessa situação
devem ser referidas tanto à escassez das relações grupais
que ela assegura ao indivíduo quanto à ambivalência cada
vez maior de sua estrutura.
§42/ Essa concepção confirma-se pela noção
de delinqüência latente a que Aichhorn foi conduzido, ao aplicar
a experiência analítica aos jovens de quem estava encarregado
a título de uma jurisdição especial. Sabemos que Kate
Friedlander elaborou dela uma concepção genética, sob
a rubrica do "caráter neurótico", e também que os críticos
mais informados, desde o próprio Aichhom até Glover, pareceram
surpreender-se com a incapaci¬dade da teoria de distinguir a estrutura
desse caráter, enquanto criminogênica, da estrutura da neurose,
onde as tensões perma¬necem latentes nos sintomas.
§43/ A colocação aqui trabalhada permite entrever
que o "caráter neurótico" é o reflexo, na conduta individual,
do isolamento do grupo familiar, cuja posição associal esses
casos sempre demons¬tram, ao passo que a neurose exprime, antes, suas
anomalias estruturais. Aliás, o que exige uma explicação
é menos a pas¬sagem ao ato delituoso, num sujeito encerrado no
que Daniel Lagache qualificou, muito justificadamente, de conduta imagi¬nária,
do que os processos pelos quais o neurótico adapta-se parcialmente
ao real: trata-se, como sabemos, dessas mutilações autoplásticas
que podemos reconhecer na origem dos sintomas. [133] =[Que texto de Lagache
é aquí objeto de referencia de Lacan?]*
§44/ Essa referência sociológica do "caráter
neurótico" concorda, de resto, com a gênese que dele fornece
Kate Friedlander, se é exato resumi-la como a repetição,
através da biografia do sujeito, das frustrações pulsionais
que estariam como que detidas num curto-circuito na situação
edipiana, sem nunca mais se engajar numa elaboração estrutural.
§45/ @[A psicanálise, em sua apreensão dos crimes
determinados pelo supereu, tem como efeito, portanto, irrealizá-los.
No que se harmoniza com um obscuro reconhecimento que há muito se
impôs aos melhores dentre aqueles a quem coube assegurar a aplicação
da lei.]***
§46/ Aliás, as vacilações registradas na consciência
social ao longo de todo o século XIX, quanto à questão
do direito de punir, são características. Seguro de si e até
implacável, desde que apareça uma motivação utilitária
- a ponto de o uso inglês da época tomar o pequeno delito, até
mesmo de furto, que desse ensejo a um homicídio, como equivalente à
premeditação que define o assassinato (cf. Alimena, La
premeditazione) -, o pensamento dos penalogistas hesita diante do crime
em que surgem instintos cuja natureza escapa ao registro utilitarista no
qual se manifesta o pensamento de um Bentham.
§47/ Uma primeira resposta foi dada pela concepção
lombrosiona nos primórdios da criminologia, considerando esses instintos
atávicos e fazendo do criminoso um sobrevivente de uma forma arcaica
da espécie, biologicamente isolável. Resposta da qual podemos
dizer que trai sobretudo uma regressão filosófica muito mais
real em seus autores, e cujo sucesso só pode explicar-se pelas satisfações
que a euforia da classe dominante podia exigir, tanto para seu conforto intelectual
quanto para sua consciência pesada.
§48/ Havendo as calamidades da Primeira Guerra Mundial marcado o
fim dessas pretensões, a teoria lombrosiana foi devolvida aos tempos
d'antanho, e o mais simples respeito pelas condições apropriadas
a qualquer ciência humana, as quais julgamos ter que relembrar em nosso
exórdio, impôs-se até mesmo ao estudo do criminoso.
§49/ The Individual Offender, de Healy, marcou época
no retorno aos princípios, instituindo antes de mais nada o de que
esse estudo devia ser monográfico. Os resultados concretos trazidos
pela psicanálise marcam uma outra época, tão decisiva
pela [136] confirmação doutrinária que eles dão
a esse princípio quanto pela amplitude dos fatos valorizados.
§50/ @[Do mesmo modo, a psicanálise soluciona um dilema da
teoria criminológica: ao irrealizar o crime, ela não desumaniza
o criminoso.]***
§51/ @[Mais ainda, pela mola da transferência ela dá
acesso ao mundo imaginário do criminoso, que pode ser para ele a porta
aberta para o real.]***
§52/ Observem-se aqui a manifestação espontânea
dessa mola na conduta do criminoso e a transferência que tende a se
produzir para a pessoa de seu juiz, da qual seria fácil colher provas.
Citemos apenas, pela beleza do fato, as confidências do chamado Frank
ao psiquiatra Gilbert, encarregado da boa apresentação dos réus
no processo de Nuremberg: esse Maquiavel derrisório, e neurótico
a tal ponto que a ordem insensata do fascismo confiou-lhe suas grandes obras,
sentia o remorso agitar sua alma ante a simples aparência de dignidade
encarnada na figura de seus juízes, particularmente a do juiz inglês,
"tão elegante", em suas palavras.
