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FREUD
AGRESSIVIDADE EM PSICANÁLISE
Jacques Lacan
(1948)
RELATÓRIO TEÓRICO APRESENTADO NO
XI CONGRESSO DOS PSICANALISTAS DE líNGUA FRANCESA, REUNIDO EM BRUXELAS
EM MEADOS DE MAIO DE 1948. =[Em 1948, Lacan falava e escrevia. Mas, para
quem? Quem ouvia Lacan e quem lia o que ele escrevia nessa época.
Talvez, nos relatos da história da psicanálise, como nos de
Roudinesco, a gente possa se situar perante o respeitável público
de Lacan, nessa época.
A splendid isolation de Freud, durou bem mais do que 10 anos; a
de Lacan, quantos anos durou e talvez ainda dure?
Se você for daqueles que preferem ouvir e ler os psitácidas,
abandona logo essa atividade e procura um desses muitos viveiros que abundam
no Brasil.]*
§ 01/112. O relatório precedente
apresentou-lhes o emprego que fazemos da noção de AGRESSIVIDADE
(01) na clínica e na terapêutica. Resta-me a tarefa de provar
perante os senhores se é possível formar dela um conceito
tal que ela possa aspirar a um uso científico, isto é, apropriado
a objetivar fatos de uma ordem comparável na realidade, ou, mais
categoricamente, a estabelecer uma dimensão da experiência
cujos fatos objetivados possam ser considerados como variáveis.
__________
01: Exceto essa primeira linha, este texto é fornecido
intacto.
§ 02/112. Todos temos em comum, nesta
assembléia, uma experiência fundamentada numa técnica,
num sistema de conceitos ao qual somos fiéis, tanto por ele ter sido
elaborado por aquele mesmo que nos abriu todos os caminhos dessa experiência,
quanto por trazer a marca viva das etapas dessa elaboração.
Ou seja, ao contrário do dogmatismo que nos imputam =[Lacan,
em pleno congresso, perante os didatas da IPA e seus beija-cu que ainda
os há por todo o lado, desfere essa espadada frontal.]*, sabemos
que esse sistema permanece aberto, não apenas em seu acabamento,
mas em vários de seus pontos de articulação. =[E,
isso ainda é assim, em 2006, Dr. Lacan!]*
§ 03/112. Esses hiatos parecem conjugar-se
na significação enigmática que Freud promoveu como
instinto de morte: testemunho, semelhante à figura da Esfinge, da
aporia contra a qual se chocou esse grande pensamento, na mais profunda
tentativa já surgida de formular uma experiência do homem no
registro da biologia. =[Freud concebe a morte mitologicamente, como
se fosse uma força biológica. É bem mais cômodo,
mas nada genial!]*
§ 04/112. Essa aporia está no
cerne da noção de AGRESSIVIDADE, sobre a qual avaliamos melhor
a cada dia o papel que convém atribuir-lhe na economia psíquica.
§ 05/112. Eis por que a questão
da natureza metapsicológica das tendências mortíferas
é incessantemente recolocada em pauta por [104]** nossos colegas
teóricos, não sem contradição e, freqüentemente,
convém dizer, com certo formalismo.
§ 06/112. Quero apenas propor-lhes algumas
observações ou teses que me foram inspiradas por minhas reflexões
de longa data em torno dessa verdadeira aporia da doutrina, e também
pelo sentimento que tenho, a partir da leitura de numerosos trabalhos, de
nossa responsabilidade na atual evolução da psicologia de
laboratório e de tratamento. =[Atente-se para o valor que
Lacan dá ao laboratório e para o consultório!]* - Penso,
por um lado, nas chamadas pesquisas behavioristas, que me parecem
dever o melhor de seus resultados (que às vezes se nos afiguram um
tanto escassos para o aparato de que se cercam) ao uso, amiúde implícito,
que fazem das categorias que a análise trouxe para a psicologia;
=[Prefiguração e profecia do roubo e expropriações
que a psicologia clínica e especialmente a psicoterapia cognitiva
estão fazendo dos achados da psicanálise!]* por outro, nesse
gênero de tratamento - quer se dirija aos adultos ou às crianças
- que se pode agrupar sob a denominação de tratamento psicodramático,
que busca sua eficácia na ab-reação que ele tenta esgotar
no plano da dramatização, =[Aqui, nossa Verinha, dorminhoca,
traduz por “plano da dramatização” aquilo que Lacan escreve
“plan du jeu”, isto é, “plano do jogo (folguedo).]* e onde, mais
uma vez, a análise clássica fornece as noções
eficazmente diretivas.
TESE 01: A AGRESSIVIDADE se manifesta numa experiência
que é subjetiva por sua própria constituição.
§ 07/112. Não é inútil,
com efeito, voltar ao fenômeno da EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA.
Por visar dados primários, essa reflexão é freqüentemente
omitida. =[Lança repete quando fala e quando escreve a expressão
“EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA”. Evidentemente, é coisa
de psicanalisante antes que de psicanalista!] *
§ 08/112. Podemos dizer que a ação
psicanalítica se desenvolve na e pela comunicação verbal,
isto é, numa apreensão dialética do sentido. =[Se
Lacan, aqui quer dizer dialógica...]* Ela supõe, portanto,
um sujeito que se manifeste como tal para um outro.
§ 09/112. Essa subjetividade não nos pode
ser objetada como devendo ser obsoleta, conforme o ideal a que satisfaz
a física, que a elimina através do aparelho registrador, sem
no entanto poder evitar a suspeita do erro pessoal na leitura do resultado.
=[!!!]*
§ 10/112. @[Somente um sujeito pode
compreender um sentido; inversamente, todo fenômeno de sentido implica
um sujeito.]*** Na análise, um sujeito se dá como
podendo ser compreendido, e de fato o é: a introspecção
e a intuição pretensamente projetiva não constituem,
aqui, os vícios de princípio que uma psicologia, em seus primeiros
passos no caminho da ciência, considerou irredutíveis. Isso
equivaleria a transformar em impasse momentos abstrata¬[105]mente
isolados do diálogo, quando é preciso fiar-se em seu movimento:
foi mérito de Freud ter assumido os riscos deles, antes de dominá-los
através de uma técnica rigorosa.
§ 11/112. Podem seus resultados fundar
uma ciência positiva? Sim, se a expriência for controlável
por todos. Ora, constituída entre dois sujeitos, dos quais um desempenha
no diálogo um papel de impessoalidade ideal (ponto que requererá
mais adiante nossa atenção), a experiência, uma vez
consumada, e unicamente sob as condições de capacidade exigíveis
para qualquer investigação especial, pode ser retomada pelo
outro sujeito com um terceiro. =[De fato, quanto mais impessoal for
o interlocutor, tanto mais a fala e a escritura têm efeitos de linguagem.
A replicação da EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA não
se dá como nos experimentos laboratoriais de psicologia experimental,
mas, dá-se na possibilidade de o psicanalisante depois tornar-se
ele mesmo psicanalista e assim sucessivamente. É como na ordem da
paternidade! Não dá para replicar a paternidade de pai-filho
a não ser que o filho, por sua vez, se torne pai de um filho!]* Essa
via aparentemente iniciática é apenas uma transmissão
por recorrência, com a qual não há por que nos surpreendermos,
já que ela se prende à própria estrutura, bipolar,
de toda subjetivi¬dade. Somente a velocidade de difusão da experiência
é afetada por ela, e, se sua restrição à área
de uma cultura é discutível, não só nenhuma
antropologia sadia pode extrair disso uma objeção, como tudo
indica que seus resultados possam ser suficientemente relativizados para
uma generalização que satisfaça ao postulado humanitário,
inseparável do espírito da ciência.
