RESUMO DAS RESPOSTAS FORNECIDAS POR OCASIÃO DO DEBATE SOBRE O RELATÓRIO "INTRODUÇÃO TEÓRICA ÀS FUNÇÕES DA PSICANÁLISE EM CRIMINOLOGIA (01) (XIII CONFERÊNCIA DE PSICANALISTAS DE LÍNGUA FRANCESA. 29 DE MAIO DE 1950).
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01: Cf. Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p.I27-51. In Jacques Lacan, Outros escritos (2001). Jorge Zahar Editor, 2003. p. 127-131.
§ 01/31. Numa série de respostas a cada uma das pessoas que intervieram e das quais é impossível restabelecer os momentos que não foram gravados, muito especialmente num longo diálogo com Hesnard, encontrei a oportunidade de reafirmar as premissas essenciais que considero impostas pela experiência analítica a qualquer desenvolvimento possível da criminologia.
§ 02/31. A análise, na medida em que é, dentro dos limites de certas convenções técnicas, essencialmente diálogo e progresso para um sentido, sempre manterá presente no cerne de suas conseqüências objetiváveis em termos científicos a plenitude dramática da relação de sujeito a sujeito; apesar de partir, com efeito, do apelo do homem ao homem, ela se desenvolve numa busca que vai além da realidade da conduta - nominalmente, para a verdade que aí se constitui.
§ 03/31. Nenhum método, portanto, tornará menos possível eludir a relação dialética que liga o Crime à Lei, na medida em que esta é simultaneamente normativa (imperativo categórico) e contingente (Lei positiva). Ou seja, ele não pode respaldar nenhum rebaixamento cientificista ou pragmatista do nível dos problemas.
§ 04/31. Ora, nisso está o próprio pendor da criminologia, tal como esta se afigura a ouvirmos o discurso do Sr. Hesnard, na plena antinomia de seus efeitos: se ela chega a humanizar o tratamento do criminoso, só o faz ao preço de um declínio de sua humanidade, Supondo-se que o homem se faça reconhecer por seus semelhantes pelos atos cuja responsabilidade ele assume.
§ 05/31. O lazareto é certamente a solução ideal do problema levanta¬do pelo crime para o idealismo cientificista. E, sem dúvida, ela é [127]* válida para evitar os atos que uma determinação orgânica exclui com segurança do círculo da interação social. Mas essa exclusão raramente é tão completa quanto se supõe, com demasiada simplicidade (até mesmo nos estados epilépticos, caso exemplar nessa matéria).
§ 06/31. A psicanálise amplia o campo das indicações de um tratamento possível do criminoso como tal - evidenciando a existência de crimes que só têm sentido se compreendidos numa estrutura fechada da subjetividade - nominalmente, aquela que exclui o neurótico do reconhecimento autêntico do outro, amortecendo para ele as experiências da luta e da comunicação social, estrutura esta que o deixa atormentado pela raiz truncada da consciência moral que chamamos de supereu, ou, dito de outra maneira, pela profunda ambigüidade do sentimento que isolamos no termo culpa.
§ 07/31. Mas ocorre que, se o reconhecimento da morbidez desses casos permite evitar-lhes, afortunadamente, junto com a degradação penitenciária, o estigma que a ela se prende em nossa sociedade, persiste o fato de que a cura, aí, não pode ser outra coisa senão uma integração, pelo sujeito, de sua verdadeira responsabilidade, e, aliás, era para isso que ele tendia, por vias confusas, na busca de uma punição que em certas situações talvez seja mais humano permitir que ele encontre.
§ 08/31. A denúncia do Universo mórbido do crime não pode ter por corolário nem por finalidade o ideal de uma adaptação do sujeito a uma realidade sem conflitos.
§ 09/31. Isso porque a realidade humana não é apenas obra da organização social, mas é uma relação subjetiva que, por estar aberta à dialética patética que tem de subverter o particular ao universal, tem seu ponto de partida numa dolorosa alienação do indivíduo em seu semelhante, e encontra seus encaminhamentos nas represálias da agressividade.
§ 10/31. Por isso, compreendemos a realidade da importante parcela de criminosos sobre os quais o Sr. Hesnard nos afirma, com grande justeza, que neles não encontramos absolutamente nada que se destaque como anomalia psíquica. E não é pouca coisa que sua grande experiência e seu rigor de clínico nos atestem que nisso reside o caso corriqueiro diante do qual o psiquiatria sem idéias preconcebidas fica antes de mais nada espantado.
§ 11/31. Somente o psicanalista que sabe a que se ater na estrutura do eu como tal compreenderá também a coerência dos traços que [128]* esses sujeitos apresentam, e que nos são pintados por seu idealismo egocêntrico, sua apologia passional e pela estranha satisfação do ato consumado em que sua individualidade parece encerrar-se em sua suficiência.