§53/ Os resultados obtidos com "grandes" criminosos por Melitta
Schmideberg, embora sua publicação esbarre no obstáculo
com que deparam todas as nossas análises, mereceriam ser acompanhados
em sua catamnese. =[follow-up]*
§54/ Seja como for, os casos que decorrem claramente do edipianismo
deveriam ser confiados ao analista, sem nenhuma das limitações
que podem entravar sua ação.
§55/ Como não fazer a experiência inteira disso, quando
a penalogia justifica-se tão mal que repugna à consciência
popular aplicá-la até mesmo aos crimes reais, como se
vê no célebre caso, na América, relatado por Grotjahn
em seu artigo" Searchlights on delinquency", onde se vê o júri
absolver os acusados, para entusiasmo do público, embora todas as acusações
parecessem incriminá-los na prova do assassinato, simulado de acidente
marítimo, dos pais de um deles?
§56/ Concluamos estas considerações completando as
conseqüências teóricas que decorrem da utilização
da noção de supereu. O supereu,
diremos, deve ser tomado como uma manifestação individual, ligada
às condições sociais do edipianismo. Assim é que
as tensões criminosas incluídas na situação familiar
só se tornam patogênicas nas sociedades onde essa própria
situação se desintegra. [137]
§57/ Nesse sentido, o supereu revela a tensão, tal
como a doença às vezes esclarece uma função na
fisiologia.
§58/ Mas, nossa experiência dos efeitos do supereu,
assim como 'a observação direta da criança à luz
dessa experiência, revela-nos seu surgimento num estádio tão
precoce que ele parece ser contemporâneo ou mesmo
anterior ao surgimento do eu.
§59/ @[Melanie Klein afirma as categorias do Bom e do Mau no estádio
infans do comportamento, levantando o problema da implicação
retroativa das significações numa etapa anterior ao surgimento
da linguagem. Sabemos como seu método, manejando, sem levar em conta
nenhuma objeção, as tensões do edipia¬nismo numa
interpretação ultraprecoce das intenções da criança
pequena, desatou esse nó pela ação, não sem provocar
discussões apaixonadas em torno de suas teorias.]*** =[Lacan conhece
bem Melanie Klein.]*
§60/ O fato é que a persistência imaginária
dos bons e maus objetos primordiais, em comportamentos de fuga que podem
colocar o adulto em conflito com suas responsabilidades, levaria o supereu
a ser concebido como uma instância psicológica que, no homem,
tem uma significação genérica. Essa noção,
no entanto, nada tem de idealista; ela se inscreve na realidade da miséria
fisiológica própria dos primeiros meses de vida do homem, na
qual um de nós insistiu, e exprime a dependência do homem, genérica
de fato em relação ao meio humano.
§61/ Que essa dependência possa surgir como significante no
indivíduo, num estádio incrivelmente precoce de seu desenvol¬vimento,
não é um fato diante do qual o psicanalista deva recuar.
§62/ Se nossa experiência com os psicopatas levou-nos à
articulação da natureza com a cultura, nela descobrimos essa
instância obscura, cega e tirânica que parece ser a antinomia,
no pólo biológico do indivíduo, do ideal do Dever puro
que o pensamento kantiano coloca como contraparte da ordem incorruptível
do céu estrelado.
§63/ Sempre pronta a emergir da desordem das categorias sociais,
"para recriar, segundo a bela expressão de Hesnard, o Universo mórbido
da falta [faute], essa instância só é apreensível,
contudo, no estado psicopático, isto é, no indivíduo.
=[Todavia essa expressão “universo mórbido da falta” vai
ser usada de outra maneira no Seminário, Livro 01!]*
§64/ Nenhuma forma do supereu, portanto, é passível
de ser inferida do indivíduo para uma dada sociedade. E o único
supereu coletivo que se pode conceber exigiria uma desagregação
molecular integral da sociedade. É verdade que o entusiasmo em que
vimos [138] toda uma juventude sacrificar-se por ideais de nada faz-nos entrever
sua realização possível no horizonte de fenômenos
sociais de massa que assim suporiam uma escala universal.
SECÇÃO 04: Do crime em suas relações com
a realidade do criminoso: se a psicanálise fornece sua medida, ela
indica seu móvel social fundamental.
§65/ A responsabilidade, isto é, o castigo, é uma
característica essencial da idéia do homem que prevalece numa
dada sociedade.
§66/ Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais
utilitários, empenhada como está no movimento acelerado da produção,
nada mais pode conhecer da significação expiatória do
castigo. Se ela conserva seu peso exemplar, é tendendo a absorvê-lo
em seu fim correcional. E além do mais, este muda imperceptivelmente
de objeto. Os ideais do humanismo se resolvem no utilitarismo do grupo. E,
como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais,
completamente seguro da justiça dos funda¬mentos de seu poder,
ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem igualmente a revolta
dos explorados e a consciência pesada dos exploradores, para os quais
a noção de castigo tornou-se igualmente insuportável.