TESE 02: A AGRESSIVIDADE, na experiência,
nos é dada como intenção de agressão e como
imagem de desmembramento corporal, e é nessas modalidades que se
demonstra eficiente.
§ 12/112. A EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA
permite-nos experimentar a pressão intencional. Nós a lemos
no sentido simbólico dos sintomas, a partir do momento em que o sujeito
renuncia às defesas pelas quais os desvincula das relações
que eles mantêm com sua vida cotidiana e com sua história -
na finalidade implícita de suas condutas e suas recusas, nos fracassos
de sua ação, na confissão de suas fantasias privilegiadas,
nos rébus da vida onírica. =[Isso quer dizer que a sintomatização
abandona a MEDIATIZAÇÃO, isto é, a diplomacia ou racionalização
uu intelectualização das defesas. Na sintomatização,
como faz Alexandre Magno, corta-se de vez o nó górdio!]*
§ 13/112. Quase podemos medi-la
=[quem, a experiência?]* na modulação reivindicatória
que às vezes sustenta todo o discurso, em suas suspensões,
suas hesitações, suas inflexões e seus lapsos, nas inexatidões
do relato, nas irregularidades da aplicação da regra, nos
atrasos para as sessões, nas ausências premeditadas, muitas
vezes nas recriminações, nas censuras, nos medos fantasísticos,
nas reações emocionais de cólera e nas demonstrações
para fins intimidatórios, [106] sendo tão raras as violências
propriamente ditas quanto o implicam a conjuntura de apelo que levou ao
médico o doente e a transformação dela, aceita por
este último, numa convenção de diálogo.
=[Repensa como isso se deu na tua análise pessoal e escreve sobre
isso a partir do que você experiênciou!]*
§ 14/112. A eficácia própria
dessa intenção agressiva é manifesta: nós a
constatamos freqüentemente na ação formadora de um indivíduo
sobre as pessoas de sua dependência: a AGRESSIVIDADE intencional corrói,
mina, desagrega; ela castra; ela conduz à morte: “E eu que acreditava
que você era impotente!", gemia num uivo de tigresa uma mãe
a seu filho, que acabara de lhe confessar, não sem dificuldade, suas
tendências homossexuais. E pudemos ver que sua permanente AGRESSIVIDADE
de mulher viril não deixara de surtir efeitos; sempre nos foi impossível,
em casos semelhantes, desviar seus ataques da própria empreitada
analítica. =[Outro exemplo: “A gente pensava que ele era um mendigo!”
Escusa que os adolescentes deram ao delegado, quando eles souberam que a
vítima queimada por eles não era um índio! Outrossim,
quando um “psicanalista” injuria um colega, chamando-o de paranóico,
histérico, etc., dá para se ver que é assim também
que se diagnosticam os pacientes: injuriando-os!]*
§ 15/112. Essa AGRESSIVIDADE se exerce,
é claro, em meio a restrições reais. Mas sabemos por
experiência que ela é não menos eficaz pela via da expressividade:
um genitor severo intimida pela simples presença, e basta que seja
brandida a imagem do PUNIDOR para que a criança a forme. Ela tem
repercussões mais amplas do que qualquer sevícia. =[Elle
retentit plus loin qu’auncun sévice. De fato, a AGRESSIVIDADE
simbolicamente pepetrada é de longe mais eficaz do que a real! E
mais: PERMANECE IMPUNE!]*
§ 16/112. Esses fenômenos mentais
a que chamamos imagens =[qu’on appelle les images, que chamamos
as imagens]*, termo cujo valor expressivo é confirmado por todas
as acepções semânticas, após os perpétuos
fracassos registrados pela psicologia de tradição clássica
na tarefa de dar conta deles, a psicanálise foi a primeira a se revelar
à altura da realidade concreta que eles representam. É que
ela partiu da função formadora das imagens no sujeito e revelou
que, se as imagens atuais determinam tais ou quais inflexões individuais
das tendências, é na condição de variações
das matrizes que constituem, para os próprios" instintos" , esses
outros específicos que fazemos corresponder à antiga denominação
de imago. =[Verifique-se aqui a teoria dos “corredores isotópicos”,
por exemplo, em Blikstein, Kaspar Hauser, A fabricação
da realidade, Cultrix.]
§ 17/112. Entre estes últimos,
há os que representam os vetores eletivos das intenções
agressivas, que elas dotam de uma eficácia que podemos chamar de
mágica. São as imagens de castração, =[éviration,
melhor traduzido por eviração]* emasculação,
mutilação, desmembramento, desagregação, eventração,
devoração, explosão do corpo, em suma, as imagos
que agrupei pessoalmente sob a rubrica, que de fato parece estrutural, de
imagos do corpo despedaçado. =[imagos du corps
morcelé]*. =[Coisa de sonho noturno e vivências psicóticas.]*
§ 18/112. Há aí uma relação
específica do homem com seu próprio corpo, a qual se manifesta
igualmente na generalidade de uma série [107] práticas
sociais - desde os ritos da tatuagem, da incisão e da circuncisão,
nas sociedades primitivas, até aquilo que poderíamos chamar
de arbitrariedade procustiana da moda, na medida em que ela desmente, nas
sociedades avançadas, o respeito às formas naturais do corpo
humano, cuja idéia é tardia na cultura.
§ 19/112. Basta escutar a fabulação
e as brincadeiras das crianças, isoladas ou entre si, entre os dois
e os cinco anos, para saber que arrancar a cabeça e furar a barriga
são temas espontâneos de sua imaginação, que
a experiência da boneca desmantelada só faz satisfazer.
§ 20/112. Há que folhear um álbum
que reproduza o conjunto e os detalhes da obra de Hieronymus Bosch, para
ali reconhecer o atlas de todas as imagens agressivas que atormentam os homens.
A prevalência dentre elas, descoberta pela análise, das imagens
de uma autoscopia primitiva dos órgãos orais e derivados da
cloaca gerou, ali, formas de demônios. Não faltam nem mesmo
a ogiva das angustiae do nascimento, que encontramos na porta dos
precipícios para onde eles empurram os condenados, nem a estrutura
narcísica, que podemos evocar nas esferas de vidro em que se acham
aprisionados os parceiros exaustos do jardim das delícias. =[Cenas
do Inferno de Dante podem aqui ser evocadas!]*
§ 21/112. Reencontramos incessantemente
essas fantasmagorias nos sonhos, particularmente no momento em que a análise
parece vir refletir-se no fundo das fixações mais arcaicas.
E evocarei o sonho de um de meus pacientes, em quem as fantasias agressivas
manifestavam-se por fantasias obsedantes; no sonho, ele se via, estando
num carro com a mulher de seus amores difíceis, perseguido por um
peixe voador, cujo corpo de bexiga de ar deixava transparecer um nível
de líquido horizontal, imagem de perseguição vesical
de grande clareza anatômica. =[Um psicanalisante conseguiu recordar
a proeza onírica de fazer sexo penetrando, vaginalmente, por cima,
uma mulher, a qual, simultaneamente, o penetrava, analmente, por baixo.
De fato, a expressão “rabo de saia” não teria melhor aplicação!
Um “rabo de saia” não é uma mulher, mas uma mulher fálica,
isto é, sem pênis, mas, com um rabo pênico! Caricatamente,
seria um travesti!]*
§ 22/112. Todos esses são dados
primordiais de uma Gestalt própria da agressão no homem
e ligada ao caráter simbólico, não menos do que ao
cruel refinamento das armas que ele fabrica, pelo menos no estágio
artesanal de sua indústria. Essa função imaginária
se esclarecerá em nossas colocações. =[Lacan,
fala aqui do registro do imajário, isso em 1948!]*
§ 23/112. Notamos aqui que, ao se tentar
uma redução behaviorista do processo psicanalítico
- coisa a que uma preocupação com o rigor, a meu ver injustificada,
impeliria alguns de nós -, ele é mutilado de seus dados subjetivos
mais importantes, dos quais as fantasias privilegiadas são as testemunhas
na consciência e que nos permitiram conceber a imago, forma
ora a identificação. =[l’imago, formatrice de l’identification.