§ 12/31. Esses criminosos, que aqui chamamos criminosos do eu, são as vítimas sem voz de uma crescente evolução das formas diretivas da cultura rumo a relações de coerção cada vez mais, externa.
Aliás, não é sem a consciência pesada que a sociedade em que esses criminosos se produzem os toma por bodes expiatórios, e o papel de vedete que com tanta facilidade ela lhes confere evidencia bem a função real que eles garantem ali. Daí o movimento da opinião pública que se compraz tanto mais em tomá-los por alienados quanto mais reconhece neles as intenções de todos.
§ 13/31. Somente a psicanálise, por saber como revirar as resistências do eu, é capaz, nesses casos, de libertar a verdade do ato, comprometendo com ele a responsabilidade do criminoso, através de uma assunção lógica que deverá conduzi-lo à aceitação de um justo castigo.
§ 14/31. Quem ousaria, no entanto, perseguir tal tarefa sem tremer, se não estiver investido por uma teologia?
§ 15/31. Somente o Estado, com a Lei positiva que sustenta, pode dar ao ato criminoso sua punição. O ato há de ser então submetido a um julgamento abstratamente fundado em critérios formais, nos quais se reflita a estrutura do poder estabelecido. O veredicto ficará entregue, não sem escândalo, mas também não sem razão, ao funcionamento de debates os menos verídicos - donde resulta, não menos logicamente, o reconhecimento do direito do acusado à mentira, que denominamos de respeito à consciência individual.
§ 16/31. Esse encadeamento implacável é demasiado chocante – pelo menos, ainda por algum tempo - para os valores de verdade mantidos na consciência pública pelas disciplinas científicas, para que os melhores espíritos não se sintam tentados, sob a denominação de criminologia, pelo sonho de um tratamento inteiramente objetivo do fenômeno criminal.
§ 17/31. Assim, o Sr. Piprot, de Alleaumes, roga-nos que orquestre¬mos, no intuito de determinar as condições do estado perigoso, todas as ciências do homem, mas sem levar em conta as práticas jurídicas em exercício.
§ 18/31. Ao que então lhe dizemos: "O senhor está retomando o engodo, embora desvendado, das categorias do crime natural. Mas [129]* tanto a etnografia quanto a história nos dão o testemunho de que as categorias do crime são sempre relativas aos costumes e às leis existentes. Do mesmo modo que a psicanálise lhe afirma que a grande determinação do crime é a própria concepção de responsa¬bilidade que o sujeito recebe da cultura em que vive."
§ 19/31. Pr isso é que Lacan e Cénac escrevem: "A responsabilidade, isto é, o castigo...", e ligam o aparecimento da própria criminologia a uma concepção da pena que eles designam, seguindo Tarde, por concepção sanitária, mas que, apesar de nova, nem por isso inscreve-se menos do que as precedentes numa estrutura da sociedade. Ponto de vista pelo qual fomos honrados com a aprovação de vários dos juristas hoje presentes.
§ 20/31. Mas se tal concepção da pena foi trazida por um movimento humanitário cujos fundamentos não há como contestar, os progressos da época posterior a Tarde nos mostraram seus perigos: a saber, a desumanização que ela implica para o condenado.
§ 21/31. Dizemos que ela leva em última instância, para obter a regeneração de Caim, a pôr no campo de concentração exatamente um quarto da humanidade. Que se tenha a bondade de reconhecer, nessa imagem em que encarnamos nosso pensamento, a forma utópica de uma tendência cujas futuras metamorfoses não temos a pretensão de prever, já que sua realização pressuporia o estabelecimento do Império universal.
§ 22/31. É por isso que há uma conciliação necessária entre os direitos do indivíduo, tais como são atualmente garantidos pela organização jurídica (não nos esqueçamos tudo que resta de liberdade suspenso à distinção quanto ao regime penal do direito político e do direito comum, por exemplo), e os progressos abertos pela ciência para nossa manobra psicológica do homem.
§ 23/31. Para essa conciliação, a psicanálise traz uma medida essencial.
§ 24/31. Decerto ela é cientificamente fecunda, pois definiu estruturas que permitem isolar certas condutas para subtraí-las da medida comum, e, nas que ainda estão por destacar, leva a compreender os jogos de miragem e compensação, restabelece em sua clareza dialética a viscosidade das motivações agressivas numa alienação intrínseca, no qual vieram naufragar as especulações risíveis dos utilitaristas sobre o valor intimidante da pena.
§ 25/31. Não são somente as trevas de um destino mais inalterável do que todas as incidências biográficas que ela esclarece com a noção [130]* de automatismo de repetição,