A antinomia ideológica reflete, aqui como em outros aspectos, o mal-estar
social. Ela agora busca sua solução numa formulação
científica do problema, isto é, numa análise psiquiátrica
do criminoso a que deve reportar-se, após examinar todas as medidas
de prevenção contra o crime e de proteção contra
sua recidiva, o que podemos designar como uma concepção sanitária
da penalogia.
§67/ Essa concepção supõe resolvidas as relações
do direito com a violência e o poder de uma polícia universal.
Com efeito, nós vimos a consideração que recebeu em Nuremberg
e, embora o efeito sanitário desse processo continue duvidoso, no
tocante à supressão dos males sociais que ele pretendia reprimir,
o psiquiatra não poderia ter-lhe faltado, por razões de "humanidade"
que podemos ver que decorrem mais do respeito pelo objeto humano que da noção
do próximo.
§68/ À evolução do sentido do castigo corresponde,
com efeito, uma evolução paralela da formação
da prova do crime. [139]**
§69/ Começando nas sociedades religiosas pelo ordálio
ou pela prova do juramento, em que ou se designa o culpado a partir das motivações
das crenças ou ele oferece seu destino ao julga¬mento de Deus,
a formação da prova, à medida que se precisa a personalidade
jurídica do indivíduo, exige cada vez mais seu compromisso com
a confissão. Por isso é que toda a evolução humanista
do Direito na Europa, que começa com a redescoberta do Direito romano
na Escola de Bolonha e vai até a completa captação da
justiça pelos jurisconsultos reais e a universalização
da noção de direito das nações (01), é
estritamente correlata, no tempo e no espaço, da difusão da
tortura, igualmente inaugurada em Bolonha como meio de formação
da prova do crime. Fato cujo alcance até hoje não parece ter
sido considerado.
__________
01: Jus gentium: a expressão designava outrora
o direito vigente em Roma e nos países submetidos à sua jurisdição;
hoje, aplica-se ao direito internacional. (N.E.)
§70/ É que o desprezo da consciência que se manifesta
no ressurgimento geral dessa prática como método de opressão
oculta-nos que fé ele supõe no homem como procedimento de aplicação
da justiça.
§71/ Se foi no exato momento em que nossa sociedade promulgou os
direitos do homem, ideologicamente baseados na abstração de
seu ser natural, que a tortura foi abandonada em seu uso jurídico,
isso não se deu em razão de um abrandamento dos costumes, difícil
de sustentar na perspectiva histórica que temos da realidade social
do século XIX; pois esse novo homem, abstraído de sua consistência
social, já não é digno de crédito, nem
em um nem no outro sentido desse termo; ou seja, já não estando
ele sujeito a pecar, não se pode dar crédito à sua existência
como criminoso, nem tampouco, do mesmo modo, à sua confissão.
Desde então, é preciso que haja seus motivos, com os móveis
do crime, e esses motivos e esses móveis devem ser compreensíveis,
e compreensíveis para todos, o que implica - como o formulou uma das
melhores mentes dentre aquelas que tentaram repensar a "filosofia penal" em
sua crise, e isto com uma retidão sociológica digna de fazer
com que se reveja um esquecimento injusto, estamo-nos referindo a Tarde -
o que implica, diz ele, duas condições para a plena remonsabilidade
do sujeito: a similitude social e a identidade pessoal. [140]
§72/ Portanto, está aberta ao psicólogo a porta do
pretório, e o fato de ele só raramente aparecer ali em pessoa
prova tão-somente a carência social de sua função.
§73/ A partir desse momento, a "situação de réu",
para empregar a expressão de Roger Grenier, já não pode
ser descrita senão como o encontro de verdades inconciliáveis,
como fica patente ao se assistir ao menor processo do Tribunal do Júri
em que um perito seja chamado a depor. É flagrante a falta de um denomi¬nador
comum entre as referências sentimentais em que se con¬frontam o
ministério público e o advogado, por serem as do júri,
e as noções objetivas que o perito traz, mas que, pouco dialético,
não consegue fazer apreender, por não conseguir com elas obter
uma conclusão de irresponsabilidade.
§74/ E podemos ver essa discordância, no espírito do
próprio perito, voltar-se contra sua função num ressentimento
que se manifesta com prejuízo de seu dever; pois já houve o
caso de um perito junto ao Tribunal que se recusou a qualquer outro exame,
afora o físico, de um réu aliás manifestamente válido
sob o aspecto mental, entrincheirando-se atrás do Código sob
a alegação de que não tinha que chegar a uma conclusão
sobre a realidade do ato imputado ao sujeito pelo inquérito policial,
embora uma perícia psiquiátrica o advertisse expressamente de
que um simples exame por esse ponto de vista demonstrava com certeza que o
ato em questão era de pura aparência e que, como gesto de repetição
obsessiva, não podia constituir, no local fechado, embora vigiado,
em que se havia produzido, um delito de exibicionismo.
