Vamos prosseguir
hoje o estudo do lugar, da função do fantasma, na medida em
que está simbolizado nas relações do sujeito, provido
por parte do sujeito, enquanto marcado com o efeito da palavra em relação
a um objeto a que tentamos, da última vez, definir como tal. Essa função
do fantasma, vocês o sabem, se situa em algum lugar ao nível
dessa relação que tentamos inscrever naquilo que chamamos o
grafo. É alguma coisa de muito simples, em suma, já que os
termos se resumem aos quatro pontos, se assim posso dizer, situados nos cruzamentos
das duas cadeias significantes por um aro que é o da intenção
subjetiva. Esses cruzamentos, portanto, determinam esses quatro pontos que
chamamos pontos de código, que são aqueles à direita,
aqui (A e $
D), e esses dois outros pontos de mensagem (S (
) e s (A)), isso em função do caráter retroativo
do efeito da cadeia significante quanto à significação.
Aqui estão pois os quatro
pontos que aprendemos a ornar com significações. São
lugares onde vem se situar o encontro da intenção do sujeito
com o fato concreto, o fato de que há linguagem. Aqui, os dois outros
sinais sobre os quais vamos ter de chegar hoje são $ em presença
de D, [ $
D], e S, significante de
, [ S (
)].
Essas duas cadeias significantes,
vocês o sabem, isso está elucidado há muito tempo, representam
respectivamente: a cadeia inferior, a do discurso concreto do sujeito na medida
em que ela é como tal, digamos, acessível à consciência.
O que a análise nos ensinou, na medida em que ela está acessível
à consciência, é, talvez, é certamente porque ela
parte de ilusões que afirmamos inteiramente transparente à consciência.
E se, durante vários anos, tenho insistido diante de vocês por
todas as vias pelas quais podiam lhes ser sugeridos as partes ilusórias
que há nesse efeito de transparência, se tentei mostrar, por
todos os tipos de fábulas das quais vocês talvez ainda têm
lembrança, como, no limite, podíamos tentar – sob a forma de
uma imagem em um espelho tornada eficaz no além de toda subsistência
do sujeito, por qual mecanismo persistente, no nada subjetivo realizado pela
destruição de toda vida – se tentei lhes mostrar aí
a imagem de uma possibilidade de subsistência de alguma coisa absolutamente
especular, independentemente de todo suporte subjetivo, não é
pelo simples prazer de um tal jogo, mas isso repousa no fato de que uma montagem
estruturada como aquela de uma cadeia significante pode ser suposta durar
além de toda subjetividade das sustentações.
A consciência, na medida em que nos dá esse sentimento de ser
eu [moi] no discurso, é alguma coisa que, na perspectiva analítica
- aquela que nos faz tocar sem cessar, com o dedo, o desconhecimento sistemático
do sujeito – é alguma coisa que, justamente, nossa experiência
nos ensina a referir a uma relação, nos mostrando que essa consciência
– na medida em que ela é de início experimentada, que ela é
de início sentida numa imagem que é a imagem do semelhante
– é alguma coisa que, acima de tudo, recobre com uma aparência
de consciência o que há incluído nas relações
do sujeito à cadeia significante primária, ingênua, à
demanda inocente, ao discurso concreto enquanto se perpetua de boca em boca,
organizando o que há de discurso na própria história;
o que salta de articulação em articulação naquilo
que se passa de fato numa distância maior ou menor desse discurso concreto
comum, universal, que engloba toda a atividade real, social do grupo humano.
A outra cadeia significante é aquela que nos é positivamente
dada na experiência analítica como inacessível à
consciência. Vocês sentem bem enquanto já para nós,
essa referência à consciência da primeira cadeia é
suspeita, a fortiori, essa única característica de inacessibilidade
à consciência é alguma coisa que, para nós, apresenta
questões sobre o que fica do sentido dessa inacessibilidade.
Também devemos considerar, e vou retornar a isso, devemos bem precisar
o que entendemos disso. Devemos considerar que essa cadeia, como tal inacessível
à consciência, é feita como uma cadeia significante? Mas
é a isso que retornarei daqui a pouco, coloquemo-la por enquanto, como
ela se apresenta para nós. Aqui (S (
) – $
D) o pontilhado sobre o qual ela se apresenta significa que o sujeito
não a articula enquanto discurso; o que ele articula é outra
coisa; o que ele articula ao nível da cadeia significante se situa
ao nível do anel intencional. Na medida em que o sujeito se refere
enquanto agindo na alienação da significância [signifiance]
com o jogo da palavra, o sujeito se articula como o quê? Como enigma,
como questão, mui exatamente. O que nos é dado na experiência
a partir daquilo que é tangível na evolução do
sujeito humano, em um momento de articulação infantil, a saber,
que no além da primeira demanda com já com tudo o que ela comporta
como conseqüência, há um momento em que ele vai buscar
sancionar o que tem diante dele, a sancionar as coisas na ordem inaugurada
pela significância. Como tal, ele vai dizer “O que” e ele vai dizer
“Porque” É no interior disso que há referência expressa
ao discurso, é isso que se apresenta como continuando a primeira intenção
da demanda, conduzindo-a à segunda intenção do discurso
como discurso, do discurso que se interroga, que interroga as coisas em relação
a ele mesmo, em relação à sua situação
no discurso, que não é mais exclamação, interpelação,
grito da necessidade, mas já nominação. É isso
que representa a intenção segunda do sujeito e, se essa intenção
segunda, eu a faço partir do lugar A, é na medida em que se
o sujeito está inteiramente na alienação da significância,
na alienação da articulação falada como tal, e
que é aí e nesse nível que se apresenta a questão
que chamei da última vez: sujeito como tal, do S? com o ponto
de interrogação. Também não é que eu me
agrade dos jogos do equívoco, mas é também coerente
com o nível no qual procedemos, no ponto em que articulamos – é
no interior dessa interrogação, dessa interrogação
interna do lugar instituído da palavra, ao discurso, é no interior
disso que o sujeito deve tentar se situar como sujeito da palavra, demandando
aí ainda: Será? O quê? O porquê? Quem é
que fala? Onde é que isso fala? É precisamente no fato que
o que se articula ao nível da cadeia significante não é
articulável no nível desse [será?], dessa questão
que constitui o sujeito uma vez instituído na palavra, é nisso
que consiste o fato do inconsciente.