Imago, pois, que não é o esquema corporal dos psiconeurólogos!]*
TESE 03: Os impulsos [=Les ressorts,
as molas]* de AGRESSIVIDADE decidem sobre as razões que
motivam a técnica da análise. =[Outro cochilo
da Verinha!]*
§ 24/112. O diálogo em si parece
constituir uma renúncia à AGRESSIVIDADE: a filosofia, desde
Sócrates, sempre depositou nele a esperança de fazer triunfar
a via racional. E, no entanto, desde o momento em que Trasímaco fez
sua retirada demente no começo do grande diálogo da República,
o fracasso da dialética verbal só tem feito demonstrar-se
com imensa freqüência. =[O duelo, enquanto “uma paixão
francesa”, ilustra o requinte da AGRESSIVIDADE simbólica.” Cf,. Le
duel, une passion française, de Jean-Noël Jeannneney. Seuil.
2004. 240p. Resumo do livro: Le duel, ou le règlement de comptes
dans le sang, à l'épée ou au pistolet, entre deux hommes
prêts à sacrifier leur vie à leur honneur bafoué...
Rituel de l'Ancien Régime, le duel a survécu de la Révolution
française à la guerre de 1914, sous les pouvoirs publics impuissants
et la justice indifférente. Ceux qui ont couru le risque de rétablir
leur honneur à la force de leur lame ou à la précision
de leur tir sont nombreux et parfois célèbres : l'ouvrage
de Jean-Noël Jeanneney rassemble ainsi de multiples anecdotes drôles,
pittoresques, mais aussi malheureuses et douloureuses. 'Le duel, une passion
française' est autant un ouvrage historique qu'une réflexion
sur les origines et les codes qui caractérisent le duel.]*
§ 25/112. Sublinhei que o analista curava
pelo diálogo, e curava loucuras igualmente grandes; que virtude,
portanto, acrescentou-lhe Freud?
§ 26/112. A regra proposta ao paciente
na análise deixa-o avançar para uma intencionalidade cega
para qualquer outro fim que não sua libertação de um
sofrimento ou de uma ignorância dos quais ele nem sequer conhece os
limites.
§ 27/112. Sua voz é a única
a se fazer ouvir, por um tem o cuja a duração fica a critério
do analista. =[Sa voix se fera seule entendre pendant um temps dont
la durée reste à la discrétion de l’analyste. Lacan
já adotava, portanto, a sessão interrompida pelo psicanalista,
já em 1948.]* Particularmente, logo lhe fica patente, e aliás
confimada, a abstenção do analista em lhe responder em qualquer
plano de conselho ou projeto. Há nisso um limite que parece ir ao
encontro do fim desejado e que deve justificar-se por algum motivo profundo.
§ 28/112. Que preocupação
condiciona, portanto, diante dele a atitude do analista? A de oferecer ao
diálogo um personagem tão desprovido quanto possível
de características individuais; nós nos apagamos, saímos
do campo em que possam ser percebidos o interesse, a simpatia e a reação
buscados por aquele que fala no rosto do interlocutor; evitamos qualquer
manifestação de nossos gostos pessoais, escondemos o que pode
traí-los, nos despersonalizamos e tendemos, para esse fim, a representar
para o outro um ideal de impassibilidade.
§ 29/112. Nisso, não exprimimos
apenas a apatia que tivemos de realizar em nós mesmos para estar
em condições de compreender nosso sujeito, nem tampouco preparamos
o realce de oráculo que, contra esse fundo de inércia, deve
assumir nossa intervenção interpretativa.
§ 30/112. Queremos evitar uma cilada,
que esse apelo já encerra, marcado pelo eterno patético da
fé, que o doente nos dirige. Ele comporta um segredo: “Toma para ti",
dizem-nos, “essa dor que pesa sobre meus ombros; mas, satisfeito, sereno
e confortável como te vejo, não podes ser digno de portá-la."
[109]
§ 31/112. O que aqui aparece como orgulhosa reivindicação
do sofri¬mento mostrará sua face - e, às vezes, num momento
tão decisivo que entra na "reação terapêutica
negativa" que reteve a atenção de Freud - sob a forma da resistência
do amor-próprio, para tomarmos esse termo em toda a profundidade
que lhe deu La Rochefoucauld, e que amiúde se declara assim: "Não
posso aceitar a idéia de ser libertado por outro que não eu
mesmo."
§ 32/112. Claro, numa exigência
mais insondável do coração, é a participação
em seu sofrimento que o doente espera e nos. Mas é a reação
hostil que guia nossa prudência, e que já inspirara a Freud
sua cautela contra qualquer tentação de bancar o profeta. Somente
os santos são suficientemente desprendidos da mais profunda das paixões
comuns para evitar os contragolpes agressivos da caridade.
§ 33/112. Quanto a citar o exemplo de
nossas virtudes e nossos méritos, nunca vi recorrer a isso senão
um certo grande padroeiro, totalmente imbuído de uma idéia
tão austera quanto inocente de seu valor apostólico; e penso
ainda no furor que ele desencadeou. =[A quem estaria se referindo Lacan?]
§ 34/112. Aliás, como nos surpreendermos
com essas reações, nós que denunciamos os impulsos
agressivos ocultos sob todas as chamadas atividades filantrópicas?
=[De fato, caridade burra faz mal a quem a faz e mais mal ainda a quem a
recebe!]
§ 35/112. @[Devemos, no entanto, pôr
em jogo a AGRESSIVIDADE do sujeito a nosso respeito, já que essas
intenções, como sabemos, compõem a transferência
negativa que é o nó inaugural do drama analítico.]***
=[Essa transferência negativa é a mais verdadeira pois que é
sincera, franca e honesta. Dá para odiar desonestamente assim como
se pode amar insinceramente?]
§ 36/112. Esse fenômeno representa,
no paciente, a transferência imaginária, para nossa pessoa,
de uma das imagos mais ou menos arcaicas que, por um efeito de subdução
simbólica, degrada, desvia ou inibe o ciclo de uma dada conduta,
que, por um acidente de recalque, excluiu do controle do eu uma dada função
e um dado segmento corporal, que, por uma ação de identificação,
deu sua forma a tal instância da personalidade.
§ 37/112. Podemos ver que basta o pretexto
mais fortuito para provocar a intenção agressiva que reatualiza
a imago, instalada permanentemente no plano de sobredeterminação
simbólica a que chamamos o inconsciente do sujeito, com sua correlação
intencional.
§ 38/112. Tal mecanismo revela-se, muitas
vezes, extremamente simples na histeria: no caso de uma moça afetada
por astasia-abasia, que vinha há meses resistindo às tentativas
de sugestão terapêutica dos mais diversos estilos, meu personagem
viu-se imediatamente [110] identificado com a constelação
dos mais desagradáveis traços que para ela era concretizada
pelo objeto de uma paixão, aliás bastante marcada por um toque
delirante. A imago subjacente era a de seu pai, de quem bastou que
eu a fizesse observar que lhe faltara o apoio (carência que eu sabia
haver efetivamente dominado sua biografia, e num estilo muito romanesco)
para que ela se descobrisse curada de seu sintoma, sem que, poderíamos
dizer, nada entendesse do que havia acontecido, e que a paixão mórbida,
aliás, fosse afetada por isso.