§75/ Ao perito, no entanto, é conferido um poder quase discricio¬nário
na dosagem da pena, por menos que ele se sirva do adendo acrescentado pela
lei, para sua utilização, ao artigo 64 do Código.
§76/ Mas, com o simples instrumento desse artigo, ainda que ele
não possa responder sobre o caráter coercitivo da força
que acarretou o ato do sujeito, ao menos pode descobrir quem sofreu
essa coerção.
§77/ A essa pergunta, porém, só o psicanalista pode
responder, na medida em que só ele tem uma experiência dialética
do sujeito.
§78/ Observe-se que um dos primeiros elementos cuja autonomia psíquica
essa experiência o ensinou a apreender, ou seja, o que a teoria aprofundou
progressivamente como representando a instância do eu, é também
aquilo que, no diálogo analítico, é [141] declarado pelo
sujeito como sendo dele mesmo, ou, mais exatamente, aquilo que, tanto por
seus atos quanto por suas intenções, possui a declaração
do sujeito. Ora, dessa declaração Freud reconheceu a forma que
é mais característica da função que ela representa:
é a Verneinung, a denegação.
§79/ Poderíamos descrever aqui toda uma semiologia das formas
culturais pelas quais se comunica a subjetividade, a começar pela restrição
mental característica do humanismo cristão – e que se recriminou
tanto àqueles admiráveis moralistas que foram os jesuítas
por haverem codificado seu uso - continuando pelo Kêtman, uma espécie
de exercício de proteção contra a verdade que Gobineau
nos indica ser geral, em seus relatos tão penetrantes sobre a vida
social do Oriente Médio, e passando para o Jang, cerimonial das recusas
que a polidez chinesa estabelece como graus no reconhecimento do outro, para
reconhecer a forma mais característica de expressão do sujeito
na sociedade ocidental, no protesto de inocência, e dizer que a sinceridade
é o primeiro obstáculo encontrado pela dialética na
busca das verdadeiras intenções, parecendo o uso primário
da fala ter por fim disfarçá-las.
§80/ Mas, esse é apenas o afloramento de uma estrutura que
se encontra através de todas as etapas da gênese do eu, e mostra
que a dialética fornece a lei inconsciente das formações,
mesmo as mais arcaicas, do aparelho de adaptação, assim confirmando
a gnoseologia de Hegel, que formula a lei geradora da realidade no processo
tese-antítese-síntese. E decerto é instigante ver os
marxistas se esforçarem por descobrir, no progresso das noções
essencialmente idealistas que constituem as matemáticas, os vestígios
imperceptíveis desse processo, e desconhecerem sua forma ali onde ela
deve com mais probabilidade aparecer, isto é, na única psicologia
que manifestamente toca no concreto, por menos que sua teoria se declare
guiada por essa forma.
§81/ É ainda mais significativo reconhecê-la na sucessão
das crises - desmame, intrusão, Édipo, puberdade, adolescência
- que reformulam, cada uma delas, uma nova síntese dos aparelhos do
eu, numa forma cada vez mais alienante para as pulsões
que ali são frustradas, e cada vez menos ideal para as que ali encontram
sua normalização. Essa forma é produzida pelo fenômeno
psíquico mais fundamental, talvez, que a psicanálise descobriu:
a identificação, cujo poder formativo revela-se até na
biologia. E [142] cada um dos chamados períodos de latência
pulsional (cuja série correspondente é complementada pelo que
Franz Wittels descobriu quanto ao ego adolescente) é caracterizado
pelo predomínio de uma estrutura típica dos objetos do desejo.
§82/ Um de nós descreveu, na identificação
do sujeito infans com a imagem especular, o modelo que ele considera
mais significativo, ao mesmo tempo que o momento mais original da relação
fundamentalmente alienante em que o ser do homem se constitui . dialeticamente.
=[Lacan cita ele mesmo no que concerne à teoria do estádio do
espelho.]
§83/ Ele demonstrou também que cada uma dessas identificações
desenvolve uma agressividade que a frustração pulsional não
basta para explicar, a não ser na compreensão do common sense,
tão cara ao sr. Alexander, mas que exprime a discordância que
se produz na realização alienante: fenômeno cuja noção
podemos exemplificar através da forma caricata que dele fornece a
experiência com animais na ambigüidade crescente (como a de uma
elipse para um círculo) de sinais inversamente condicionados. =[Refere-se
aqui, novamente, à rivalidade, enquanto manifestação
da agressividade psíquica.]*
§84/ Essa tensão manifesta a negatividade dialética
inscrita nas próprias formas em que se entranham no homem as forças
da vida, e podemos dizer que o talento de Freud deu a medida dela ao reconhecê-la
como "pulsão do eu" sob o nome de instinto de morte.