Aqui quero simplesmente lembrar
o uso daqueles que poderiam aqui se inquietar, como de uma construção
arbitrária, dessa identificação da cadeia inconsciente
que apresento aqui, em relação à interrogação
do sujeito, nas mesmas relações que aquelas do discurso primeiro
da demanda à intenção que surge da necessidade, quero
lhes lembrar aqui, é que se o significante, se o inconsciente tem um
sentido, esse sentido tem todas as características da função
da cadeia significante como tal. E aqui eu sei muito bem que fazendo esse
breve lembrete, devo fazê-lo, para a maioria dos meus auditores, alusão
àquilo que sei que eles já ouviram de mim quando falei dessa
cadeia significante, na medida em que ela é ilustrada na história
que publiquei alhures, a fábula dos discos brancos e dos discos pretos,
na medida em que ela ilustra alguma coisa de estrutural nas relações
de sujeito a sujeito, na medida em que encontramos aí três termos.
Nessa história um sinal [signe] distintivo permite identificar,
discriminar em relação a um casal branco ou preto, a relação
com os outros sujeitos. Para aqueles que não se lembram, eu me contentarei
em lhes dizer que se refere ao que escrevi sobre isso , em relação
a essa sucessão de oscilações por onde o sujeito se localiza,
em relação a quê? Em relação à busca
do outro que se faz em função daquilo que os outros vêem
dele mesmo e daquilo que os determina de modo conclusivo, a saber, o que
chamarei aqui o [raciocínio], aquilo pelo que o sujeito decide que
ele é de fato branco ou preto, se confirma, pronto para declarar aquilo
para que a fábula é construída.
Será que vocês não encontram aí exatamente aquilo
que, na estrutura da pulsão, nos é de uso familiar, a saber,
esse fato de identificação relativa, essa possibilidade da denegação,
da recusa da articulação, da defesa, que são tão
coerentes à pulsão quanto o avesso no lugar do direito de uma
mesma coisa, e que se conclui com alguma coisa que se torna para o sujeito
a marca, a escolha em tais condições, em tais situações,
aquilo em que ele escolhe sempre, de fato, esse poder de repetição,
sempre o mesmo, que tentamos chamar, segundo os sujeitos, uma tendência
masoquista, uma inclinação ao fracasso, retorno de recalcado,
evocação fundamental da cadeia primitiva? Tudo isso é
uma só e mesma coisa, a repetição no sujeito de um tipo
de sanção cujas formas ultrapassam em muito as características
do conteúdo.
Essencialmente o inconsciente se nos apresenta sempre como uma articulação
indefinidamente repetida e é por isso que é legítimo
que nós o situemos nesse esquema sob a forma desta linha pontilhada.
Nós a pontilhamos aqui porque? Nós o dissemos, na medida em
que o sujeito não tem acesso a isso, e dizemos, mais precisamente,
na medida em que a forma pela qual o sujeito pode aí nomear-se, pode
situar-se enquanto o suporte dessa sanção, na medida em que
pode aí se designar, enquanto aquele sobre quem portará finalmente
a marca, os estigmas do que permanece para ele não somente ambíguo,
mas, propriamente falando, inacessível até um certo termo que
é aquele, justamente, que dá a experiência analítica.
Nenhum Eu [Je] dele pode ser articulado nesse nível, mas a
experiência se apresenta como “isso vem de fora”, e já é
muito que isso aconteça, ele pode lê-lo como um “Isso fala”[Ça
parle]. Há aí uma distância que não é
nem mesmo dita, apesar do alcance que a prescrição de Freud
nos dá disso, que, de um modo qualquer, o sujeito possa atingir o
objetivo.
O alcance portanto, nesse nível do ponto dito de código, na
medida em que o simbolizamos aqui pela confrontação do $
com a demanda, D, significa o quê? Muito precisamente isto: é
que isso é nada mais do que esse ponto que chamamos ponto de código,
e que só é implicado na medida em que a análise começa
a decifração da coerência da cadeia superior, é
na medida em que o sujeito, $, enquanto sujeito do inconsciente,
isto é, enquanto o sujeito que é constituído no além
do discurso concreto – na medida em que o sujeito vê, lê, entende,
digo retroativamente, podemos supô-lo aqui como suporte da articulação
do inconsciente – encontra o quê? Encontra aquilo que nessa cadeia
da palavra do sujeito, enquanto o que questiona sobre ele mesmo, encontra
a demanda.
