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FREUD
AGRESSIVIDADE EM PSICANÁLISE
Jacques Lacan
(1948)
RELATÓRIO TEÓRICO APRESENTADO NO XI
CONGRESSO DOS PSICANALISTAS DE líNGUA FRANCESA, REUNIDO EM BRUXELAS
EM MEADOS DE MAIO DE 1948.
§ 01/112. O relatório precedente
apresentou-lhes o emprego que fazemos da noção de AGRESSIVIDADE
(01) na clínica e na terapêutica. Resta-me a tarefa de provar
perante os senhores se é possível formar dela um conceito tal
que ela possa aspirar a um uso científico, isto é, apropriado
a objetivar fatos de uma ordem comparável na realidade, ou, mais categoricamente,
a estabelecer uma dimensão da experiência cujos fatos objetivados
possam ser considerados como variáveis.
__________
01: Exceto essa primeira linha, este texto é
fornecido intacto.
§ 02/112. Todos temos em comum, nesta
assembléia, uma experiência fundamentada numa técnica,
num sistema de conceitos ao qual somos fiéis, tanto por ele ter sido
elaborado por aquele mesmo que nos abriu todos os caminhos dessa experiência,
quanto por trazer a marca viva das etapas dessa elaboração.
Ou seja, ao contrário do dogmatismo que nos imputam, sabemos
que esse sistema permanece aberto, não apenas em seu acabamento, mas
em vários de seus pontos de articulação.
§ 03/112. Esses hiatos parecem conjugar-se
na significação enigmática que Freud promoveu como instinto
de morte: testemunho, semelhante à figura da Esfinge, da aporia contra
a qual se chocou esse grande pensamento, na mais profunda tentativa já
surgida de formular uma experiência do homem no registro da biologia.
§ 04/112. Essa aporia está no
cerne da noção de AGRESSIVIDADE, sobre a qual avaliamos melhor
a cada dia o papel que convém atribuir-lhe na economia psíquica.
§ 05/112. Eis por que a questão
da natureza metapsicológica das tendências mortíferas
é incessantemente recolocada em pauta por [104]** nossos colegas
teóricos, não sem contradição e, freqüentemente,
convém dizer, com certo formalismo.
§ 06/112. Quero apenas propor-lhes algumas
observações ou teses que me foram inspiradas por minhas reflexões
de longa data em torno dessa verdadeira aporia da doutrina, e também
pelo sentimento que tenho, a partir da leitura de numerosos trabalhos, de
nossa responsabilidade na atual evolução da psicologia de laboratório
e de tratamento. - Penso, por um lado, nas chamadas pesquisas behavioristas,
que me parecem dever o melhor de seus resultados (que às vezes se
nos afiguram um tanto escassos para o aparato de que se cercam) ao uso,
amiúde implícito, que fazem das categorias que a análise
trouxe para a psicologia; por outro, nesse gênero de tratamento
- quer se dirija aos adultos ou às crianças - que se pode agrupar
sob a denominação de tratamento psicodramático,
que busca sua eficácia na ab-reação que ele tenta esgotar
no plano da dramatização, e onde, mais uma vez, a
análise clássica fornece as noções eficazmente
diretivas.
TESE 01: A AGRESSIVIDADE se manifesta numa experiência
que é subjetiva por sua própria constituição.
§ 07/112. Não é inútil,
com efeito, voltar ao fenômeno da EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA.
Por visar dados primários, essa reflexão é freqüentemente
omitida.
§ 08/112. Podemos dizer que a ação
psicanalítica se desenvolve na e pela comunicação verbal,
isto é, numa apreensão dialética do sentido. Ela
supõe, portanto, um sujeito que se manifeste como tal para um outro.
§ 09/112. Essa subjetividade não nos pode
ser objetada como devendo ser obsoleta, conforme o ideal a que satisfaz a
física, que a elimina através do aparelho registrador, sem
no entanto poder evitar a suspeita do erro pessoal na leitura do resultado.
§ 10/112. Somente um sujeito pode compreender
um sentido; inversamente, todo fenômeno de sentido implica um sujeito.
Na análise, um sujeito se dá como podendo ser compreendido,
e de fato o é: a introspecção e a intuição
pretensamente projetiva não constituem, aqui, os vícios de
princípio que uma psicologia, em seus primeiros passos no caminho
da ciência, considerou irredutíveis. Isso equivaleria a transformar
em impasse momentos abstrata[105]mente isolados do diálogo,
quando é preciso fiar-se em seu movimento: foi mérito de Freud
ter assumido os riscos deles, antes de dominá-los através de
uma técnica rigorosa.
§ 11/112. Podem seus resultados fundar
uma ciência positiva? Sim, se a expriência for controlável
por todos. Ora, constituída entre dois sujeitos, dos quais um desempenha
no diálogo um papel de impessoalidade ideal (ponto que requererá
mais adiante nossa atenção), a experiência, uma vez consumada,
e unicamente sob as condições de capacidade exigíveis
para qualquer investigação especial, pode ser retomada pelo
outro sujeito com um terceiro. Essa via aparentemente iniciática
é apenas uma transmissão por recorrência, com a qual
não há por que nos surpreendermos, já que ela se prende
à própria estrutura, bipolar, de toda subjetividade. Somente
a velocidade de difusão da experiência é afetada por
ela, e, se sua restrição à área de uma cultura
é discutível, não só nenhuma antropologia sadia
pode extrair disso uma objeção, como tudo indica que seus
resultados possam ser suficientemente relativizados para uma generalização
que satisfaça ao postulado humanitário, inseparável
do espírito da ciência.
TESE 02: A AGRESSIVIDADE, na experiência,
nos é dada como intenção de agressão e como imagem
de desmembramento corporal, e é nessas modalidades que se demonstra
eficiente.
§ 12/112. A EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA
permite-nos experimentar a pressão intencional. Nós a lemos
no sentido simbólico dos sintomas, a partir do momento em que o sujeito
renuncia às defesas pelas quais os desvincula das relações
que eles mantêm com sua vida cotidiana e com sua história -
na finalidade implícita de suas condutas e suas recusas, nos fracassos
de sua ação, na confissão de suas fantasias privilegiadas,
nos rébus da vida onírica.
§ 13/112. Quase podemos medi-la
na modulação reivindicatória que às vezes
sustenta todo o discurso, em suas suspensões, suas hesitações,
suas inflexões e seus lapsos, nas inexatidões do relato, nas
irregularidades da aplicação da regra, nos atrasos para as
sessões, nas ausências premeditadas, muitas vezes nas recriminações,
nas censuras, nos medos fantasísticos, nas reações
emocionais de cólera e nas demonstrações para fins
intimidatórios, [106]** sendo tão raras as violências
propriamente ditas quanto o implicam a conjuntura de apelo que levou ao médico
o doente e a transformação dela, aceita por este último,
numa convenção de diálogo.