§85/ Toda forma do eu encarna, com efeito, essa negatividade, e
podemos dizer que se Clotó, Láquesis e Átropos partilham
entre si o cuidado com nosso destino, é de comum acordo que elas torcem
o fio de nossa identidade.
§86/ @[Assim, como a tensão agressiva ao integrar a pulsão
frustrada cada vez que a falta de adequação do "outro" faz abortar
a identificação resolutiva, ela determina com isso um tipo
de objeto que se torna criminogênico na suspensão da dialética
do eu.]***
§87/ Foi da estrutura desse objeto que um de nós tentou mostrar
o papel funcional e a correlação com o delírio em duas
formas extremas de homicídio paranóico, o caso "Aimée"
e o das irmãs Papin. Este último caso comprova que só
o analista pode demonstrar, contrariando o sentimento comum, a alienação
da realidade do criminoso, num caso em que o crime dá a ilusão
de responder a seu contexto social.
§88/ São também essas estruturas do objeto que Anna
Freud, Kate Friedlander e Bowlby determinam, como analistas, nos casos de
furto em jovens delinqüentes, conforme neles se manifeste o [143]
simbolismo do dom do excremento ou a reivindicação edipiana,
a frustração da presença nutriz ou a da masturbação
fálica - e a noção de que essa estrutura corresponde
a um tipo de realidade que determina os atos do sujeito guia a parte que eles
chamam de educativa em sua conduta para com eles.
§89/ @[Educação que é, antes, uma dialética
viva, segundo a qual o educador, através de seu não-agir, leva
as agressões próprias ao eu a se ligarem para o sujeito, alienando-se
em suas relações com o outro, para que ele possa então
desligá-las através das manobras da análise clássica.]***
§90/ E, certamente, a engenhosidade e a paciência que admiramos
nas iniciativas de um pioneiro como Aichhorn não fazem esquecer que
sua forma tem que ser sempre renovada, para superar as resistências
que o “grupo agressivo’ não pode deixar de manifestar contra qualquer
técnica aceita.
§91/ Tal concepção da ação" correcional"
opõe-se a tudo o que possa inspirar uma psicologia que se rotula de
genética, a qual, na criança, só faz medir suas aptidões
decrescentes para responder às perguntas que lhe são feitas
no registro puramente abstrato das categorias mentais do adulto, e que basta
para derrubar a simples apreensão do fato primordial de que a criança,
desde suas primeiras manifestações de linguagem, serve-se da
sintaxe e das partículas de acordo com nuances que os postulados da
“gênese” mental só deveriam permitir-lhe atingir no auge de uma
carreira de metafísico.
§92/ E já que essa psicologia pretende atingir, sob esses
aspectos cretinizados, a realidade da criança, dizemos que é
ao pedante que podemos realmente advertir que ele terá de corrigir
seu erro, quando as palavras "Viva a morte", proferidas por lábios
que não sabem o que dizem, fizerem-no entender que a dialética
circula ardente na carne, junto com o sangue.
§93/ Essa concepção especifica ainda o tipo de perícia
que o analista pode fornecer da realidade do crime, fundamentando-se no estudo
do que podemos chamar de técnicas negativistas do eu, sejam elas sofridas
pelo criminoso ocasional ou dirigidas pelo criminoso contumaz: a saber, a
inutilização basal das perspectivas espaciais e temporais exigi
das pela previsão intimidante em que se fia ingenuamente a chamada
teoria "hedonista" da penalogia: a supressão progressiva dos interesses
no campo da tentação objetal, o retraimento do campo da consciência,
proporcional a [144] uma apreensão sonambúlica do imediato
na execução do ato, e sua coordenação estrutural
com fantasias que dele ausentam o autor - anulação ideal ou
criações imaginárias em que se inserem, conforme uma
espontaneidade inconsciente, as dene¬gações, os álibis
e as simulações em que se sustenta a realidade alienada que
caracteriza o sujeito.
§94/ Queremos dizer aqui que toda essa cadeia não tem comumente
a organização arbitrária de uma conduta deliberada,
e que as anomalias estruturais que o analista nela possa destacar serão,
para ele, outros tantos referenciais no caminho da verdade. Assim, ele interpretará
mais profundamente o sentido dos traços freqüentemente paradoxais
pelos quais se designa o autor do crime, e que menos significam os erros de
uma execução imperfeita do que os fiascos de uma "psicopatologia
cotidiana" por demais real.
§95/ As identificações anais, que a análise descobriu
nas origens do eu, dão seu sentido ao que a medicina legal designa,
no jargão policial, pelo nome de "cartão de visita". A “assinatura”
deixada pelo criminoso, muitas vezes flagrante, pode indicar em que momento
da identificação do eu se produziu a repressão
pela qual é possível dizer que o sujeito não pode responder
por seu crime, e também pela qual ele permanece preso em sua dene¬gação.