Que papel desempenha a demanda nesse nível? Nesse nível, e
é o que quero dizer com o sinal
entre $ e D, nesse nível a demanda é afetada
por sua forma propriamente simbólica, a demanda é utilizada
enquanto além daquilo que ela exige quanto à satisfação
da necessidade, ela se apresenta como essa demanda por amor ou essa demanda
de presença por onde dissemos que a demanda institui o outro a quem
ela se endereça como aquele que pode estar presente ou ausente. É
na medida em que a demanda desempenha essa função metafórica,
enquanto a demanda, seja oral ou anal, se torna símbolo da relação
com o Outro, que ela desempenha aí sua função de código,
ela permite constituir o sujeito como estando situado no que chamamos, na
nossa linguagem, a fase oral ou anal, por exemplo.
Mas isso pode ser chamado também a correspondência da mensagem,
isto é, daquilo que, com esse código, o sujeito pode responder
ou receber como mensagem àquilo que é a questão que,
no além, dá a primeira tomada na cadeia significante. Ela se
apresenta ali também em pontilhado, e, como vindo do Outro, a questão
do “Che vuoi?”, “Que queres?” É o que o sujeito, além
do Outro, se apresenta sob a forma do “Será?” [Est-ce? ] A
resposta é aquela que é simbolizada aqui sobre o esquema, pela
significância do Outro enquanto S (A ). Essa significância do
Outro, enquanto É?, lhe damos, nesse nível, um sentido que
é esse sentido mais geral, esse sentido no qual vai se despejar a
aventura do sujeito concreto, sua história subjetiva. A forma mais
geral é esta: é que não há nada no Outro, não
há nada na significância que possa bastar para esse nível
da articulação significante. Não há nada na significância
que seja a garantia da verdade. Não há nenhuma outra garantia
da verdade do que a boa fé do Outro, isto é, alguma coisa que
se apresenta sempre para o sujeito sob uma forma problemática. Será
isto dizer que o sujeito permanece, ao final de sua questão, nessa
inteira fé concernente ao que para ele faz surgir o reino da palavra?
É justamente aqui que nós chegamos ao nosso fantasma. Já
da última vez, lhes mostrei que o fantasma, enquanto o ponto de apoio
concreto por onde abordamos nas margens do inconsciente como o fantasma desempenha
para o sujeito esse papel do suporte imaginário, precisamente desse
ponto em que o sujeito não encontra nada que possa articulá-lo
enquanto sujeito de seu discurso inconsciente.
É a isso, portanto, que retornamos hoje, que nos cumpre interrogar
de mais perto aquilo que acontece com esse fenômeno. Eu lhes lembro
que da última vez lhes disse a propósito do objeto – como se
o objeto desempenhasse aí o mesmo papel de miragem que no nível
inferior a imagem do outro especular i(a), desempenha em relação
ao eu [moi]. Assim, portanto, face ao ponto onde o sujeito vai se
situar para aceder ao nível da cadeia inconsciente, aqui, coloco o
fantasma como tal. Essa relação ao objeto tal como ele é
no fantasma, nos induz a que? A uma fenomenologia do corte, ao objeto enquanto
pode suportar no plano imaginário essa relação de corte
que é aquela onde, nesse nível, o sujeito tem de se suportar.
Esse objeto, enquanto suporte imaginário dessa relação
de corte, o vimos nos três níveis do objeto: pré-genital,
da mutilação castrativa, e também da voz alucinatória
como tal, isto é, menos, na medida em que ela é voz encarnada,
discurso enquanto interrompido, do que cortado pelo monólogo interior,
do que cortado no texto do monólogo interior.
Vejamos hoje se não resta muito mais a dizer, se retornamos sobre
o sentido daquilo que aí expressa, pois também do que se trataria
em relação a alguma coisa que já introduzi da última
vez, a saber, do ponto de vista do real, do ponto de vista do conhecimento?
Em que nível estamos nós aqui, já que estamos introduzidos
ao nível de um $? Será que este Será?
[Est-ce que Est-ce?] é outra coisa que um equívoco que
é suscetível de ser preenchido por qualquer sentido? Ou vamos
nos deter, em sua pertinência verbal de conjugação, ao
verbo ser ? Já alguma coisa disso foi trazida da última vez.
Trata-se de fato de saber em que nível estamos aqui quanto ao sujeito,
na medida em que o sujeito não se refere simplesmente quanto ao discurso,
mas também quanto a algumas realidades.
Eu digo isto, se alguma coisa se apresenta, se articula, que possamos, de
modo coerente, intitular a realidade, quero dizer a realidade da qual fazemos
emprego em nosso discurso analítico, situarei disso o campo sobre o
esquema aqui, no campo que está sob o discurso concreto, na medida
em que esse discurso o engloba e o fecha, que é reserva de um saber,
de um saber que podemos estender tão longe quanto tudo aquilo que pode
falar do homem. Eu entendo que ele não é por isso obrigado,
a todo instante, a reconhecer aquilo que, já na sua realidade, na sua
história, já de início incluiu no seu discurso, que
tudo aquilo que se apresenta, por exemplo, na dialética marxista como
alienação pode aqui se apreender e se articular de um modo
coerente.