§ 39/112. Esses nós são
mais difíceis de desatar, como se sabe, na neurose obsessiva, justamente
pelo fato, muito conhecido por nós, de sua estrutura ser particularmente
destinada a camuflar, deslocar, negar, dividir e atenuar a intenção
agressiva, e isso segundo uma decomposição defensiva tão
comparável, em seus princípios, à ilustrada pela trincheira
e pela chicana, que ouvimos vários de nossos pacientes servirem-se,
a respeito deles mesmos, de uma referência metafórica a "fortificações
ao estilo de Vauban" (02).
_________
02: Sébastien Le Prestre de Vauban, engenheiro
militar responsável pelas fortificações no reinado de
Luís XIV. (N.E.)
§ 40/112. Quanto ao papel
da intenção agressiva na fobia, ele é por assim dizer,
manifesto.
§ 41/112. Portanto, não é
que seja desfavorável reativar tal intenção na psicanálise.
§ 42/112. O que procuramos evitar, através
de nossa técnica, é que a intenção agressiva
no paciente encontre o apoio de uma idéia atual de nossa pessoa, suficientemente
elaborada para que possa organizar-se nas reações de oposição,
denegação, ostentação e mentira que nossa experiência
nos demonstra serem os modos característicos da instância
do eu no diálogo.
§ 43/112. Caracterizo essa instância,
aqui, não pela construção teórica que dela fornece
Freud em sua metapsicologia, como sistema percepção-consciência,
mas pela essência fenomenológica que ele reconheceu como sendo
a sua essência mais constante na experiência, sob o aspecto
da Verneinung, e cujos dados ele nos recomenda apreciar
no índice mais geral de uma inversão precedente ao juízo.
[111]
§ 44/112. Em suma, designamos no eu
esse núcleo dado à consciência, mas opaco à reflexão,
marcado por todas as ambigüidades que, da complacência à
má-fé, estruturam no sujeito humano a vivência passional;
esse [eu] que, por confessar seu artificialismo à crítica
existencial, opõe sua irredutível inércia de pretensões
e desconhecimento à problemática concreta da realização
do sujeito. =[O ego é consciência, mas não reflexão;
isto é, é percepção consciência e não
consciência crítica e refelxiva!]*
§ 45/112. Longe de atacá-lo de
frente, a maiêutica analítica adota um rodeio que equivale,
em suma, a induzir no sujeito uma paranóia dirigida. Com efeito, um
dos aspectos da ação analítica é efetuar a projeção
do que Melanie Klein denomina de maus objetos internos, mecanismo
paranóico, por certo, mas aqui bem sistematizado, filtrado de alguma
forma e estancado sob medida. =[O ego é o sintoma privilegiado
do homem!]*
§ 46/112. É esse o aspecto de
nossa praxis que corresponde à categoria do espaço,
contanto que aí se compreenda este espaço imaginário
onde se desenvolve a dimensão dos sintomas que os estrutura como ilhotas
excluídas, escotomas inertes ou autonomismos parasitários nas
funções da pessoa.
§ 47/112. À outra dimensão,
temporal, correspondem a angústia e sua incidência, seja ela
patente, no fenômeno da fuga ou da inibição, seja latente,
quando só aparece com a imago motivadora.
§ 48/112. Mais uma vez, repetimos, essa
imago só se revela desde que nossa atitude ofereça ao sujeito
o espelho puro de uma superfície sem acidentes.
§ 49/112. @[Mas, que se imagine, para
nos compreender, o que aconteceria com um paciente que visse em seu analista
uma réplica exata dele mesmo. Qualquer um sente que o excesso de tensão
agressiva criaria tamanho obstáculo à manifestação
da transferência, que seu efeito útil só poderia produzir-se
com extrema lentidão, e é isso que acontece em certas análises
para fins didáticos. Se a imaginarmos, em última instância,
vivenciada à maneira da estranheza própria das apreensões
do duplo, essa situação desencadearia uma angústia
incontrolável.]*** =[No entanto, essa análise perversa
e pervertida continua sendo o último da formação do
psicanalista. Dissimuladamente, as instituições ditas lacanianas,
transformam a psicanálise didática em percurso, apresentação
de trabalho final e quejandos. A perversão continua... malgré
Lacan!]*
TESE 04: A AGRESSIVIDADE é a tendência
correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico,
e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades
característico de seu mundo.
§ 50/112. A experiência subjetiva
da análise inscreve prontamente seus resultados na psicologia concreta.
Indiquemos apenas o que ela [112] traz para a psicologia das emoções,
mostrando a significação comum de estados tão diversos
quanto o medo fantasístico, cólera, a tristeza ativa ou a
fadiga psicastênica.
§ 51/112. Passar agora da subjetividade
da intenção para a noção de uma tendência
à agressão é dar o salto da fenomenologia de nossa
experiência para a metapsicologia. =[Diferença precisa
entre fenomenologia e metapsicologia.]*
§ 52/112. Mas, esse salto não
manifesta outra coisa senão uma exigência do pensamento que,
para objetivar agora o registro das reações agressivas, e
na impossibilidade de seriá-lo numa variação quantitativa,
tem que integrá-lo numa fórmula de equivalência. É
assim que nos servimos dele com a noção de libido.
§ 53/112. A tendência agressiva
se revela fundamental numa certa série de estados significativos
da personalidade, que são as psicoses paranóides e paranóicas.
§ 54/112. Sublinhei em meus
trabalhos que seria possível coordenar, por sua seriação
estritamente paralela, a qualidade da reação agressiva que
se pode esperar de tal forma de paranóia com a etapa da gênese
mental representada pelo delírio sintomático dessa mesma forma.
Relação que se afigura ainda mais profunda quando - mostrei
isso a respeito de uma forma curável, a paranóia de autopunição
- o ato agressivo desfaz a construção delirante. =[A atuação,
o crime, o ato delinqüente, interrompem o delírio ou a paranóia
de autopunição.]*
§ 55/112. Assim se coloca em série, de maneira
contínua, a reação agressiva, desde a explosão
tão brutal quanto imotivada do ato, passando por toda a gama das
formas de beligerância, até guerra a fria das demonstrações
interpretativas, paralelamente às imputações de nocividade
que, sem falar do kakon obscuro a que o paranóide refere sua
discordância de qualquer contato vital, vão-se escalonando,
desde a motivação do veneno, retirada do registro de um organicismo
muito primitivo até motivação mágica do malefício,
telepática, da influência, lesiva da intrusão física,
abusiva, do desvio da intenção, espoliação,
do roubo do segredo, profanatória, da violação da intimidade,
jurídica, do preconceito, persecutória, da espionagem e da
intimidação, prestigiosa, da difamação e do atque
à honra, reivindicatória, do prejuízo e da exploração.
§ 56/112. Essa série, onde encontramos
todos os invólucros sucessivos do status biológico e social
da pessoa, mostrei que ela se prendia, em cada caso, a uma organização
original das formas do eu e do objeto, que são igualmente afetados
por ela em sua estrutura, [113] inclusive nas categorias espacial
e temporal em que eles se constituem, vividos como eventos numa perspectiva
de miragens, como afecções com um toque de estereotipia que
suspende sua dialética.
§ 57/112. Janet, que mostrou tão
admiravelmente a significação dos sentimentos de perseguição
como momentos fenomenológicos das condutas sociais, não lhes
aprofundou o caráter comum, que é precisamente que eles se
constituem por uma estagnação de um desses momentos, semelhante,
em estranheza, à aparência dos atores quando o filme pára
de rodar.
§ 58/112. Ora, essa estagnação
formal é parenta da estrutura mais geral do conhecimento humano:
aquela que constitui o eu e os objetos mediante atributos de permanência,
identidade e substancialidade, em suma, sob a forma de entidades ou "coisas"
muito diferentes das Gestalten que a experiência nos
permite isolar no domínio do campo disposto segundo as linhas do desejo
animal.