§ 14/112. A eficácia própria
dessa intenção agressiva é manifesta: nós a constatamos
freqüentemente na ação formadora de um indivíduo
sobre as pessoas de sua dependência: a AGRESSIVIDADE intencional corrói,
mina, desagrega; ela castra; ela conduz à morte: “E eu que acreditava
que você era impotente!", gemia num uivo de tigresa uma mãe
a seu filho, que acabara de lhe confessar, não sem dificuldade, suas
tendências homossexuais. E pudemos ver que sua permanente AGRESSIVIDADE
de mulher viril não deixara de surtir efeitos; sempre nos foi impossível,
em casos semelhantes, desviar seus ataques da própria empreitada analítica.
§ 15/112. Essa AGRESSIVIDADE se exerce,
é claro, em meio a restrições reais. Mas sabemos por
experiência que ela é não menos eficaz pela via da expressividade:
um genitor severo intimida pela simples presença, e basta que seja
brandida a imagem do PUNIDOR para que a criança a forme. Ela tem repercussões
mais amplas do que qualquer sevícia.
§ 16/112. Esses fenômenos mentais
a que chamamos imagens, termo cujo valor expressivo é confirmado
por todas as acepções semânticas, após os perpétuos
fracassos registrados pela psicologia de tradição clássica
na tarefa de dar conta deles, a psicanálise foi a primeira a se revelar
à altura da realidade concreta que eles representam. É que
ela partiu da função formadora das imagens no sujeito e revelou
que, se as imagens atuais determinam tais ou quais inflexões individuais
das tendências, é na condição de variações
das matrizes que constituem, para os próprios" instintos" , esses
outros específicos que fazemos corresponder à antiga denominação
de imago.
§ 17/112. Entre estes últimos,
há os que representam os vetores eletivos das intenções
agressivas, que elas dotam de uma eficácia que podemos chamar de mágica.
São as imagens de castração*, emasculação,
mutilação, desmembramento, desagregação, eventração,
devoração, explosão do corpo, em suma, as imagos
que agrupei pessoalmente sob a rubrica, que de fato parece estrutural, de
imagos do corpo despedaçado.
_________
*éviration, melhor traduzido por eviração (Nota
da BSF)
§ 18/112. Há aí uma relação
específica do homem com seu próprio corpo, a qual se manifesta
igualmente na generalidade de uma série [107] práticas
sociais - desde os ritos da tatuagem, da incisão e da circuncisão,
nas sociedades primitivas, até aquilo que poderíamos chamar
de arbitrariedade procustiana da moda, na medida em que ela desmente, nas
sociedades avançadas, o respeito às formas naturais do corpo
humano, cuja idéia é tardia na cultura.
§ 19/112. Basta escutar a fabulação
e as brincadeiras das crianças, isoladas ou entre si, entre os dois
e os cinco anos, para saber que arrancar a cabeça e furar a barriga
são temas espontâneos de sua imaginação, que a
experiência da boneca desmantelada só faz satisfazer.
§ 20/112. Há que folhear um álbum
que reproduza o conjunto e os detalhes da obra de Hieronymus Bosch, para
ali reconhecer o atlas de todas as imagens agressivas que atormentam os homens.
A prevalência dentre elas, descoberta pela análise, das imagens
de uma autoscopia primitiva dos órgãos orais e derivados da
cloaca gerou, ali, formas de demônios. Não faltam nem mesmo
a ogiva das angustiae do nascimento, que encontramos na porta dos precipícios
para onde eles empurram os condenados, nem a estrutura narcísica,
que podemos evocar nas esferas de vidro em que se acham aprisionados os parceiros
exaustos do jardim das delícias.
§ 21/112. Reencontramos incessantemente
essas fantasmagorias nos sonhos, particularmente no momento em que a análise
parece vir refletir-se no fundo das fixações mais arcaicas.
E evocarei o sonho de um de meus pacientes, em quem as fantasias agressivas
manifestavam-se por fantasias obsedantes; no sonho, ele se via, estando num
carro com a mulher de seus amores difíceis, perseguido por um peixe
voador, cujo corpo de bexiga de ar deixava transparecer um nível de
líquido horizontal, imagem de perseguição vesical de
grande clareza anatômica.
§ 22/112. Todos esses são dados
primordiais de uma Gestalt própria da agressão no homem
e ligada ao caráter simbólico, não menos do que ao cruel
refinamento das armas que ele fabrica, pelo menos no estágio artesanal
de sua indústria. Essa função imaginária se
esclarecerá em nossas colocações.
§ 23/112. Notamos aqui que, ao se tentar
uma redução behaviorista do processo psicanalítico -
coisa a que uma preocupação com o rigor, a meu ver injustificada,
impeliria alguns de nós -, ele é mutilado de seus dados subjetivos
mais importantes, dos quais as fantasias privilegiadas são as testemunhas
na consciência e que nos permitiram conceber a imago, forma
ora a identificação.
TESE 03: Os impulsos de AGRESSIVIDADE
decidem sobre as razões que motivam a técnica da análise.
§ 24/112. O diálogo em si parece
constituir uma renúncia à AGRESSIVIDADE: a filosofia, desde
Sócrates, sempre depositou nele a esperança de fazer triunfar
a via racional. E, no entanto, desde o momento em que Trasímaco fez
sua retirada demente no começo do grande diálogo da República,
o fracasso da dialética verbal só tem feito demonstrar-se com
imensa freqüência.
§ 25/112. Sublinhei que o analista curava
pelo diálogo, e curava loucuras igualmente grandes; que virtude, portanto,
acrescentou-lhe Freud?
§ 26/112. A regra proposta ao paciente
na análise deixa-o avançar para uma intencionalidade cega para
qualquer outro fim que não sua libertação de um sofrimento
ou de uma ignorância dos quais ele nem sequer conhece os limites.
§ 27/112. Sua voz é a única
a se fazer ouvir, por um tem o cuja a duração fica a critério
do analista. Particularmente, logo lhe fica patente, e aliás
confimada, a abstenção do analista em lhe responder em qualquer
plano de conselho ou projeto. Há nisso um limite que parece ir ao
encontro do fim desejado e que deve justificar-se por algum motivo profundo.
§ 28/112. Que preocupação
condiciona, portanto, diante dele a atitude do analista? A de oferecer ao
diálogo um personagem tão desprovido quanto possível
de características individuais; nós nos apagamos, saímos
do campo em que possam ser percebidos o interesse, a simpatia e a reação
buscados por aquele que fala no rosto do interlocutor; evitamos qualquer
manifestação de nossos gostos pessoais, escondemos o que pode
traí-los, nos despersonalizamos e tendemos, para esse fim, a representar
para o outro um ideal de impassibilidade.
§ 29/112. Nisso, não exprimimos
apenas a apatia que tivemos de realizar em nós mesmos para estar em
condições de compreender nosso sujeito, nem tampouco preparamos
o realce de oráculo que, contra esse fundo de inércia, deve
assumir nossa intervenção interpretativa.