Eu direi mais, o corte, não o esqueçamos. E isso já
nos é indicado no tipo do primeiro objeto do fantasma, do objeto pré-genital.
Ao que é que faço alusão como objetos que aqui possam
suportar os fantasmas, se não for a objetos reais em uma relação
estreita com a pulsão vital do sujeito, na medida em que eles sejam,
dele, separados? O que só é evidente demais é que o real
não é um contínuo opaco, que o real é feito bem
evidentemente de cortes, tanto quanto e muito além dos cortes da linguagem
e que não é de ontem que o Filósofo, Aristóteles,
nos falou do bom filósofo, o que quer dizer, no meu sentido, também:
“Aquele que sabe em toda sua generalidade é comparável ao bom
cozinheiro, é aquele que sabe fazer passar a faca no ponto que é
justo, de corte das articulações, sabe penetrar sem feri-las”.
A relação do corte do real e do corte da linguagem é
alguma coisa, portanto, que até um certo ponto, parece satisfazer aquilo
em que a tradição filosófica em suma, sempre se instalou,
a saber, que só se trata de um recobrimento de um sistema de corte
por um outro sistema de corte. No que eu digo que a questão freudiana
vem em sua hora, está na medida em que aquilo que o percurso realizado
pela ciência nos permite formular, é que há na aventura
da ciência alguma coisa que vai muito além dessa identificação,
desse recobrimento dos cortes naturais por cortes de um discurso qualquer,
aquilo que por um esforço que consistiu essencialmente em esvaziar
toda a articulação científica de suas implantações
mitológicas é, veremos daqui a pouco, alguma coisa que daí
nos levou ao ponto onde estamos e que me parece suficientemente caracterizado
sem fazer mais drama, pelo termo de desintegração da matéria.
É bem alguma coisa que pode nos sugerir só ver nessa aventura
puros e simples conhecimentos. Isto é, que, por nos colocar sobre o
plano do real, ou, se vocês quiserem, provisoriamente, de alguma coisa
que chamarei nesta ocasião (com todo acento de ironia necessária,
pois não é certamente a minha tendência chamá-lo
desta forma) o grande Tudo; desse ponto de vista, a ciência e sua aventura
se apresentam não como o real, se reenviando a si própria seus
próprios cortes, mas como elementos criadores de alguma coisa de novo,
e que toma o tom de proliferar de um modo que aqui, seguramente, não
pudemos nos negar a nós mesmos, enquanto homens, que nossa função
mediadora, nossa função de agentes não deixa de apresentar
a questão de saber se as conseqüências daquilo que se manifesta
não nos ultrapassam um pouco.
Em suma, o homem, nesse jogo, entra às suas custas. Talvez não
haja espaço aqui para irmos mais longe, pois esse discurso que faço
propositalmente moderado e restrito, do qual pelo menos suponho que o acento
dramático e atual não lhes escapa; o que quero dizer aqui é
que essa questão quanto à aventura da ciência é
outra coisa que tudo o que pode se articular com - mesmo esta conseqüência
extrema da ciência -, com todas as conseqüências que foram
aquelas do dramatismo humano enquanto inscrito em toda a história.
Aqui, no caso, o sujeito particular está em relação com
esse tipo de corte constituído pelo fato de que ele não está
em relação a um certo discurso consciente, ele não sabe
aquilo que ele é. É disto que se trata, trata-se da relação
do real do sujeito como entrando no corte, e esse evento do sujeito ao nível
do corte em alguma coisa que é preciso chamar um real, mas que não
é simbolizado por nada. Parece-lhes, talvez, excessivo ver designar,
ao nível do que chamamos há pouco uma manifestação
pura desse ser, o ponto eletivo da relação do sujeito àquilo
que podemos aqui chamar seu ser puro de sujeito, aquilo pelo que, desde então,
o fantasma do desejo toma a função, esse ponto, de designá-lo.
Foi porque, em outro momento, pude definir essa função preenchida
pelo fantasma como uma metonímia do ser e identificar como tal, nesse
nível, o desejo. Entendemos bem que nesse nível a questão
permanece inteiramente aberta de saber se podemos chamar homem o que se indica
desse modo, pois o que é que podemos chamar homem senão o que
já se simbolizou como tal, e que, também, cada vez que se fala
dele, se encontra, pois, carregado de todos os reconhecimentos, digamos históricos?
A palavra “humanismo” não designa comumente nada nesse nível.
Mas há algo evidente nele, de real, alguma coisa de real que é
necessária e que basta para assegurar na experiência mesma essa
dimensão que chamamos, creio, bastante impropriamente, hábito,
essa profundidade digamos, de além, que faz com que o ser não
seja identificável a nenhum dos papéis (para empregar o termo
em uso atualmente) que ele assume.