§ 59/112. Efetivamente, essa fixação
formal que introduz uma certa ruptura de plano, uma certa discordância
entre o organismo do homem e seu Umwelt, é a própria
condição que amplia indefi¬nidamente seu mundo e sua potência,
dando a seus objetos sua polivalência instrumental e sua polifonia
simbólica, bem como seu potencial de armamento.
§ 60/112. O que chamei de conhecimento
paranóico demonstra pois corresponder, em suas formas mais ou menos
arcaicas, a certos momentos críticos que escandem a história
da gênese mental do homem e que representam, cada um, uma etapa da
identificação objetivante.
§ 61/112. Podemos entrever, pela simples
observação, suas etapas na criança, onde uma Charlotte
Bühler, uma Elsa Köhler e, depois delas, a escola de Chicago mostram-nos
vários planos de mani¬festações significativas,
mas às quais somente a EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA pode
dar seu valor exato, permitindo reintegrar nelas a relação
subjetiva.
§ 62/112. O primeiro plano mostra-nos
que a experiência de si próprio na criança de tenra
idade, na medida em que ela se refere a seu semelhante, desenvolve-se a
partir de uma situação vivida como indiferenciada. Assim,
por volta dos oito meses de idade, nos confrontos entre crianças
- que, convém notar, para serem fecundos, quase que só permitem
dois meses e meio de distância etária -, vemos os gestos de
ações fictícias com que um sujeito [114] acompanha
o esforço imperfeito do gesto do outro, confundindo sua aplicação
distinta: as sincronias da captação especular, mais notáveis
ainda por se anteciparem à completa coordenação dos
aparelhos motores que elas empregam.
§ 63/112. Assim, a AGRESSIVIDADE que
se manifesta nas retaliações de tapas e socos não pode
ser apenas tomada por uma manifestação lúdica de exercício
das forças e de seu emprego para o referenciamento do corpo. Ela
deve ser compreendida numa ordem de coordenação mais ampla:
a que subordinará as funções de posturas tônicas
e de tensão vegetativa a uma relatividade social cuja prevalência
Wallon sublinhou consideravelmente na constituição expressiva
das emoções humanas.
§ 64/112. Mais ainda, eu mesmo creio ter conseguido
destacar que a criança, nessas ocasiões, antecipa no plano
mental a conquista da unidade funcional de seu próprio corpo, ainda
inacabado, nesse momento, no plano da motricidade voluntária.
§ 65/112. Há aí uma primeira
captação pela imagem, onde se esboça o primeiro momento
da dialética das identificações. Ele está ligado
a um fenômeno de Gestalt, à percepção
muito precoce, na criança, da forma humana, forma esta que, como
sabemos, fixa seu interesse desde os primeiros meses e mesmo, no que tange
ao rosto humano, desde o décimo dia de vida. Mas o que demonstra
o fenômeno de reconhecimento que implica a subjetividade são
os sinais de jubilação triunfante e o ludismo de discernimento
que caracterizam, desde o sexto mês, o encontro com sua imagem no
espelho pela criança. Essa conduta contrasta vivamente com a indiferença
manifestada pelos animais que percebem essa imagem, como o chimpanzé,
por exemplo, quando eles têm a experiência de sua inutilidade
objetal, e ganha ainda mais destaque por se produzir numa idade em que a
criança ainda apresenta, quanto ao nível de sua inteligência
instrumental, um atraso em relação ao chimpanzé, com
quem só se iguala aos onze meses.
§ 66/112. O que chamei de estádio
do espelho tem o interesse de manifestar o dinamismo afetivo pelo qual
o sujeito se identifica primordialmente com a Gestalt visual de seu
próprio corpo: ela é, em relação à descoordenação
ainda muito profunda de sua própria motricidade, uma unidade ideal,
uma imago salutar; é valorizada por todo o desamparo original,
ligado à discordância intra-orgânica e relacional do
filhote do homem durante os [115] primeiros seis meses de vida,
nos quais ele traz os sinais, neurológicos e humorais,
de uma prematuração natal fisiológica.
§ 67/112. É essa captação
pela imago da forma humana, mais do que uma Einfühlung
cuja ausência tudo vem demonstrar na primeira infância, que
domina, entre os seis meses e os dois anos e meio, toda a dialética
do comportamento da criança na presença de seu semelhante.
Durante todo esse período, registram-se as reações
emocionais e os testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança
que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora. Do mesmo modo,
é numa identificação com o outro que ela vive toda
a gama das reações de imponência e ostentação,
cuja ambivalência estrutural suas condutas revelam com evidência,
escravo identificado com o déspota, ator com o espectador, seduzido
com o sedutor.
§ 68/112. Há nisso uma espécie
de encruzilhada estrutural onde devemos acomodar nosso pensamento, para
compreender a natureza da AGRESSIVIDADE no homem e sua relação
com o formalismo de seu eu e de seus objetos. Essa relação
erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que
o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina
a organização passional que ele irá chamar de seu eu.
§ 69/112. Essa forma se cristalizará,
com efeito, na tensão conflitiva interna ao sujeito, que determina
o despertar de seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui, o concurso
primordial se precipita numa concorrência agressiva, e é dela
que nasce a tríade do outro, do eu e do objeto, que, fendendo o espaço
da comunhão especular, inscreve-se nela segundo um formalismo que
lhe é próprio, e que domina a tal ponto a Einfühlung
afetiva que a criança nessa idade pode desconhecer a identidade
das pessoas que lhe são mais familiares, caso elas lhe apareçam
num meio inteiramente modificado.
§ 70 /112. Mas, se já desde a origem
o eu se afigura marcado por essa relatividade agressiva, onde os
espíritos carentes de objetividade poderão reconhecer as ereções
emocionais provocadas no animal a quem um desejo vem solicitar lateralmente,
no exercício de seu condicionamento experimental, como não
conceber que cada grande metamorfose instintiva a escandir a vida do indivíduo
irá novamente questionar sua delimitação, feita da
conjunção da história do sujeito com o impensável
inatismo de seu desejo?
§ 71/112. Eis por que nunca, a não
ser num limite do qual os maiores gênios jamais puderam aproximar-se,
o eu do homem é redutível [116] à sua identidade
vivida; e, nas disrupções depressivas dos revezes vivenciados
da inferioridade, ele gera essencialmente as negações mortais
que o fixam em seu formalismo. "Não sou nada do que me acontece.
Não és nada que tenha valor."
§ 72/112. Do mesmo modo, confundem-se
os dois momentos em que o sujeito nega a si mesmo e acusa o outro, e neles
descobrimos a estrutura paranóica do eu que encontra sua analogia
negações fundamentais valorizadas por Freud nos três
delírios, o do ciúme, o da erotomania e o de interpretação.
Trata-se, justamente, do delírio da bela alma misantrópica,
que rechaça para o mundo a desordem que compõe seu ser.
§ 73/112. A experiência subjetiva
deve ser habilitada de pleno direito a reconhecer o nó central da
AGRESSIVIDADE ambivalente que nosso momento cultural nos dá sob a
forma dominante do ressentimento, inclusive em seus aspectos mais arcaicos
na criança. Assim, por ter vivido num momento semelhante e por não
ter tido que sofrer com a resistência behaviorista, no sentido que
nos é próprio, santo Agostinho antecipou-se à psicanálise,
dando-nos uma imagem exemplar de tal comportamento nestes termos: "Vidi
ego et expertus sum zelantem parvulum: nondum loquebatur et intuebatur pallidus
amaro aspectu conlactaneum suum" - "Vi com meus olhos e conheci bem
uma criancinha tomada pelo ciúme: ainda não falava e já
contemplava, pálida e com uma expressão amarga, seu irmão
de leite." Assim liga ele imperecivelmente, à etapa infans
(anterior à fala) da primeira infância, a situação
da absorção especular: a criança contemplava, a reação
emocional; inteiramente pálida, 3 essa reativação das
imagens da frustração primordial; e com um olhar envenenado,
que são as coordenadas psíquicas e somáticas da AGRESSIVIDADE.