§ 30/112. Queremos evitar uma cilada,
que esse apelo já encerra, marcado pelo eterno patético da
fé, que o doente nos dirige. Ele comporta um segredo: “Toma para ti",
dizem-nos, “essa dor que pesa sobre meus ombros; mas, satisfeito, sereno e
confortável como te vejo, não podes ser digno de portá-la."
[109]
§ 31/112. O que aqui aparece como orgulhosa reivindicação
do sofri¬mento mostrará sua face - e, às vezes, num momento
tão decisivo que entra na "reação terapêutica
negativa" que reteve a atenção de Freud - sob a forma da resistência
do amor-próprio, para tomarmos esse termo em toda a profundidade que
lhe deu La Rochefoucauld, e que amiúde se declara assim: "Não
posso aceitar a idéia de ser libertado por outro que não eu
mesmo."
§ 32/112. Claro, numa exigência
mais insondável do coração, é a participação
em seu sofrimento que o doente espera e nos. Mas é a reação
hostil que guia nossa prudência, e que já inspirara a Freud
sua cautela contra qualquer tentação de bancar o profeta. Somente
os santos são suficientemente desprendidos da mais profunda das paixões
comuns para evitar os contragolpes agressivos da caridade.
§ 33/112. Quanto a citar o exemplo de
nossas virtudes e nossos méritos, nunca vi recorrer a isso senão
um certo grande padroeiro, totalmente imbuído de uma idéia
tão austera quanto inocente de seu valor apostólico; e penso
ainda no furor que ele desencadeou.
§ 34/112. Aliás, como nos surpreendermos
com essas reações, nós que denunciamos os impulsos agressivos
ocultos sob todas as chamadas atividades filantrópicas?
§ 35/112. Devemos, no entanto, pôr
em jogo a AGRESSIVIDADE do sujeito a nosso respeito, já que essas
intenções, como sabemos, compõem a transferência
negativa que é o nó inaugural do drama analítico.
§ 36/112. Esse fenômeno representa,
no paciente, a transferência imaginária, para nossa pessoa,
de uma das imagos mais ou menos arcaicas que, por um efeito de subdução
simbólica, degrada, desvia ou inibe o ciclo de uma dada conduta, que,
por um acidente de recalque, excluiu do controle do eu uma dada função
e um dado segmento corporal, que, por uma ação de identificação,
deu sua forma a tal instância da personalidade.
§ 37/112. Podemos ver que basta o pretexto
mais fortuito para provocar a intenção agressiva que reatualiza
a imago, instalada permanentemente no plano de sobredeterminação
simbólica a que chamamos o inconsciente do sujeito, com sua correlação
intencional.
§ 38/112. Tal mecanismo revela-se, muitas
vezes, extremamente simples na histeria: no caso de uma moça afetada
por astasia-abasia, que vinha há meses resistindo às tentativas
de sugestão terapêutica dos mais diversos estilos, meu personagem
viu-se imediatamente [110] identificado com a constelação
dos mais desagradáveis traços que para ela era concretizada
pelo objeto de uma paixão, aliás bastante marcada por um toque
delirante. A imago subjacente era a de seu pai, de quem bastou que
eu a fizesse observar que lhe faltara o apoio (carência que eu sabia
haver efetivamente dominado sua biografia, e num estilo muito romanesco)
para que ela se descobrisse curada de seu sintoma, sem que, poderíamos
dizer, nada entendesse do que havia acontecido, e que a paixão mórbida,
aliás, fosse afetada por isso.
§ 39/112. Esses nós são
mais difíceis de desatar, como se sabe, na neurose obsessiva, justamente
pelo fato, muito conhecido por nós, de sua estrutura ser particularmente
destinada a camuflar, deslocar, negar, dividir e atenuar a intenção
agressiva, e isso segundo uma decomposição defensiva tão
comparável, em seus princípios, à ilustrada pela trincheira
e pela chicana, que ouvimos vários de nossos pacientes servirem-se,
a respeito deles mesmos, de uma referência metafórica a "fortificações
ao estilo de Vauban" (02).
_________
02: Sébastien Le Prestre de Vauban, engenheiro
militar responsável pelas fortificações no reinado
de Luís XIV. (N.E.)
§ 40/112. Quanto ao papel da intenção
agressiva na fobia, ele é por assim dizer, manifesto.
§ 41/112. Portanto, não é
que seja desfavorável reativar tal intenção na psicanálise.
§ 42/112. O que procuramos evitar, através
de nossa técnica, é que a intenção agressiva
no paciente encontre o apoio de uma idéia atual de nossa pessoa, suficientemente
elaborada para que possa organizar-se nas reações de oposição,
denegação, ostentação e mentira que nossa experiência
nos demonstra serem os modos característicos da instância
do eu no diálogo.
§ 43/112. Caracterizo essa instância,
aqui, não pela construção teórica que dela fornece
Freud em sua metapsicologia, como sistema percepção-consciência,
mas pela essência fenomenológica que ele reconheceu como sendo
a sua essência mais constante na experiência, sob o aspecto da
Verneinung, e cujos dados ele nos recomenda apreciar
no índice mais geral de uma inversão precedente ao juízo.
[111]
§ 44/112. Em suma, designamos no eu
esse núcleo dado à consciência, mas opaco à reflexão,
marcado por todas as ambigüidades que, da complacência à
má-fé, estruturam no sujeito humano a vivência passional;
esse [eu] que, por confessar seu artificialismo à crítica
existencial, opõe sua irredutível inércia de pretensões
e desconhecimento à problemática concreta da realização
do sujeito.
§ 45/112. Longe de atacá-lo de
frente, a maiêutica analítica adota um rodeio que equivale,
em suma, a induzir no sujeito uma paranóia dirigida. Com efeito, um
dos aspectos da ação analítica é efetuar a projeção
do que Melanie Klein denomina de maus objetos internos, mecanismo
paranóico, por certo, mas aqui bem sistematizado, filtrado de alguma
forma e estancado sob medida.
§ 46/112. É esse o aspecto de
nossa praxis que corresponde à categoria do espaço,
contanto que aí se compreenda este espaço imaginário
onde se desenvolve a dimensão dos sintomas que os estrutura como ilhotas
excluídas, escotomas inertes ou autonomismos parasitários nas
funções da pessoa.
§ 47/112. À outra dimensão,
temporal, correspondem a angústia e sua incidência, seja ela
patente, no fenômeno da fuga ou da inibição, seja latente,
quando só aparece com a imago motivadora.
§ 48/112. Mais uma vez, repetimos, essa
imago só se revela desde que nossa atitude ofereça ao sujeito
o espelho puro de uma superfície sem acidentes.