Aqui, portanto, a dignidade, se assim posso dizer, desse ser é definida
numa relação que não é, de forma alguma, que ele
seja cortado, se posso expressar-me assim, com todos os panos de fundo, as
referências castrativas especialmente; se vocês podem, com outras
experiências, aí colocar, não o culpado [coupable], para
me permitir um jogo de palavras, mas o corte [coupure] como tal, a saber,
afinal de contas, o que se apresenta para nós como sendo a última
característica estrutural do simbólico como tal; ao que, só
quero simplesmente indicar de passagem, que o que encontramos aí é
a direção em que já lhes ensinei a pesquisar o que Freud
chamou instinto de morte, aquilo pelo que esse instinto de morte pode convergir
com o ser.
Nesse ponto pode haver algumas dificuldades. Gostaria de tentar ilustrá-las.
No último número de The Psychoanalytic Quaterly há
um artigo muito interessante, por sinal sem excessos, do Sr. Kurt Eissler,
que se chama A função dos detalhes na interpretação
das obras de arte . É em uma obra de arte, e a obra de arte em
geral, de fato, que vou tentar referir-me para ilustrar aquilo de que se
trata aqui. Kurt Eissler começa seu discurso, e o termina, por sinal,
por uma observação da qual devo dizer que podemos qualificá-la
diversamente, segundo a considerarmos como confusa ou simplesmente inexplicada.
Eis, de fato, mais ou menos o que ele articula. O termo detalhe parece particularmente
significativo a propósito, no caso da obra de um autor, por sinal perfeitamente
desconhecido além do círculo austríaco. É um
ator-autor, e se me refiro a isso é porque vou voltar daqui a pouco
a Hamlet; o ator-autor em questão é um pequeno Shakespeare
desconhecido.
A respeito desse Shakespeare que vivia no século anterior, em Viena,
Eissler fez uma dessas bonitas histórias, perfeitamente típica
daquilo que chamamos a psicanálise aplicada, isto é, que uma
vez mais ele encontrou através da vida do personagem um certo número
de elementos signaléticos paradoxais que permitem introduzir as questões
que permanecerão para sempre não resolvidas, a saber, se o Sr.
Ferdinand Raimund foi especialmente afetado, cinco anos antes que tenha escrito
uma de suas obras de arte pela morte de alguém que era para ele uma
espécie de modelo, mas um modelo tão assumido que todas as
questões se fazem a respeito de identificações, paterna,
materna, sexual, tudo o que vocês quiserem! A questão, em si
mesma, nos deixa bastante frios, é o exemplo desses trabalhos gratuitos
que nesse gênero se renovam sempre com um valor de repetição
que guarda também seu valor de convicção, mas não
é disso que se trata.
Aquilo de que se trata aqui é a espécie de distinção
que Eissler quer estabelecer entre a função do que se chama
mais ou menos o detalhe relevante - em inglês chamamo-lo o detalhe
que não cola -, o detalhe pertinente. De fato, é a respeito
de alguma coisa em uma peça bastante bem feita, do denominado Sr. Ferdinand
Raimund, é a propósito de alguma coisa que vem aí, digamos,
um pouco como cabelos na sopa, que nada implica absolutamente que o ouvido
de Kurt Eissler encontrou-se atento, que de acontecimento em acontecimento
ele chegou a reencontrar um certo número de fatos biográficos
cujo interesse é absolutamente patente.
Portanto, é do valor de guia do detalhe relevante de que se trata.
E aí Eissler faz uma espécie de oposição entre
o que se passa na clínica e o que se passa na análise dita psicanálise
aplicada que se faz comumente na análise de uma obra de arte. Ele
repete duas vezes alguma coisa – se eu tivesse tempo seria necessário
que lhes lesse isso no texto para lhes fazer sentir o caráter bastante
opaco – ele diz, em suma: é mais ou menos o mesmo papel que desempenham
os sintomas, e esse detalhe que não convém, com essa pequena
diferença, que na análise partimos de um sintoma que é
dado como um elemento relevante, essencialmente para o sujeito; é
na sua interpretação que progredimos até sua solução.
No outro caso é o detalhe que nos introduz ao problema, isto é,
que enquanto em um texto – ele não chega a formular essa noção
de texto – em um texto nós captamos alguma coisa que não estava
especialmente implicada, como sendo discordante, nós ficamos introduzidos
a alguma coisa que pode nos levar até a personalidade do autor .
Há aí alguma coisa que, se olharmos mais de perto, não
pode totalmente passar por uma relação de contraste, parece
que basta que vocês aí pensem nisso para perceber (se há
contraste, há também paralelismo) que, no conjunto, aquilo na
direção do que, parece, deveria levá-lo essa observação,
é seguramente que a discordância no simbólico – no simbólico
como tal, numa obra escrita, e aqui em todo caso – desempenha um papel funcional
perfeitamente identificável ao sintoma real, em todo caso do ponto
de vista do progresso, se esse progresso deve ser considerado como um progresso
de conhecimento concernente ao sujeito.