=[Esse parágrafo foi reformulado, pois a tradutora, traiu a expressão
do pensamento de Lacan.]*
§ 74/112. Foi somente a sra. Melanie
Klein que, trabalhando com acriança bem no limite do surgimento da
linguagem, ousou projetar a experiência subjetiva nesse período
anterior, onde, no entanto, a observação nos permite afirmar
sua dimensão, simples fato, por exemplo, de que uma criança
que não fala reage diferentemente a um castigo e a uma brutalidade.
§ 75/112. Através dela, ficamos
sabendo da função do recinto imaginário primordial
formado pela imago do corpo materno; através dela temos a
cartografia, desenhada pela mão das próprias crianças,
de seu império interior, e o atlas histórico das divisões
intestinas em que as imagos do pai e dos irmãos reais ou virtuais,
em que [117] a agressão voraz do próprio sujeito, negociam
sua dominação deletéria sobre suas regiões sagradas.
Sabemos também da persistência, no sujeito, da sombra dos maus
objetos internos, ligados a alguma associação acidental
(para usar um termo do qual seria bom valorizarmos o sentido orgânico
que nossa experiência lhe confere, em oposição ao sentido
abstrato que ele preserva da ideologia humeana). Através disso, podemos
compreender por quais impulsos estruturais a reevocação de
certas personae imaginárias e a reprodução de
certas inferioridades situacionais podem desnortear, da maneira mais
rigorosamente previsível, as funções voluntárias
no adulto, ou seja, qual é sua incidência despedaçadora
na imago da identificação original.
§ 76/112. Ao nos mostrar a primordialidade
da "posição depressiva", o extremo arcaísmo da subjetivação
de um kakon, Melanie Klein alarga os limites em que podemos ver em
ação a função subjetiva da identificação
e, particularmente, permite-nos situar como totalmente original a formação
primária do supereu.
§ 77/112. Mas, precisamente, há
um interesse em delimitar a órbita em que se ordenam, para nossa
reflexão teórica, as relações, que se acham
longe de estar todas elucidadas, da tensão de culpa, da nocividade
oral, da fixação hipocondríaca e até mesmo desse
masoquismo primordial que excluímos de nossos propósitos para
disso tudo isolar a noção de uma AGRESSIVIDADE ligada à
relação narcísica e às estruturas de desconhecimento
e objetivação sis¬temáticos que caracterizam a
formação do eu.
§ 78/112. À Urbild dessa
formação, embora alienante por sua função externalizadora,
corresponde uma satisfação própria, que se prende à
integração de uma desordem orgânica original, satisfação
esta que convém conceber na dimensão de uma deiscência
vital constitutiva do homem, =[deiscência, abertura]* e
que torna impensável a idéia de um meio que lhe seja previamente
formado, libido "negativa" que faz resplandecer novamente a idéia
herac1itiana da Discórdia, sustentada pelo efésio como anterior
à harmonia.
§ 79/112. Nenhuma necessidade, portanto, de ir
buscar mais longe a fonte dessa energia sobre a qual Freud, a respeito do
problema da repressão, se pergunta de onde o eu a retira, para colocá-la
a serviço do "princípio de realidade".
§ 80/112. Nenhuma dúvida de que
ela provém da "paixão narcísica", desde que se conceba
o eu segundo a noção subjetiva que aqui promovemos
por ser conforme ao registro de nossa experiência; as dificuldades
teóricas encontradas por Freud parecem-nos [118] prender-se,
com efeito, à esta miragem de objetivação, herdada
da psicologia clássica, que se constitui pela idéia do sistema
percepção-consciência, e onde de repente parece
ignorada a realidade de tudo o que o eu negligencia, escotomiza e
desconhe nas sensações que o fazem reagir à realidade,
bem como de tudo o que ele ignora, silencia e ata nas significações
que recebe da linguagem: desconhecimento bastante surpreendente a desencaminhar
o próprio homem que soubera forçar os limites do inconsciente
pelo poder de sua dialética.
§ 81/112. Assim como a opressão
insensata do supereu está na raiz dos imperativos motivados
da consciência moral, a paixão desvairada, que especifica o
homem, por imprimir na realidade sua imagem, é o fundamento obscuro
das mediações racionais da vontate.
§ 82/112. A noção de uma
AGRESSIVIDADE como tensão correlata à estrutura narcísica
no devir do sujeito permite compreender, numa função formulada
com muita simplicidade, toda sorte de acidentes e atipias desse devir.
§ 83/112. Indicaremos aqui como concebemos
sua ligação dialética com a função do
complexo de Édipo. Esta, em sua normalidade, é de sublimação,
que designa muito exatamente uma reformulação identificatória
do sujeito, e, como escreveu Freud tão logo sentiu a necessidade
de uma coordenação "tópica" dos dinamismos psíquicos,
uma identificação secundária, por introjeção
da imago do genitor do mesmo sexo.
§ 84/112. A energia dessa identificação
é dada pelo primeiro surgimento biológico da libido genital.
Mas é claro que o efeito estrutural de identificação
com o rival não é evidente, a não ser no plano da fábula,
e só é concebível se tiver sido preparado por uma identificação
primária que estrutura o sujeito como rival de si mesmo. De fato,
o toque de impotência biológica encontra-se aqui, assim como
o efeito de antecipação característico da gênese
do psiquismo humano, na fixação de um "ideal" imaginário,
que a análise mostrou decidir sobre a conformação do
"instinto” ao sexo fisiológico do indivíduo. Ponto, diga-se
de passagem, cuja importância antropológica seria impossível
sublinharmos em demasia. Mas, o que nos interessa aqui é a função,
que chamaremos apaziguadora, do ideal do eu, a conexão de
sua normatividade libidinal com uma normatividade cultural, ligada desde
o alvorecer da história à imago
do pai. Nisso jaz, evidentemente, a importância preservada por uma
obra de Freud, Totem [119] e tabu, malgrado o círculo
mítico que a vicia, na medida em que ela faz derivar do evento mitológico,
isto é, do assassinato do pai, a dimensão subjetiva que lhe
dá sentido, a culpa. =[???]*
§ 85/112. Freud, com efeito, mostra-nos
que a necessidade de uma participação que neutralize o conflito,
inscrito, após o assassinato, na situação de rivalidade
entre os irmãos, é o fundamento da identificação
com o Totem paterno. Assim, a identificação edi¬piana
é aquela através da qual o sujeito transcende a AGRESSIVIDADE
constitutiva da primeira individuação subjetiva. Insistimos
em outra ocasião no passo que ela constitui na instauração
dessa distância pela qual, com sentimentos da ordem do respeito, realiza-se
toda uma assunção afetiva do próximo.
§ 86/112. Somente a mentalidade antidialética
de uma cultura que, por ser dominada por fins objetivantes, tende a reduzir
ao ser do eu toda a atividade subjetiva, pode justificar o assombro produzido
num van den Steinen pelo bororo que profere: "Eu sou uma arara." E todos
os sociólogos da "mentalidade primitiva" esfal¬fam-se em torno
dessa profissão de identidade, a qual, no entanto, nada tem de mais
surpreendente para a reflexão senão afirmar "Eu sou médico",
ou "Sou cidadão da república francesa", e com certeza apresenta
menos dificuldades lógicas do que pro¬mulgar "Eu sou um homem",
o que, em seu pleno valor, só pode querer dizer isto: "Sou semelhante
àquele em quem, ao reconhecê-lo como homem, baseio-me para me
reconhecer como tal." Essas diversas fórmulas só são
compreensíveis, no final das contas, em referência à
verdade do "Eu é um outro", menos fulgurante na intuição
do poeta do que evidente aos olhos do psicanalista.