§ 49/112. Mas, que se imagine, para
nos compreender, o que aconteceria com um paciente que visse em seu analista
uma réplica exata dele mesmo. Qualquer um sente que o excesso de tensão
agressiva criaria tamanho obstáculo à manifestação
da transferência, que seu efeito útil só poderia produzir-se
com extrema lentidão, e é isso que acontece em certas análises
para fins didáticos. Se a imaginarmos, em última instância,
vivenciada à maneira da estranheza própria das apreensões
do duplo, essa situação desencadearia uma angústia
incontrolável.
TESE 04: A AGRESSIVIDADE é a tendência
correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico,
e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades
característico de seu mundo.
§ 50/112. A experiência subjetiva
da análise inscreve prontamente seus resultados na psicologia concreta.
Indiquemos apenas o que ela [112] traz para a psicologia das emoções,
mostrando a significação comum de estados tão diversos
quanto o medo fantasístico, cólera, a tristeza ativa ou a fadiga
psicastênica.
§ 51/112. Passar agora da subjetividade
da intenção para a noção de uma tendência
à agressão é dar o salto da fenomenologia de nossa experiência
para a metapsicologia.
§ 52/112. Mas, esse salto não
manifesta outra coisa senão uma exigência do pensamento que,
para objetivar agora o registro das reações agressivas, e na
impossibilidade de seriá-lo numa variação quantitativa,
tem que integrá-lo numa fórmula de equivalência. É
assim que nos servimos dele com a noção de libido.
§ 53/112. A tendência agressiva
se revela fundamental numa certa série de estados significativos da
personalidade, que são as psicoses paranóides e paranóicas.
§ 54/112. Sublinhei em meus trabalhos
que seria possível coordenar, por sua seriação estritamente
paralela, a qualidade da reação agressiva que se pode esperar
de tal forma de paranóia com a etapa da gênese mental representada
pelo delírio sintomático dessa mesma forma. Relação
que se afigura ainda mais profunda quando - mostrei isso a respeito de uma
forma curável, a paranóia de autopunição -
o ato agressivo desfaz a construção delirante.
§ 55/112. Assim se coloca em série, de maneira
contínua, a reação agressiva, desde a explosão
tão brutal quanto imotivada do ato, passando por toda a gama das formas
de beligerância, até guerra a fria das demonstrações
interpretativas, paralelamente às imputações de nocividade
que, sem falar do kakon obscuro a que o paranóide refere sua
discordância de qualquer contato vital, vão-se escalonando,
desde a motivação do veneno, retirada do registro de um organicismo
muito primitivo até motivação mágica do malefício,
telepática, da influência, lesiva da intrusão física,
abusiva, do desvio da intenção, espoliação, do
roubo do segredo, profanatória, da violação da intimidade,
jurídica, do preconceito, persecutória, da espionagem e da
intimidação, prestigiosa, da difamação e do atque
à honra, reivindicatória, do prejuízo e da exploração.
§ 56/112. Essa série, onde encontramos
todos os invólucros sucessivos do status biológico e social
da pessoa, mostrei que ela se prendia, em cada caso, a uma organização
original das formas do eu e do objeto, que são igualmente afetados
por ela em sua estrutura, [113] inclusive nas categorias espacial
e temporal em que eles se constituem, vividos como eventos numa perspectiva
de miragens, como afecções com um toque de estereotipia que
suspende sua dialética.
§ 57/112. Janet, que mostrou tão
admiravelmente a significação dos sentimentos de perseguição
como momentos fenomenológicos das condutas sociais, não lhes
aprofundou o caráter comum, que é precisamente que eles se
constituem por uma estagnação de um desses momentos, semelhante,
em estranheza, à aparência dos atores quando o filme pára
de rodar.
§ 58/112. Ora, essa estagnação
formal é parenta da estrutura mais geral do conhecimento humano: aquela
que constitui o eu e os objetos mediante atributos de permanência,
identidade e substancialidade, em suma, sob a forma de entidades ou "coisas"
muito diferentes das Gestalten que a experiência nos permite
isolar no domínio do campo disposto segundo as linhas do desejo animal.
§ 59/112. Efetivamente, essa fixação
formal que introduz uma certa ruptura de plano, uma certa discordância
entre o organismo do homem e seu Umwelt, é a própria
condição que amplia indefi¬nidamente seu mundo e sua potência,
dando a seus objetos sua polivalência instrumental e sua polifonia
simbólica, bem como seu potencial de armamento.
§ 60/112. O que chamei de conhecimento
paranóico demonstra pois corresponder, em suas formas mais ou menos
arcaicas, a certos momentos críticos que escandem a história
da gênese mental do homem e que representam, cada um, uma etapa da
identificação objetivante.
§ 61/112. Podemos entrever, pela simples
observação, suas etapas na criança, onde uma Charlotte
Bühler, uma Elsa Köhler e, depois delas, a escola de Chicago mostram-nos
vários planos de mani¬festações significativas,
mas às quais somente a EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA pode
dar seu valor exato, permitindo reintegrar nelas a relação subjetiva.
§ 62/112. O primeiro plano mostra-nos
que a experiência de si próprio na criança de tenra idade,
na medida em que ela se refere a seu semelhante, desenvolve-se a partir
de uma situação vivida como indiferenciada. Assim, por volta
dos oito meses de idade, nos confrontos entre crianças - que, convém
notar, para serem fecundos, quase que só permitem dois meses e meio
de distância etária -, vemos os gestos de ações
fictícias com que um sujeito [114] acompanha o esforço
imperfeito do gesto do outro, confundindo sua aplicação distinta:
as sincronias da captação especular, mais notáveis ainda
por se anteciparem à completa coordenação dos aparelhos
motores que elas empregam.
§ 63/112. Assim, a AGRESSIVIDADE que
se manifesta nas retaliações de tapas e socos não pode
ser apenas tomada por uma manifestação lúdica de exercício
das forças e de seu emprego para o referenciamento do corpo. Ela deve
ser compreendida numa ordem de coordenação mais ampla: a que
subordinará as funções de posturas tônicas e
de tensão vegetativa a uma relatividade social cuja prevalência
Wallon sublinhou consideravelmente na constituição expressiva
das emoções humanas.
§ 64/112. Mais ainda, eu mesmo creio ter conseguido
destacar que a criança, nessas ocasiões, antecipa no plano
mental a conquista da unidade funcional de seu próprio corpo, ainda
inacabado, nesse momento, no plano da motricidade voluntária.
§ 65/112. Há aí uma primeira
captação pela imagem, onde se esboça o primeiro momento
da dialética das identificações. Ele está ligado
a um fenômeno de Gestalt, à percepção muito
precoce, na criança, da forma humana, forma esta que, como sabemos,
fixa seu interesse desde os primeiros meses e mesmo, no que tange ao rosto
humano, desde o décimo dia de vida. Mas o que demonstra o fenômeno
de reconhecimento que implica a subjetividade são os sinais de jubilação
triunfante e o ludismo de discernimento que caracterizam, desde o sexto
mês, o encontro com sua imagem no espelho pela criança. Essa
conduta contrasta vivamente com a indiferença manifestada pelos animais
que percebem essa imagem, como o chimpanzé, por exemplo, quando eles
têm a experiência de sua inutilidade objetal, e ganha ainda mais
destaque por se produzir numa idade em que a criança ainda apresenta,
quanto ao nível de sua inteligência instrumental, um atraso
em relação ao chimpanzé, com quem só se iguala
aos onze meses.