Nesse título, de todos os modos, a aproximação tem
realmente um interesse. Simplesmente, a questão se apresenta nesse
momento para nós, em saber se na obra de arte, eu diria, só
a falta de marca vai se tornar para nós significativa. E por que,
afinal de contas? Pois, se fica claro que na obra de arte o que podemos chamar
o erro de impressão – vocês entendem bem que quero dizer alguma
coisa que se apresenta para nós como uma descontinuidade – pode nos
levar a algum conhecimento útil para nos servir de índice onde
reencontramos nos esclarecimentos maiores, e seu alcance inconsciente, tal
ou qual incidente da vida passada do autor (o que acontece de fato nesse
artigo), será que, em todo caso, a coisa não nos introduz
a isso, é que desde então a dimensão da obra de arte
deve ser para nós esclarecida? De fato, nós podemos desde então,
e a partir desse único fato (nós o veremos bem além
desse fato) apresentar que a obra de arte então não saberia
mais, para nós, de modo algum, ser afirmada como representando essa
transposição, essa sublimação, chamem isso como
vocês quiserem, da realidade; não se trata de alguma coisa que
desempenha tão amplamente quanto possível na imitação,
não se trata de alguma coisa que desempenha tão amplamente
quanto possível na ordem da mimesis.
Isso pode, portanto, se aplicar também nisso que é, por sinal,
o caso geral, a saber, que a obra de arte tem sempre uma reestruturação
profunda, isso não põe em causa, isso mesmo que, creio, já
está para nós ultrapassado. Mas não é sobre esse
ponto que entendo atrair sua atenção. É que a obra de
arte é para nós limitada a um tipo de obra de arte. Por enquanto
me limitarei à obra de arte escrita. A obra de arte, longe de ser alguma
coisa que transfigura de algum modo que seja, o quão amplo vocês
possam dizê-lo, a realidade, introduz na sua estrutura mesma esse fato
do acontecimento do corte, na medida em que aí se manifesta o real
do sujeito, enquanto além daquilo que ele diz, é o sujeito
inconsciente. Pois se essa relação do sujeito com o acontecimento
do corte lhe é interdito na medida em que está justamente aí
seu inconsciente, não lhe é interditado enquanto o sujeito
tem a experiência do fantasma, a saber, que ele é animado por
essa relação dita do desejo, e que - pela única referência
dessa experiência e enquanto ela é intimamente tecida na obra
– alguma coisa se torna possível pelo que a obra vai expressar essa
dimensão, esse real do sujeito na medida em que nós o chamamos
há pouco acontecimento do ser além de toda realização
subjetiva possível; e que é a virtude e a forma da obra de
arte, aquela que tem sucesso e também a que fracassa, que ela implica
essa dimensão aí, essa dimensão, se assim posso dizer,
se assim posso me servir da topologia do meu esquema para fazê-lo sentir,
essa dimensão transversal que não é paralela ao campo
criado no real pela simbolização humana que se chama realidade,
mas que lhe é transversal na medida em que a relação
mais íntima do homem com o corte, enquanto ultrapassa todos os cortes
naturais, que há esse corte essencial de sua existência, a saber,
que ele está aí e ele deve se situar nesse fato mesmo do acontecimento
do corte, que é isso o de que se trata na obra de arte – e especialmente
naquela que abordamos mais recentemente, porque ela é, a respeito
disso, a obra mais problemática, a saber, Hamlet.
Há também todo tipo de coisas relevantes em Hamlet. Eu direi
mesmo que é por aí que progredimos, mas de um modo completamente
enigmático. Nós só podemos, a cada instante, nos interrogar
sobre isso, o que quer dizer essa relevância? Pois uma coisa fica clara,
é que nunca fica excluído que Shakespeare a tenha desejado.
Se certo ou errado, pouco importa! Kurt Eissler, na obra de Ferdinand Raimund,
pode achar estranho que se faça intervir, num momento, um período
de cinco anos do qual ninguém havia nunca falado antes – é o
detalhe relevante que vai pô-lo sob a via de uma certa pesquisa – é
claro que não procedemos, de modo algum, da mesma maneira concernente
ao que se passa em Hamlet, pois, em todo caso, estamos certos que esse tecido
de relevâncias não pode, de forma alguma, ser pura e simplesmente
resolvido por nós, pelo fato de que Shakespeare se deixava conduzir
aqui pelo seu bom gênio. Nós temos o sentimento de que ele era
responsável por alguma coisa, e, afinal de contas, ele o seria, nem
que seja pela manifestação de seu inconsciente mais profundo;
está, em todo caso, aqui, a arquitetura dessas relevâncias, a
qual nos mostra aquilo a que ele chega, é essencialmente a se desdobrar
na afirmação maior que distinguiremos daqui a pouco, a saber,
nesse tipo de relação do sujeito com o seu nível mais
profundo, como sujeito falante, isto é, enquanto faz vir à tona
sua relação com o corte como tal.
É bem aí o que nos mostra a arquitetura de Hamlet, na medida
em que vemos o que, em Hamlet, depende fundamentalmente de uma relação
que é a do sujeito à verdade. À diferença do sonho
do pai morto, do qual partimos este ano na nossa exploração,
o sonho do pai morto que aparece diante do filho traspassado de dor, aqui
o pai sabe que ele está morto e o faz saber a seu filho; e o que distingue
o cenário, a articulação de Hamlet de Shakespeare da
história de Hamlet tal como ela aparece na história literária
é justamente que eles são, ambos, únicos a sabê-lo.
Na história é público que o assassinato ocorreu, e Hamlet
se finge de louco para dissimular suas intenções, todo mundo
sabe que houve um crime.