§ 87/112. Quem, senão nós,
há de questionar o status objetivo desse [eu] que uma evolução
histórica própria de nossa cultura tende a confundir com o
sujeito? Essa anomalia mereceria ser manifestada em suas incidências
particulares em todos os planos da linguagem, e, para começar, no
sujeito gramatical da primeira pessoa em nossas línguas, nesse "eu
amo" que hipostasia a tendência num sujeito que a nega. Miragem impossível,
em formas lingüistícas entre as quais se alinham as mais antigas,
e onde o sujeito aparece fundamentalmente na posição de determinativo
ou de instrumento da ação.
§ 88/112. Deixemos por aqui a crítica
de todos os abusos do cogito ergo sum, para lembrar que o eu, em
nossa experiência, representa o centro de todas as resistências
ao tratamento dos sintomas. [120]**
§ 89/112. Tinha de acontecer que a análise,
depois de haver enfatizado a reintegração das tendências
excluídas pelo eu, como subjacentes aos sintomas que ela havia
atacado inicialmente, em sua maioria ligados aos fracassos da identificação
edipiana, viesse a desvendar a dimensão "moral" do problema.
§ 90/112. E foi paralelamente que vieram
para o primeiro plano, de um lado, o papel desempenhado pelas tendências
agressivas na estrutura dos sintomas e da personalidade, e de outro, toda
sorte de concepções" valorizadoras" da libido liberada, dentre
as quais uma das primeiras deveu-se aos psicanalistas franceses, sob o registro
da oblatividade.
§ 91/112. Está claro, com efeito,
que a libido genital se exerce no sentido de um ultrapassamento, aliás
cego, do indivíduo em prol da espécie, e que seus efeitos
sublimadores na crise do Édipo estão na origem de todo o processo
de subordinação cultural do homem. Não obstante,
seria impossível enfatizarmos em demasia o caráter irredutível
da estrutura narcísica, bem como a ambigüidade de uma noção
que tenderia a desconhecer a constância da tensão agressiva
em toda vida moral que comporte a sujeição a essa estrutura:
ora, nenhuma oblatividade poderia liberar seu altruísmo. E foi por
isso que La Rochefoucauld pôde formular sua máxima, na qual
seu rigor harmoniza-se com o tema fundamental de seu pensamento, sobre a
incompatibilidade entre o casamento e os prazeres.
§ 92/112. Deixaríamos degradar-se
a contundência de nossa experiência ao nos enganarmos, senão
a nossos pacientes, quanto a alguma harmonia preestabelecida que isentasse
de qualquer indução agressiva, no sujeito, os conformismos
sociais que a redução dos sintomas torna possíveis.
§ 93/112. E uma perspicácia diferente
mostraram os teóricos da Idade Média, que debatiam o problema
do amor entre dois pólos, o de uma teoria "física" e o de
uma teoria" extática", ambos implicando a reabsorção
do eu do homem, quer por sua reintegração num bem
universal, quer pela efusão do sujeito para objeto sem alteridade.
§ 94/112. É em todas as fases
genéticas do indivíduo, em todos os graus de realização
humana em sua pessoa, que encontramos esse momento narcísico no sujeito,
num antes em que ele deve assumir uma frustração libidinal
e num depois em que ele transcende a si mesmo numa sublimação
normativa. [121]**
§ 95/112. Essa concepção
faz-nos compreender a AGRESSIVIDADE implicada nos efeitos de todas as regressões,
de todos os abortamentos, de todas as recusas do desenvolvimento típico
do sujeito, e especialmente no plano da realização sexual,
ou, mais exatamen¬te, no interior de cada uma das grandes fases determinadas
na vida humana pelas metamorfoses libidinais cuja grande função
a análise demonstrou: desmame, Édipo, puberdade, maturidade,
ou maternidade, ou mesmo clímax involutivo. E dissemos, muitas vezes,
que a ênfase inicialmente depositada pela doutrina nas represálias
agressivas do conflito edipiano no sujeito correspondeu ao fato de que os
efeitos do complexo foram inicialmente percebidos nos fracassos de
sua solução.
§ 96/112. Não é preciso
salientar que uma teoria coerente da fase narcísica esclarece a realidade
da ambivalência própria das "pulsões parciais" da escopofilia,
do sadomasoquismo e da homossexualidade, assim como o formalismo estereotipado
e cerimonial da AGRESSIVIDADE que neles se manifesta: visamos aqui o aspecto,
freqüentemente muito pouco "reconhecido", da apreensão do outro
no exercício de algumas dessas perversões, a seu valor subjetivo,
a rigor bem diferente das reconstruções existenciais, aliás
muito cativantes, que um Jean-Paul Sartre soube fornecer dela.
§ 97/112. Quero ainda indicar de passagem
que a função decisiva que conferimos à imago do
corpo próprio, na determinação da fase narcísica,
permite compreender a relação clínica entre as ano¬malias
congênitas da lateralização funcional (sinistrismo)
e todas as formas de inversão da normalização sexual
e cultural. Isso nos lembra o papel atribuído à ginástica
no ideal do "belo e bom" da educação antiga, e nos leva à
tese social com que concluímos.
TESE 05: Tal noção da AGRESSIVIDADE,
como uma das coorde¬nadas intencionais do eu humano, e especialmente
relativa à categoria do espaço, faz conceber seu papel na neurose
moderna e no mal-estar da civilização.
§ 98/112. @[Queremos aqui apenas descortinar
uma perspectiva sobre os vereditos que nos permite nossa experiência
na ordem social atual. A preeminência da AGRESSIVIDADE em nossa civilização
já [132] estaria suficientemente demonstrada pelo fato de
ela ser habitualmente confundida, na moral mediana, com a virtude da força.]***
Compreendida, mui justificadamente, como significativa de um desenvolvimento
do eu, ela é tida como sendo de um uso social indispensável,
e tão comumente aceita nos costumes que, para aquilatar sua particularidade
cultural, é preciso nos imbuirmos do sentido e das virtudes eficazes
de uma prática como a do jang na moral pública e privada
dos chineses.
§ 99/112. Ainda que isso fosse supérfluo,
o prestígio da idéia da luta pela vida seria suficientemente
atestado pelo sucesso de uma teoria que conseguiu tornar aceitável
a nosso pensamento, como explicação válida dos desenvolvimentos
da vida, uma seleção baseada na simples conquista do espaço
pelo animal. Do mesmo modo, o sucesso de Darwin parece dever-se a ele haver
projetado as predações da sociedade vitoriana e a euforia
econômica que sancionou a devastação social que ela
inaugurou em escala planetária, e a havê-las justificado pela
imagem de um laissez-faire dos devoradores mais fortes em sua competição
por sua presa natural.
§ 100/112. Antes dele, no entanto, Hegel
havia fornecido a teoria perene da função própria da
AGRESSIVIDADE na ontologia humana, parecendo profetizar a lei férrea
de nossa época. Foi do conflito entre o Senhor e o Servo que ele
deduziu todo o progresso subjetivo e objetivo de nossa história,
fazendo surgir dessas crises as sínteses que representam as formas
mais elevadas do status de pessoa no Ocidente, do estóico ao cristão,
e até ao futuro cidadão, do Estado Universal.
§ 101/112. Aqui, o indivíduo
natural é tido por nada, já que o sujeito humano efetivamente
o é diante do Senhor absoluto que lhe é dado na morte.