§ 66/112. O que chamei de estádio
do espelho tem o interesse de manifestar o dinamismo afetivo pelo qual
o sujeito se identifica primordialmente com a Gestalt visual de seu
próprio corpo: ela é, em relação à descoordenação
ainda muito profunda de sua própria motricidade, uma unidade ideal,
uma imago salutar; é valorizada por todo o desamparo original,
ligado à discordância intra-orgânica e relacional do filhote
do homem durante os [115] primeiros seis meses de vida, nos
quais ele traz os sinais, neurológicos e humorais, de uma prematuração
natal fisiológica.
§ 67/112. É essa captação
pela imago da forma humana, mais do que uma Einfühlung
cuja ausência tudo vem demonstrar na primeira infância, que domina,
entre os seis meses e os dois anos e meio, toda a dialética do comportamento
da criança na presença de seu semelhante. Durante todo esse
período, registram-se as reações emocionais e os testemunhos
articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz que
bateram nela, a que vê cair, chora. Do mesmo modo, é numa identificação
com o outro que ela vive toda a gama das reações de imponência
e ostentação, cuja ambivalência estrutural suas condutas
revelam com evidência, escravo identificado com o déspota,
ator com o espectador, seduzido com o sedutor.
§ 68/112. Há nisso uma espécie
de encruzilhada estrutural onde devemos acomodar nosso pensamento, para compreender
a natureza da AGRESSIVIDADE no homem e sua relação com o formalismo
de seu eu e de seus objetos. Essa relação erótica,
em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si
mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização
passional que ele irá chamar de seu eu.
§ 69/112. Essa forma se cristalizará,
com efeito, na tensão conflitiva interna ao sujeito, que determina
o despertar de seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui, o concurso
primordial se precipita numa concorrência agressiva, e é dela
que nasce a tríade do outro, do eu e do objeto, que, fendendo o espaço
da comunhão especular, inscreve-se nela segundo um formalismo que
lhe é próprio, e que domina a tal ponto a Einfühlung
afetiva que a criança nessa idade pode desconhecer a identidade
das pessoas que lhe são mais familiares, caso elas lhe apareçam
num meio inteiramente modificado.
§ 70 /112. Mas, se já desde a origem
o eu se afigura marcado por essa relatividade agressiva, onde os espíritos
carentes de objetividade poderão reconhecer as ereções
emocionais provocadas no animal a quem um desejo vem solicitar lateralmente,
no exercício de seu condicionamento experimental, como não
conceber que cada grande metamorfose instintiva a escandir a vida do indivíduo
irá novamente questionar sua delimitação, feita da conjunção
da história do sujeito com o impensável inatismo de seu desejo?
§ 71/112. Eis por que nunca, a não
ser num limite do qual os maiores gênios jamais puderam aproximar-se,
o eu do homem é redutível [116] à sua identidade
vivida; e, nas disrupções depressivas dos revezes vivenciados
da inferioridade, ele gera essencialmente as negações mortais
que o fixam em seu formalismo. "Não sou nada do que me acontece. Não
és nada que tenha valor."
§ 72/112. Do mesmo modo, confundem-se
os dois momentos em que o sujeito nega a si mesmo e acusa o outro, e neles
descobrimos a estrutura paranóica do eu que encontra sua analogia
negações fundamentais valorizadas por Freud nos três
delírios, o do ciúme, o da erotomania e o de interpretação.
Trata-se, justamente, do delírio da bela alma misantrópica,
que rechaça para o mundo a desordem que compõe seu ser.
§ 73/112. A experiência subjetiva
deve ser habilitada de pleno direito a reconhecer o nó central da
AGRESSIVIDADE ambivalente que nosso momento cultural nos dá sob a forma
dominante do ressentimento, inclusive em seus aspectos mais arcaicos na criança.
Assim, por ter vivido num momento semelhante e por não ter tido que
sofrer com a resistência behaviorista, no sentido que nos é
próprio, santo Agostinho antecipou-se à psicanálise,
dando-nos uma imagem exemplar de tal comportamento nestes termos: "Vidi
ego et expertus sum zelantem parvulum: nondum loquebatur et intuebatur pallidus
amaro aspectu conlactaneum suum" - "Vi com meus olhos e conheci bem uma
criancinha tomada pelo ciúme: ainda não falava e já
contemplava, pálida e com uma expressão amarga, seu irmão
de leite." Assim liga ele imperecivelmente, à etapa infans (anterior
à fala) da primeira infância, a situação da absorção
especular: a criança contemplava, a reação emocional;
inteiramente pálida, 3 essa reativação das imagens da
frustração primordial; e com um olhar envenenado, que são
as coordenadas psíquicas e somáticas da AGRESSIVIDADE.
§ 74/112. Foi somente a sra. Melanie
Klein que, trabalhando com acriança bem no limite do surgimento da
linguagem, ousou projetar a experiência subjetiva nesse período
anterior, onde, no entanto, a observação nos permite afirmar
sua dimensão, simples fato, por exemplo, de que uma criança
que não fala reage diferentemente a um castigo e a uma brutalidade.
§ 75/112. Através dela, ficamos
sabendo da função do recinto imaginário primordial formado
pela imago do corpo materno; através dela temos a cartografia,
desenhada pela mão das próprias crianças, de seu império
interior, e o atlas histórico das divisões intestinas em que
as imagos do pai e dos irmãos reais ou virtuais, em que
[117] a agressão voraz do próprio sujeito, negociam sua
dominação deletéria sobre suas regiões sagradas.
Sabemos também da persistência, no sujeito, da sombra dos maus
objetos internos, ligados a alguma associação acidental
(para usar um termo do qual seria bom valorizarmos o sentido orgânico
que nossa experiência lhe confere, em oposição ao sentido
abstrato que ele preserva da ideologia humeana). Através disso, podemos
compreender por quais impulsos estruturais a reevocação de certas
personae imaginárias e a reprodução de certas
inferioridades situacionais podem desnortear, da maneira mais rigorosamente
previsível, as funções voluntárias no adulto,
ou seja, qual é sua incidência despedaçadora na imago
da identificação original.
§ 76/112. Ao nos mostrar a primordialidade
da "posição depressiva", o extremo arcaísmo da subjetivação
de um kakon, Melanie Klein alarga os limites em que podemos ver em
ação a função subjetiva da identificação
e, particularmente, permite-nos situar como totalmente original a formação
primária do supereu.