Aqui, só há dois que sabem, dos quais um é ghost.
Ora, um ghost, o que é, a não ser a representação
desse paradoxo tal como unicamente a obra de arte pode fomentá-lo?
É aí que Shakespeare vai no-lo tornar inteiramente crível.
Outros além de mim mostraram a função que preenche essa
vinda do ghost ao primeiro plano. A função do ghost
se impõe desde o início de Hamlet. E esse ghost, o que
diz ele? Ele diz coisas muito estranhas e fico espantado que ninguém
o tenha nem mesmo abordado, não digo a psicanálise do ghost!
mas tenha colocado o acento de alguma interrogação sobre o
que diz o ghost. O que ele diz, em todo caso, não é
duvidoso. Ele diz: a traição é absoluta, não
havia nada maior, de mais perfeito que minha relação de fidelidade
a essa mulher. Não há nada mais total do que a traição
da qual fui objeto. Tudo o que se apresenta, tudo que se afirma como boa
fé, fidelidade e voto, é, portanto, para Hamlet, colocado não
somente como revogável, mas como literalmente revogado. A anulação
absoluta disso que acontece ao nível da cadeia significante, e é
alguma coisa que é bem diferente dessa carência de alguma coisa
que garanta; esse termo que é garantido, é a não-verdade;
esse tipo de revelação, se assim podemos dizer, da mentira
(é alguma coisa que mereceria ser acompanhado), representa o espírito
de Hamlet, esse tipo de estupor onde ele entra depois das revelações
paternas. É alguma coisa que, no texto de Shakespeare, é traduzido
de um modo perfeitamente notável, a saber, que quando lhe perguntamos
o que ele aprendeu, ele não quer dizê-lo, e com razão!,
mas o expressa de um modo todo particular, poderíamos dizer em francês
“que não há um único filho da puta no reino da Dinamarca
que não seja um indivíduo imundo ”, isto é, que ele se
expressa no regime da tautologia.
Mas, deixemos isto de lado, são só detalhes e anedotas, a
questão está em outro lugar. A questão é esta:
Onde nos enganamos? É geralmente considerado que um morto não
poderia ser um mentiroso. E por que? Pelo mesmo motivo, talvez, pelo qual
toda nossa ciência conserva ainda este postulado interno, e Shakespeare
o sublinhou em termos próprios (ele dizia de vez em quando coisas
que não eram tão superficiais enquanto tais, na ordem filosófica),
ele dizia: esse bom velho Deus é esperto, certamente ele é
honesto. Será que podemos dizer a mesma coisa de um pai que nos expressa
de um modo categórico que ele é presa de todos os tormentos
das chamas do inferno, e isso por crimes absolutamente infames? Há
aí, no entanto, alguma coisa que não pode deixar de nos alertar,
há aí alguma discordância, e se seguíssemos os
efeitos, em Hamlet, do que se apresenta como a danação eterna,
na verdade para sempre condenada a escapar a ele, se concebemos que Hamlet
permanece, então, fechado nessa afirmação do pai, será
que nós mesmos, até um certo ponto, não podemos nos
interrogar sobre o que significa, pelo menos funcionalmente, essa palavra
em relação à gênese e ao desenrolar de todo o
drama? Muitas coisas poderiam ser ditas, inclusive essa, que o pai de Hamlet
diz isto – em francês: “Mas a virtude não se comove quando o
vício viria tentá-la sob a forma do céu. Dessa forma,
a luxúria, o vício na cama de um anjo radiante toma logo de
desgosto essa camada celeste e corre para a imundície ”. É,
por sinal, uma má tradução, pois devemos dizer: “Dessa
forma, o vício, mesmo que ligado a um anjo radiante”.
De que anjo radiante se trataria? A não ser um anjo radiante que
introduz o vício nessa relação de amor enfraquecido,
no qual toda a carga é levada sobre o outro, pode ser aqui, mais do
que em qualquer outro lugar, que aquele que vêm para sempre levar o
testemunho da injúria sofrida, não tenha culpa nenhuma? Isso,
é claro, é a chave que não poderá nunca ser girada,
o segredo que não poderá nunca ser esclarecido.
Mas será que alguma coisa não vem aqui nos colocar sobre o
traço da palavra sob a qual devemos compreender? Pois bem, está,
aqui, como em qualquer outro lugar, o fantasma. Pois o enigma para sempre
não resolvido, tão primevo que, supomos, e a justo título,
o cérebro dos contemporâneos de Shakespeare, até mesmo,
por sinal, que curiosa escolha essa ampola de veneno despejado no ouvido do
ghost que é o pai, que é Hamlet-pai, não esqueçam,
pois eles se chamam, ambos, Hamlet.
Nisso os analistas não se aventuraram. Houve alguns para indicar
que talvez algum elemento simbólico deveria ser reconhecido. Mas é
alguma coisa que, em todo caso, pode ser situado, segundo nosso método,
sob a forma do bloco que ele forma, do buraco que forma, do enigma impenetrado
que constitui. Inútil, eu já o fiz, sublinhar o paradoxo dessa
revelação, até, inclusive, suas conseqüências.