@[A satisfação do desejo humano só é possível
se mediatizada pelo desejo e pelo trabalho do outro.]*** Se, no conflito
entre o Senhor e o Servo, é o reconhecimento do homem pelo homem que
está em jogo, é também numa negação radical
do valores naturais que ele é promovido, ou seja, que se exprime na
tirania estéril do senhor ou na tirania fecunda do trabalho.
§ 102/112. Sabemos da armadura conferida
por essa doutrina profunda ao espartaquismo construtivo do escravo, recriado
pela barbárie do século darwiniano.
§ 103/112. A relativização
de nossa sociologia, pela compilação científica das
formas culturais que destruímos no mundo, e igualmente as [123]
análises, marcadas por traços verdadeiramente psicanalíticos,
em que a sabedoria de um Platão nos mostra a dialética comum
às paixões da alma e da pólis, podem esclarecer-nos
sobre a razão dessa barbárie. Trata-se, para dizê-lo
no jargão que corresponde a nossas abordagens das necessidades subjetivas
do homem, da ausência crescente de todas as saturações
do supereu e do ideal do eu que são realizadas em todo
tipo de formas orgânicas das sociedades tradicionais, formas estas
que vão dos ritos da inti¬midade cotidiana às festas periódicas
em que se manifesta a comunidade. Já não as conhecemos senão
sob os aspectos mais nitidamente degradados. Mais ainda, por abolir a polaridade
cósmica dos princípios masculino e feminino, nossa sociedade
conhece todas as incidências psicológicas próprias do
chamado fenômeno moderno da luta entre os sexos. Comunidade
imensa, no limite entre a anarquia "democrática" das paixões
e seu nivelamento desesperado pelo "grande zangão alado" da tirania
narcísica, está claro que a promoção do eu
em nossa existência leva, conforme a concepção utilitarista
do homem que a secunda, a realizar cada vez mais o homem como indivíduo,
isto é, num isolamento anímico sempre mais aparentado com sua
derrelição original.
§ 104/112. @[Correlativamente, ao que
parece, ou seja, por razões cuja contingência histórica
repousa numa necessidade que algumas de nossas considerações
permitem discernir, estamos engajados num projeto técnico em escala
da espécie: o problema é saber se o conflito entre o Senhor
e o Servo encontrará sua solução no serviço
do autômato, se uma psicotécnica que já se revela prenhe
de aplicações cada vez mais precisas se empenhará em
fornecer condutores de bólidos e supervisores de centrais reguladoras.]***
§ 105/112. A noção do
papel da simetria espacial na estrutura narcísica do homem é
essencial para lançar as bases de uma análise psicológica
do espaço, da qual só podemos aqui indicar o lugar. Digamos
que a psicologia animal revelou-nos que a relação do indivíduo
com um certo campo espacial é, em algumas espécies, socialmente
demarcada, de uma maneira que a eleva à categoria do pertencimento
subjetivo. Diremos que é a possibilidade subjetiva da projeção
especular de tal campo no campo do outro que confere ao espaço humano
sua estrutura originalmente "geométrica", estrutura que preferiríamos
chamar de caleidoscópica. [124]**
§ 106/112. Assim é, pelo menos,
o espaço onde se desenvolve o conjunto de imagens do eu, e que vem
juntar-se ao espaço objetivo da realidade. Mas porventura ele nos
oferece uma base garantida? No próprio "espaço vital" onde
se desenvolve a competição humana sempre mais acirrada, um
observador estelar de nossa espécie concluiria por necessidades de
evasão de efeitos singulares. Mas, acaso a extensão conceitual
a que acreditamos ter conseguido reduzir o real não parece recusar
ainda mais seu apoio ao pensamento fisicalista? Assim, por ter levado nosso
domínio aos confins da matéria, não irá esse
espaço "realizado”, que nos faz parecerem ilusórios os grandes
espaços imaginários onde se movimentavam as livres fantasias
dos antigos sábios, por sua vez, desvanecer-se num bramido do fundo
universal?
§ 107/112. Sabemos, de qualquer modo,
por onde procede nossa, adaptação a essas exigências,
e que a guerra revela-se cada vez mais a parteira obrigatória e necessária
de todos os progressos de nossa organização. Seguramente,
a adaptação dos adversários em sua oposição
social parece progredir para um concurso de formas, porém podemos
indagar-nos se este é motivado por uma aliança na necessidade
ou pela identificação cuja imagem Dante nos mostra, em seu
Inferno, num beijo mortal. =[!!!]*
§ 108/112. Além do mais, não
parece que o indivíduo humano, como material de tal luta, seja absolutamente
infalível. E a detecção dos "maus objetos internos",
responsáveis pelas reações podem ser muito caras em
equipamentos) de inibição e escalada dos acontecimentos, detecção
à qual recentemente aprendemos a proceder mediante os elementos das
tropas de choque, aviação de caça, do pára-quedas
e dos grupos de assalto, prova que a guerra, depois de muito nos haver ensinado
sobre a gênese das neuroses, mostra-se talvez exigente demais em matéria
de sujeitos cada vez mais neutros numa AGRESSIVIDADE cujo patético
é indesejável.
§ 109/112. @[Não obstante, também
quanto a isso temos algumas verdades psicológicas a introduzir, quais
sejam, o quanto o pretenso "instinto de conservação" do eu
tende a enfraquecer na vertigem da dominação do espaço
e, sobretudo, o quanto o medo da morte, do "Senhor absoluto", suposto na consciência
por toda tradição filosófica desde Hegel, está
psicologicamente subordinado ao medo narcísico da lesão do
corpo próprio.]*** [125]**
§ 110/112. Não nos parece vão
ter sublinhado a relação mantida com a dimensão do
espaço por uma tensão subjetiva, que, no mal-estar da civilização,
vem corroborar a da angústia, tão humanamente abordada por
Freud, e que se desenvolve na dimensão temporal. Também a esta
esclareceríamos facilmente por significações contemporâneas
de duas filosofias que corresponderiam às que acabamos de evocar:
a de Bergson, por sua insuficiência natu¬ralista, e a de Kierkegaard,
por sua significação dialética.
§ 111/112. Somente no cruzamento dessas
duas tensões dever-se-ia con¬templar a assunção,
pelo homem, de seu despedaçamento original, mediante o que podemos
dizer que a cada instante ele constitui seu mundo através de seu
suicídio, e cuja experiência psicológica Freud teve
a audácia de formular, por mais paradoxal que seja sua expressão
em termos biológicos, isto é, como "instinto de morte".
§ 112/112. No homem "liberado" da sociedade
moderna, eis que esse despedaçamento revela, até o fundo do
ser, sua pavorosa fissura. É a neurose de autopunição,
com os sintomas histérico-hipocondríacos de suas inibições
funcionais, com as formas psicastênicas de suas desrealizações
do outro e do mundo, com suas seqüências sociais de fracasso
e de crime. É essa vítima comovente, evadida de alhures, inocente,
que rompe com o exílio que condena o homem moderno à mais
assustadora galé social, que acolhemos quando ela vem a nós;
é para esse ser de nada que nossa tarefa cotidiana consiste em reabrir
o caminho de seu sentido, numa fraternidade discreta em relação
à qual sempre somos por demais desiguais. [126]**
____________
Notas:
*. Os comentários do primeiro parágrafo e os dos colchetes
inseridos no texto são de José Luiz Caon.
**. Número da página dos Escritos (Jorge Zahar).
***. O colchete precedido de uma arroba é um sinal de destaque inserido
por JLC.
Nota da BSFREUD:
Esse texto foi escaneado
por José Luiz Caon e aqui publicado por sua gentil autorização.