§ 77/112. Mas, precisamente, há
um interesse em delimitar a órbita em que se ordenam, para nossa reflexão
teórica, as relações, que se acham longe de estar todas
elucidadas, da tensão de culpa, da nocividade oral, da fixação
hipocondríaca e até mesmo desse masoquismo primordial que
excluímos de nossos propósitos para disso tudo isolar a noção
de uma AGRESSIVIDADE ligada à relação narcísica
e às estruturas de desconhecimento e objetivação sis¬temáticos
que caracterizam a formação do eu.
§ 78/112. À Urbild dessa
formação, embora alienante por sua função externalizadora,
corresponde uma satisfação própria, que se prende à
integração de uma desordem orgânica original, satisfação
esta que convém conceber na dimensão de uma deiscência
vital constitutiva do homem, e que torna impensável a idéia
de um meio que lhe seja previamente formado, libido "negativa" que faz resplandecer
novamente a idéia herac1itiana da Discórdia, sustentada pelo
efésio como anterior à harmonia.
§ 79/112. Nenhuma necessidade, portanto, de ir buscar
mais longe a fonte dessa energia sobre a qual Freud, a respeito do problema
da repressão, se pergunta de onde o eu a retira, para colocá-la
a serviço do "princípio de realidade".
§ 80/112. Nenhuma dúvida de que
ela provém da "paixão narcísica", desde que se conceba
o eu segundo a noção subjetiva que aqui promovemos por
ser conforme ao registro de nossa experiência; as dificuldades teóricas
encontradas por Freud parecem-nos [118] prender-se, com efeito, à
esta miragem de objetivação, herdada da psicologia clássica,
que se constitui pela idéia do sistema percepção-consciência,
e onde de repente parece ignorada a realidade de tudo o que o eu negligencia,
escotomiza e desconhe nas sensações que o fazem reagir à
realidade, bem como de tudo o que ele ignora, silencia e ata nas significações
que recebe da linguagem: desconhecimento bastante surpreendente a desencaminhar
o próprio homem que soubera forçar os limites do inconsciente
pelo poder de sua dialética.
§ 81/112. Assim como a opressão
insensata do supereu está na raiz dos imperativos motivados
da consciência moral, a paixão desvairada, que especifica o
homem, por imprimir na realidade sua imagem, é o fundamento obscuro
das mediações racionais da vontate.
§ 82/112. A noção de uma
AGRESSIVIDADE como tensão correlata à estrutura narcísica
no devir do sujeito permite compreender, numa função formulada
com muita simplicidade, toda sorte de acidentes e atipias desse devir.
§ 83/112. Indicaremos aqui como concebemos
sua ligação dialética com a função do
complexo de Édipo. Esta, em sua normalidade, é de sublimação,
que designa muito exatamente uma reformulação identificatória
do sujeito, e, como escreveu Freud tão logo sentiu a necessidade de
uma coordenação "tópica" dos dinamismos psíquicos,
uma identificação secundária, por introjeção
da imago do genitor do mesmo sexo.
§ 84/112. A energia dessa identificação
é dada pelo primeiro surgimento biológico da libido genital.
Mas é claro que o efeito estrutural de identificação
com o rival não é evidente, a não ser no plano da fábula,
e só é concebível se tiver sido preparado por uma identificação
primária que estrutura o sujeito como rival de si mesmo. De fato,
o toque de impotência biológica encontra-se aqui, assim como
o efeito de antecipação característico da gênese
do psiquismo humano, na fixação de um "ideal" imaginário,
que a análise mostrou decidir sobre a conformação do
"instinto” ao sexo fisiológico do indivíduo. Ponto, diga-se
de passagem, cuja importância antropológica seria impossível
sublinharmos em demasia. Mas, o que nos interessa aqui é a função,
que chamaremos apaziguadora, do ideal do eu, a conexão de sua
normatividade libidinal com uma normatividade cultural, ligada desde o alvorecer
da história à imago do
pai. Nisso jaz, evidentemente, a importância preservada por uma obra
de Freud, Totem [119] e tabu, malgrado o círculo
mítico que a vicia, na medida em que ela faz derivar do evento mitológico,
isto é, do assassinato do pai, a dimensão subjetiva que lhe
dá sentido, a culpa.
§ 85/112. Freud, com efeito, mostra-nos
que a necessidade de uma participação que neutralize o conflito,
inscrito, após o assassinato, na situação de rivalidade
entre os irmãos, é o fundamento da identificação
com o Totem paterno. Assim, a identificação edi¬piana é
aquela através da qual o sujeito transcende a AGRESSIVIDADE constitutiva
da primeira individuação subjetiva. Insistimos em outra ocasião
no passo que ela constitui na instauração dessa distância
pela qual, com sentimentos da ordem do respeito, realiza-se toda uma assunção
afetiva do próximo.
§ 86/112. Somente a mentalidade antidialética
de uma cultura que, por ser dominada por fins objetivantes, tende a reduzir
ao ser do eu toda a atividade subjetiva, pode justificar o assombro produzido
num van den Steinen pelo bororo que profere: "Eu sou uma arara." E todos
os sociólogos da "mentalidade primitiva" esfal¬fam-se em torno
dessa profissão de identidade, a qual, no entanto, nada tem de mais
surpreendente para a reflexão senão afirmar "Eu sou médico",
ou "Sou cidadão da república francesa", e com certeza apresenta
menos dificuldades lógicas do que pro¬mulgar "Eu sou um homem",
o que, em seu pleno valor, só pode querer dizer isto: "Sou semelhante
àquele em quem, ao reconhecê-lo como homem, baseio-me para me
reconhecer como tal." Essas diversas fórmulas só são
compreensíveis, no final das contas, em referência à verdade
do "Eu é um outro", menos fulgurante na intuição do
poeta do que evidente aos olhos do psicanalista.
§ 87/112. Quem, senão nós,
há de questionar o status objetivo desse [eu] que uma evolução
histórica própria de nossa cultura tende a confundir com o
sujeito? Essa anomalia mereceria ser manifestada em suas incidências
particulares em todos os planos da linguagem, e, para começar, no sujeito
gramatical da primeira pessoa em nossas línguas, nesse "eu amo" que
hipostasia a tendência num sujeito que a nega. Miragem impossível,
em formas lingüistícas entre as quais se alinham as mais antigas,
e onde o sujeito aparece fundamentalmente na posição de determinativo
ou de instrumento da ação.
§ 88/112. Deixemos por aqui a crítica
de todos os abusos do cogito ergo sum, para lembrar que o eu, em nossa
experiência, representa o centro de todas as resistências
ao tratamento dos sintomas. [120]**
§ 89/112. Tinha de acontecer que a análise,
depois de haver enfatizado a reintegração das tendências
excluídas pelo eu, como subjacentes aos sintomas que ela havia
atacado inicialmente, em sua maioria ligados aos fracassos da identificação
edipiana, viesse a desvendar a dimensão "moral" do problema.