§96/ Até mesmo no fenômeno do espelho, em que um caso
recentemente publicado pela srta. Boutonier mostra-nos a mola de um despertar
do criminoso para a consciência daquilo que o condena.
§97/ Essas repressões, haveremos nós de recorrer,
para superá-las, a um desses métodos de narcose tão
singularmente promovidos à ordem do dia pelos sustos que provocam
nos virtuosos defen¬sores da inviolabilidade da consciência?
§98/ Ninguém há de se extraviar menos que o psicanalista
nesse caminho, antes de mais nada porque, contrariando a mitologia confusa
em nome da qual os ignorantes esperam a “suspensão das censuras”, o
psicanalista sabe o sentido exato das repressões e definem os limites
da síntese do eu.
§99/ @[Por conseguinte, se ele já sabe que, no tocante ao
inconsciente reca1cado, quando a análise o restaura na consciência,
é menos o conteúdo de sua revelação do que a mola
de sua reconquista que constitui a eficácia do tratamento, a fortiori,
no tocante às determinações inconscientes que sustentam
a própria afirmação [145]** do eu, ele sabe que
a realidade, quer se trate da motivação do sujeito, quer, às
vezes, de sua própria ação, só pode aparecer
através do progresso de um diálogo que o crepúsculo
narcótico só poderia tomar inconsistente. Aqui, como em outros
lugares, a verdade não é um dado que se possa captar em sua
inércia, mas uma dialética em marcha.]***
§100/ Não busquemos a realidade do crime, portanto, nem tampouco
a do criminoso, por meio da narcose. Os vaticínios que ela provoca,
desnorteantes para o investigador, são perigosos para o sujeito, que,
por menos que participe de uma estrutura psicótica, pode encontrar
nela o "momento fecundo" de um delírio.
§101/ @[A narcose, como a tortura, tem seus limites: não
pode fazer o sujeito confessar aquilo que ele não sabe.]*** =[Aplica-se
isso também à confissão da cristandade católica
dos últimos séculos! E obrigar a cumprir uma lei impossível
de ser cumprida é perversidade!]*
§102/ Assim, nas Questões médico-legais, que
o livro de Zacchias nos atesta terem sido formuladas desde o século
XVII em torno da noção de unidade da personalidade e das possíveis
rupturas que nela pode introduzir a doença, a psicanálise traz
o aparato de exame que abarca mais um campo de ligação entre
a natureza e a cultura: aqui, o da síntese pessoal, em sua dupla relação
de identificação formal, por um lado, que se abre para as hiâncias
das dissociações neurológicas (desde as crises epiléticas
até as amnésias orgânicas), e, por outro, de assimilação
alienante, que se abre para as tensões das relações grupais.
§103/ Àqui, o psicanalista pode apontar ao sociólogo
as funções criminogênicas próprias de uma sociedade
que, exigindo uma integração vertical extremamente complexa
e elevada da colaboração social, necessária a sua produção,
propõe aos sujeitos, aos que ele se dedica, ideais individuais que
tendem a se reduzir a um plano de assimilação cada vez mais
horizontal.
§104/ Essa fórmula designa um processo cujo aspecto dialético
podemos exprimir sucintamente, observando que, numa civilização
em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação
até então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo
para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas
nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes.
§105/ Ora, a noção fundamental da agressividade correlata
a qualquer identificação alienante permite discernir que deve
haver, nos fenômenos de assimilação social a partir de
uma certa escala quantitativa, um limite, no qual as tensões agressivas
uniformi[146]zadas têm de se precipitar em pontos onde a massa
se rompe e se polariza.
§106/ Sabemos, aliás, que esses fenômenos, sob o simples
ponto de vista da produtividade, já chamaram a atenção
dos exploradores do trabalho que não ficam apenas nas palavras, e justificaram,
para a Hawthorne Western Electric, a despesa de um estudo sistemático
das relações de grupo em seus efeitos sobre as
disposições psíquicas mais desejáveis nos
empregados.
§107/ Uma separação completa, por exemplo, entre o
grupo vital, constituído pelo sujeito e pelos seus, e o grupo funcional,
em que devem ser encontrados os meios de subsistência do primeiro, fato
que basta ilustrar dizendo que ele torna verossímil o sr. Verdoux -
uma anarquia tão maior das imagens do desejo quanto mais elas parecem
gravitar progressivamente em tomo de satisfações escopofílicas,
homogeneizadas na massa social, e uma implicação crescente das
paixões fundamentais pelo poder, pela posse e pelo prestígio
nos ideais sociais, são outros tantos objetos de estudos para os quais
a teoria analítica pode oferecer ao estatístico coordenadas
corretas para introduzir suas mensurações.
§108/ Assim, o próprio político e o filósofo
se beneficiarão disso, conotando, numa dada sociedade democrática
cujos costumes estendem sua dominação sobre o mundo, o surgimento
de uma criminalidade recheando o corpo social, a ponto de assumir nele formas
legalizadas, a inserção do tipo psicológico do criminoso
entre os do recordista, do filantropo ou da estrela famosa, ou então
sua redução ao tipo geral da servidão do trabalho, com
a significação social do crime reduzida a seu uso publicitário.