§ 90/112. E foi paralelamente que vieram
para o primeiro plano, de um lado, o papel desempenhado pelas tendências
agressivas na estrutura dos sintomas e da personalidade, e de outro, toda
sorte de concepções" valorizadoras" da libido liberada, dentre
as quais uma das primeiras deveu-se aos psicanalistas franceses, sob o registro
da oblatividade.
§ 91/112. Está claro, com efeito,
que a libido genital se exerce no sentido de um ultrapassamento, aliás
cego, do indivíduo em prol da espécie, e que seus efeitos sublimadores
na crise do Édipo estão na origem de todo o processo de subordinação
cultural do homem. Não obstante, seria impossível enfatizarmos
em demasia o caráter irredutível da estrutura narcísica,
bem como a ambigüidade de uma noção que tenderia a desconhecer
a constância da tensão agressiva em toda vida moral que comporte
a sujeição a essa estrutura: ora, nenhuma oblatividade poderia
liberar seu altruísmo. E foi por isso que La Rochefoucauld pôde
formular sua máxima, na qual seu rigor harmoniza-se com o tema fundamental
de seu pensamento, sobre a incompatibilidade entre o casamento e os prazeres.
§ 92/112. Deixaríamos degradar-se
a contundência de nossa experiência ao nos enganarmos, senão
a nossos pacientes, quanto a alguma harmonia preestabelecida que isentasse
de qualquer indução agressiva, no sujeito, os conformismos
sociais que a redução dos sintomas torna possíveis.
§ 93/112. E uma perspicácia diferente
mostraram os teóricos da Idade Média, que debatiam o problema
do amor entre dois pólos, o de uma teoria "física" e o de uma
teoria" extática", ambos implicando a reabsorção do
eu do homem, quer por sua reintegração num bem universal,
quer pela efusão do sujeito para objeto sem alteridade.
§ 94/112. É em todas as fases
genéticas do indivíduo, em todos os graus de realização
humana em sua pessoa, que encontramos esse momento narcísico no sujeito,
num antes em que ele deve assumir uma frustração libidinal
e num depois em que ele transcende a si mesmo numa sublimação
normativa. [121]**
§ 95/112. Essa concepção
faz-nos compreender a AGRESSIVIDADE implicada nos efeitos de todas as regressões,
de todos os abortamentos, de todas as recusas do desenvolvimento típico
do sujeito, e especialmente no plano da realização sexual,
ou, mais exatamen¬te, no interior de cada uma das grandes fases determinadas
na vida humana pelas metamorfoses libidinais cuja grande função
a análise demonstrou: desmame, Édipo, puberdade, maturidade,
ou maternidade, ou mesmo clímax involutivo. E dissemos, muitas vezes,
que a ênfase inicialmente depositada pela doutrina nas represálias
agressivas do conflito edipiano no sujeito correspondeu ao fato de que os
efeitos do complexo foram inicialmente percebidos nos fracassos de
sua solução.
§ 96/112. Não é preciso
salientar que uma teoria coerente da fase narcísica esclarece a realidade
da ambivalência própria das "pulsões parciais" da escopofilia,
do sadomasoquismo e da homossexualidade, assim como o formalismo estereotipado
e cerimonial da AGRESSIVIDADE que neles se manifesta: visamos aqui o aspecto,
freqüentemente muito pouco "reconhecido", da apreensão do outro
no exercício de algumas dessas perversões, a seu valor subjetivo,
a rigor bem diferente das reconstruções existenciais, aliás
muito cativantes, que um Jean-Paul Sartre soube fornecer dela.
§ 97/112. Quero ainda indicar de passagem
que a função decisiva que conferimos à imago do
corpo próprio, na determinação da fase narcísica,
permite compreender a relação clínica entre as ano¬malias
congênitas da lateralização funcional (sinistrismo) e
todas as formas de inversão da normalização sexual e
cultural. Isso nos lembra o papel atribuído à ginástica
no ideal do "belo e bom" da educação antiga, e nos leva à
tese social com que concluímos.
TESE 05: Tal noção da AGRESSIVIDADE,
como uma das coorde¬nadas intencionais do eu humano, e especialmente
relativa à categoria do espaço, faz conceber seu papel na neurose
moderna e no mal-estar da civilização.
§ 98/112. Queremos aqui apenas descortinar
uma perspectiva sobre os vereditos que nos permite nossa experiência
na ordem social atual. A preeminência da AGRESSIVIDADE em nossa civilização
já estaria suficientemente demonstrada pelo fato de ela ser
habitualmente confundida, na moral mediana, com a virtude da força.]***
Compreendida, mui justificadamente, como significativa de um desenvolvimento
do eu, ela é tida como sendo de um uso social indispensável,
e tão comumente aceita nos costumes que, para aquilatar sua particularidade
cultural, é preciso nos imbuirmos do sentido e das virtudes eficazes
de uma prática como a do jang na moral pública e privada
dos chineses.
§ 99/112. Ainda que isso fosse supérfluo,
o prestígio da idéia da luta pela vida seria suficientemente
atestado pelo sucesso de uma teoria que conseguiu tornar aceitável
a nosso pensamento, como explicação válida dos desenvolvimentos
da vida, uma seleção baseada na simples conquista do espaço
pelo animal. Do mesmo modo, o sucesso de Darwin parece dever-se a ele haver
projetado as predações da sociedade vitoriana e a euforia econômica
que sancionou a devastação social que ela inaugurou em escala
planetária, e a havê-las justificado pela imagem de um laissez-faire
dos devoradores mais fortes em sua competição por sua
presa natural.
§ 100/112. Antes dele, no entanto, Hegel
havia fornecido a teoria perene da função própria da
AGRESSIVIDADE na ontologia humana, parecendo profetizar a lei férrea
de nossa época. Foi do conflito entre o Senhor e o Servo que ele deduziu
todo o progresso subjetivo e objetivo de nossa história, fazendo
surgir dessas crises as sínteses que representam as formas mais elevadas
do status de pessoa no Ocidente, do estóico ao cristão, e até
ao futuro cidadão, do Estado Universal.
§ 101/112. Aqui, o indivíduo natural
é tido por nada, já que o sujeito humano efetivamente o é
diante do Senhor absoluto que lhe é dado na morte. A satisfação
do desejo humano só é possível se mediatizada pelo desejo
e pelo trabalho do outro. Se, no conflito entre o Senhor e o Servo,
é o reconhecimento do homem pelo homem que está em jogo, é
também numa negação radical do valores naturais que
ele é promovido, ou seja, que se exprime na tirania estéril
do senhor ou na tirania fecunda do trabalho.
§ 102/112. Sabemos da armadura conferida
por essa doutrina profunda ao espartaquismo construtivo do escravo, recriado
pela barbárie do século darwiniano.