§109/ Essas estruturas, nas quais uma assimilação
social do indivíduo, levada ao extremo, mostra sua correlação
com uma tensão agressiva cuja relativa impunidade no Estado é
muito perceptível para um sujeito de uma cultura diferente (como era,
por exemplo, o jovem Sun Yat Sen), aparecem invertidas quando, segundo um
processo formal já descrito por Platão, a tirania sucede à
democracia e efetua com os indivíduos, reduzidos a seu número
ordinal, o ato cardinal da adição, prontamente seguido pelas
outras três operações fundamentais da aritmética.
§110/ É assim que, na sociedade totalitária, se a
"culpa objetiva" dos dirigentes faz com que eles sejam tratados como criminosos
e responsáveis, o apagamento relativo dessas noções,
indicado [147] pela concepção sanitária da penalogia,
rende frutos para todos os outros. Abre-se o campo de concentração,
para cuja alimen¬tação as qualificações intencionais
da rebelião são menos decisivas do que uma certa relação
quantitativa entre a massa social e a massa excluída.
§111/ Sem dúvida será possível avaliá-lo
nos termos da mecânica desenvolvida pela chamada psicologia de grupo,
permitindo determinar a constante irracional que deve corresponder à
agressividade característica da alienação fundamental
do indivíduo.
§112/ Assim, na injustiça mesma da polis - sempre incompreensível
para o "intelectual" submetido à "lei do coração" - revela-se
o progresso em que o homem se cria à sua própria imagem.
SECÇÃO 05. Da inexistência dos" instintos criminosos":
a psicanálise detém-se na objetivação do Isso
e reivindica a autonomia de uma experiência irredutivelmente subjetiva.
§113/ Se a psicanálise traz os esclarecimentos que dissemos
à objetivação psicológica do crime e do criminoso,
não terá ela também uma palavra a dizer sobre seus fatores
inatos?
§114/ Observemos, primeiramente, a crítica a que convém
submeter a idéia confusa em que se fiam muitos homens de bem: a que
vê no crime uma irrupção dos" instintos" que derrubam
a "barreira" das forças morais de intimidação. É
uma imagem difícil de extirpar, pela satisfação que dá
até mesmo às cabeças sisudas, ao lhes mostrar o criminoso
fortemente guardado e o guarda tutelar, que, por ser característico
de nossa sociedade, passa aqui a uma tranqüilizadora onipresença.
§115/ Pois, se o instinto significa efetivamente a incontestável
animalidade do homem, não vemos por que esta seria mais dócil
por estar encarnada num ser racional. A forma do adágio homo homini
lupus é enganosa quanto a seu sentido, e Balthazar Gracian, num
capítulo de seu Criticon, inventa uma fábula em que mostra
o que quer dizer a tradição moralista ao exprimir que a ferocidade
do homem em relação a seu semelhante ultra¬passa tudo o
que podem fazer os animais, e que, ante a ameaça que ela representa
para a natureza inteira, os próprios carniceiros recuam horrorizados.
[148]**
§116/ Mas essa própria crueldade implica a humanidade. É
um semelhante que ela visa, mesmo num ser de outra espécie. Nenhuma
experiência sondou mais que a do analista, na vivência, a equivalência
de que nos adverte o patético apelo do Amor - é a ti mesmo que
atinges - e a gélida dedução do Espírito: é
na luta mortal de puro prestígio que o homem se faz reconhecer pelo
homem.
§117/ Se, num outro sentido, designam-se por instintos certas con¬dutas
atávicas cuja violência teria sido exigida pela lei da selva
primitiva, e que qualquer enfraquecimento fisiopatológico liber¬taria,
à maneira dos impulsos mórbidos, do nível inferior em
que elas estariam contidas, podemos indagar-nos por que, desde que o homem
é homem, também não se revelaram nele impulsos de lavrar,
plantar, cozinhar, ou até mesmo de enterrar os mortos.
§118/ A psicanálise decerto comporta uma teoria dos instintos,
bastante elaborada e, para dizer a verdade, a primeira teoria verificável
que deles se fez no homem. Mas ela os mostra comprometidos com um metamorfismo
em que a fórmula de seu órgão, de sua direção
e de seu objeto é uma faca de Jeannot (02) com peças infinitamente
intercambiáveis. Os Triebe ou pulsões que ali se isolam
constituem apenas um sistema de equivalências energéticas em
que referenciamos as trocas psíquicas, não na medida em que
elas se subordinem a alguma conduta inteiramente montada, natural ou adquirida,
mas na medida em que simbolizam, ou integram dialeticamente, as funções
dos órgãos em que aparecem as trocas naturais, isto é,
os orifícios bucal, anal e gênito-urinário.