§ 103/112. A relativização
de nossa sociologia, pela compilação científica das
formas culturais que destruímos no mundo, e igualmente as [123]
análises, marcadas por traços verdadeiramente psicanalíticos,
em que a sabedoria de um Platão nos mostra a dialética comum
às paixões da alma e da pólis, podem esclarecer-nos sobre
a razão dessa barbárie. Trata-se, para dizê-lo no jargão
que corresponde a nossas abordagens das necessidades subjetivas do homem,
da ausência crescente de todas as saturações do supereu
e do ideal do eu que são realizadas em todo tipo de formas
orgânicas das sociedades tradicionais, formas estas que vão
dos ritos da inti¬midade cotidiana às festas periódicas
em que se manifesta a comunidade. Já não as conhecemos senão
sob os aspectos mais nitidamente degradados. Mais ainda, por abolir a polaridade
cósmica dos princípios masculino e feminino, nossa sociedade
conhece todas as incidências psicológicas próprias do
chamado fenômeno moderno da luta entre os sexos. Comunidade
imensa, no limite entre a anarquia "democrática" das paixões
e seu nivelamento desesperado pelo "grande zangão alado" da tirania
narcísica, está claro que a promoção do eu
em nossa existência leva, conforme a concepção utilitarista
do homem que a secunda, a realizar cada vez mais o homem como indivíduo,
isto é, num isolamento anímico sempre mais aparentado com sua
derrelição original.
§ 104/112. Correlativamente, ao que
parece, ou seja, por razões cuja contingência histórica
repousa numa necessidade que algumas de nossas considerações
permitem discernir, estamos engajados num projeto técnico em escala
da espécie: o problema é saber se o conflito entre o Senhor
e o Servo encontrará sua solução no serviço do
autômato, se uma psicotécnica que já se revela prenhe
de aplicações cada vez mais precisas se empenhará em
fornecer condutores de bólidos e supervisores de centrais reguladoras.
§ 105/112. A noção do papel
da simetria espacial na estrutura narcísica do homem é essencial
para lançar as bases de uma análise psicológica do espaço,
da qual só podemos aqui indicar o lugar. Digamos que a psicologia
animal revelou-nos que a relação do indivíduo com um
certo campo espacial é, em algumas espécies, socialmente demarcada,
de uma maneira que a eleva à categoria do pertencimento subjetivo.
Diremos que é a possibilidade subjetiva da projeção especular
de tal campo no campo do outro que confere ao espaço humano sua estrutura
originalmente "geométrica", estrutura que preferiríamos chamar
de caleidoscópica. [124]**
§ 106/112. Assim é, pelo menos,
o espaço onde se desenvolve o conjunto de imagens do eu, e que vem
juntar-se ao espaço objetivo da realidade. Mas porventura ele nos
oferece uma base garantida? No próprio "espaço vital" onde se
desenvolve a competição humana sempre mais acirrada, um observador
estelar de nossa espécie concluiria por necessidades de evasão
de efeitos singulares. Mas, acaso a extensão conceitual a que acreditamos
ter conseguido reduzir o real não parece recusar ainda mais seu apoio
ao pensamento fisicalista? Assim, por ter levado nosso domínio aos
confins da matéria, não irá esse espaço "realizado”,
que nos faz parecerem ilusórios os grandes espaços imaginários
onde se movimentavam as livres fantasias dos antigos sábios, por sua
vez, desvanecer-se num bramido do fundo universal?
§ 107/112. Sabemos, de qualquer modo,
por onde procede nossa, adaptação a essas exigências,
e que a guerra revela-se cada vez mais a parteira obrigatória e necessária
de todos os progressos de nossa organização. Seguramente, a
adaptação dos adversários em sua oposição
social parece progredir para um concurso de formas, porém podemos
indagar-nos se este é motivado por uma aliança na necessidade
ou pela identificação cuja imagem Dante nos mostra, em seu Inferno,
num beijo mortal.
§ 108/112. Além do mais, não
parece que o indivíduo humano, como material de tal luta, seja absolutamente
infalível. E a detecção dos "maus objetos internos",
responsáveis pelas reações podem ser muito caras em
equipamentos) de inibição e escalada dos acontecimentos, detecção
à qual recentemente aprendemos a proceder mediante os elementos das
tropas de choque, aviação de caça, do pára-quedas
e dos grupos de assalto, prova que a guerra, depois de muito nos haver ensinado
sobre a gênese das neuroses, mostra-se talvez exigente demais em matéria
de sujeitos cada vez mais neutros numa AGRESSIVIDADE cujo patético
é indesejável.
§ 109/112. Não obstante, também
quanto a isso temos algumas verdades psicológicas a introduzir, quais
sejam, o quanto o pretenso "instinto de conservação" do eu
tende a enfraquecer na vertigem da dominação do espaço
e, sobretudo, o quanto o medo da morte, do "Senhor absoluto", suposto na
consciência por toda tradição filosófica desde
Hegel, está psicologicamente subordinado ao medo narcísico
da lesão do corpo próprio. [125]**
§ 110/112. Não nos parece vão
ter sublinhado a relação mantida com a dimensão do espaço
por uma tensão subjetiva, que, no mal-estar da civilização,
vem corroborar a da angústia, tão humanamente abordada por
Freud, e que se desenvolve na dimensão temporal. Também a esta
esclareceríamos facilmente por significações contemporâneas
de duas filosofias que corresponderiam às que acabamos de evocar: a
de Bergson, por sua insuficiência natu¬ralista, e a de Kierkegaard,
por sua significação dialética.
§ 111/112. Somente no cruzamento dessas
duas tensões dever-se-ia con¬templar a assunção,
pelo homem, de seu despedaçamento original, mediante o que podemos
dizer que a cada instante ele constitui seu mundo através de seu suicídio,
e cuja experiência psicológica Freud teve a audácia
de formular, por mais paradoxal que seja sua expressão em termos
biológicos, isto é, como "instinto de morte".
§ 112/112. No homem "liberado" da sociedade
moderna, eis que esse despedaçamento revela, até o fundo do
ser, sua pavorosa fissura. É a neurose de autopunição,
com os sintomas histérico-hipocondríacos de suas inibições
funcionais, com as formas psicastênicas de suas desrealizações
do outro e do mundo, com suas seqüências sociais de fracasso e
de crime. É essa vítima comovente, evadida de alhures, inocente,
que rompe com o exílio que condena o homem moderno à mais assustadora
galé social, que acolhemos quando ela vem a nós; é
para esse ser de nada que nossa tarefa cotidiana consiste em reabrir o caminho
de seu sentido, numa fraternidade discreta em relação à
qual sempre somos por demais desiguais. [126]**
____________
Notas:
**. Número da página dos Escritos (Jorge Zahar).
Nota da BSFREUD:
Esse texto foi escaneado
por José Luiz Caon e aqui publicado por sua gentil autorização.