_____________
02: "Como a faca de Jeannot"; expressão que
designa algo que conserva o mesmo nome mas que não tem mais nada do
que antes a constituía. Locução extraída de Jeannot,
personagem de comédia, parvo e ingênuo, que conta possuir uma
faca há muitos anos da qual trocou várias vezes a lâmina
e o cabo continuando a dizer que se trata da mesma faca. (N.E.)
§119/ Por conseguinte, essas pulsões só nos aparecem
em ligações muito complexas, onde sua própria deformação
não pode fazer com que se prejulgue sua intensidade originária.
Falar de um excesso de libido é uma formulação desprovida
de sentido.
§120/ Se há de fato uma noção que se depreende
de um grande número de indivíduos, capazes, tanto por seus antecedentes
[149] quanto pela impressão "constitucional" que se retira
do contato com eles e de seu aspecto, de dar a idéia de "tendências
criminosas", trata-se mais de uma deficiência que de um excesso vital.
A hipogenitalidade deles é freqüentemente manifesta, e seu clima
irradia frieza libidinal.
§121/ @[Se numerosos sujeitos, em seus delitos, exibições,
furtos, calotes e difamações anônimas, ou nos crimes da
paixão homi¬cida, encontram e buscam um estímulo sexual,
este, sejam quais forem os mecanismos que o causam, angústia, sadismo
ou associação situacional, não poderia ser tido como
um efeito de transbordamento dos instintos.]***
§122/ Seguramente, é evidente a correlação
de numerosas perversões nos sujeitos que vão a exame criminológico,
mas ela só pode ser psicanaliticamente avaliada em função
da fixação objetal, da estagnação do desenvolvimento,
da implicação, na estrutura eu, dos recalques neuróticos
que constituem o caso individual.
§123/ Mais concreta é a noção com que nossa
experiência completa a tópica psíquica do indivíduo
- a do Isso -, porém, igualmente, quão mais difícil
que as outras de apreender.
§124/ Fazer a soma das predisposições inatas é
uma definição puramente abstrata e sem valor de uso.
§125/ O termo constante situacional, fundamental naquilo que a teoria
designa por automatismos de repetição, parece relacionar-se
com isso, deduzidos os efeitos do recalcado e das identificações
do eu, e pode ser de interesse nos casos de recidiva.
§126/ O Isso também implica, sem dúvida, as
escolhas fatais manifestas no casamento, na profissão ou na amizade,
e que amiúde aparecem no crime como uma revelação das
figuras do destino.
§127/ As "tendências" do sujeito, por outro lado, não
deixam de mostrar deslizamentos ligados ao nível de sua satisfação.
Gostaríamos de levantar a questão dos efeitos que pode ter aí
um certo indício de satisfação criminosa.
§128/ Mas, nesse ponto, talvez estejamos nos limites de nossa ação
dialética, e a verdade que nos é dado reconhecer com o sujeito
não pode ser reduzida à objetivação científica.
§129/ Pela confissão que recebemos do neurótico ou
do perverso sobre o gozo inefável que eles obtêm ao se perderem
na imagem fascinante, podemos avaliar o poder de um hedonismo que nos introduzirá
nas relações ambíguas da realidade com o prazer. Se,
ao nos referirmos a esses dois grandes princípios, descreve¬[150]mos
o sentido de um desenvolvimento normativo, como não ser captados pela
importância das funções fantasísticas nos motivos
desse progresso, e quão cativa permanece a vida humana da ilusão
narcísica que sabemos tecer suas coordenadas mais "reais"? E, por outro
lado, já não está tudo pesado, junto ao berço,
nas incomensuráveis balanças da Discórdia e do Amor?
§130/ Para-além dessas antinomias que nos levam ao limiar
da sabedoria, não há crime absoluto, e existem ainda, malgrado
a ação policial estendida por nossa civilização
ao mundo inteiro, associações religiosas ligadas por uma prática
do crime, onde seus adeptos sabem encontrar as presenças sobre-humanas
que, no equilíbrio do Universo, zelam pela destruição.
§131/ Para nós, dentro dos limites que nos esforçamos
por definir como aqueles a que nossos ideais sociais reduzem a compreensão
do crime, e que condicionam sua objetivação criminológica,
se nos é possível trazer uma verdade de um rigor mais justo,
não nos esqueçamos de que devemos isso a uma função
privilegiada: a do recurso do sujeito ao sujeito, que inscreve nossos deveres
na ordem da fraternidade eterna: sua regra é também a regra
de toda ação permitida a nós. [151]**
______________
Notas:
*. Os comentários do primeiro parágrafo
e os dos colchetes inseridos no texto são de José Luiz Caon.
**. Número da página dos Escritos (Jorge
Zahar).
***. O colchete precedido de uma arroba é um
sinal de destaque inserido por JLC.
Nota da BSFREUD:
Texto escaneado por José Luiz Caon e publicado aqui por sua gentil
autorização.
Fonte: LACAN, J. Escritos; trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1998, pp. 127-51.