O importante é isso, temos aí uma estrutura não somente
fantasmática que cola tão bem no que se passa, a saber, que
em todo caso há alguém que é envenenado pelo ouvido,
é Hamlet; e aqui o que faz função de veneno é
a palavra de seu pai. Desde então a intenção de Shakespeare
se esclarece um pouco, é, a saber, que aquilo que ele nos mostrou inicialmente
é a relação do desejo com essa revelação;
durante dois meses Hamlet permanece sob o choque dessa revelação.
E como vai reconquistar, pouco a pouco, o uso de seus membros? Pois bem, justamente,
por uma obra de arte. Os comediantes lhe vem em tempo, para que ele faça
disso o banco de provas da consciência do rei, nos diz o texto.
O que é certo é que é pela via dessa prova que ele
vai poder entrar em ação, não em uma ação
que vai se desenrolar necessariamente a partir da primeira das conseqüências,
é, a saber, primeiramente, que esse personagem que a partir da revelação
paterna desejava unicamente sua própria dissolução –
“Oh carne sólida demais, como tu não te evaporas, como não
possas te dissolver! ” – no final da peça, o vemos tomado por uma embriaguez
que tem um nome bem preciso, é aquela do artifex, ele está
louco de alegria de ter conseguido seu pior efeito, não se pode mais
contê-lo, e Horatio quase precisa se agarrar nas suas roupas para conter
uma exuberância exagerada. Quando ele lhe diz: Será que eu não
poderia agora “me engajar em alguma troupe como ator, com uma parte inteira?”
Horatio responde: com “uma meia parte” . Ele sabe o que esperar... De fato,
tudo está longe de ser reconquistado com esse negócio, não
é porque seja artifex que ele ainda encontrou seu papel; mas basta
que saibamos que ele é artifex para entender que o primeiro papel que
ele encontrará, ele o pegará. Ele exercerá aquilo que
lhe é, afinal de contas, encomendado, eu lhes lerei de novo essa passagem
no seu texto.
Tal veneno, uma vez ingerido pelo rato - e vocês sabem que o rato
nunca está muito longe de todos esses casos, especialmente em Hamlet
– lhe dá essa sede que é a sede mesmo da qual morrerá,
pois ela dissolverá completamente, nele, esse veneno mortal, tal como
ele foi inicialmente inspirado a Hamlet.
Alguma coisa se acrescenta àquilo que venho lhes dizer que permite
aí ser posto todo seu acento. Um autor nomeado [...] espantou-se disso,
que todos os espectadores deveriam ter percebido há muito tempo, é
que Claudius se mostra tão insensível ao que precede a cena
do jogo, aquela em que Hamlet faz representar diante de Claudius a cena mesma
de seu crime; há um tipo de prólogo que consiste em uma pantomima
e onde vemos, antes, toda essa longa cena de protestos de fidelidade e de
amor da rainha de comédia diante do rei da comédia; antes do
gesto de verter o veneno no ouvido, no contexto mesmo do pomar, do jardim,
que é feito praticamente diante de Claudius, que, literalmente, não
se manifesta.
Vidas inteiras se engajaram nesse ponto. O Sr. [John Dover Wilson] disse
alguma coisa, a saber, que o ghost mentia, mesmo que tal não
agrade a Deus. Eu não o digo! E o Sr. [John Dover Wilson] escreveu
longas obras para explicar como pode ser possível que Claudius, tão
manifestamente culpado, não tenha se reconhecido na cena representada.
E ele arquitetou todo tipo de coisas minuciosas e lógicas para
dizer que ele não se reconheceu... é que ele estava olhando
para outro lado. Não está indicado no jogo de cena, e talvez,
afinal de contas, isso não valha o trabalho de uma vida inteira. Será
que não poderíamos sugerir que certamente Claudius tem aí
alguma responsabilidade, de alguma coisa, ele mesmo o confessa, ele o clama
face ao céu, numa história sombria onde naufragam, não
somente o equilíbrio conjugal de Hamlet-pai, mas outras coisas mais,
até sua vida, e que é bem verdade que “Seu crime cheira mal
a ponto de feder até o céu ”. Tudo indica que, num certo momento,
ele se sente realmente afetado, no mais profundo de si mesmo, ele salta no
momento em que Hamlet lhe diz o quê? Ele lhe diz: “Aquele que vai entrar
em cena é Lucianus, ele vai envenenar o rei, é o seu sobrinho”.
Começamos a entender que Claudius, desde algum tempo, percebe que há
algo, um cheiro de enxofre no ar, quando, por sinal, indagou: “Não
há ofensa nisso? Não há a mínima ofensa”, respondeu
Hamlet; Claudius, naquele momento, percebe que se ultrapassa um pouco o limite
.
Na verdade, permanecemos numa ambigüidade total, a saber, que se o
escândalo é geral, se toda a Corte, a partir desse momento,
considera que Hamlet está particularmente impossível, pois
todo mundo está do lado do rei, é bem certo para a Corte, porque
eles [não] reconheceram aí o crime de Claudius – pois ninguém
sabe nada e ninguém nunca soube nada até o final, fora Hamlet
e seu confidente, do modo como Claudius exterminou Hamlet-pai.
A função do fantasma parece, portanto, ser aqui alguma coisa
bem diferente daquela do “meio”, como se diz nos romances policiais, e esse
algo se torna muito mais claro se pensarmos, como acredito mostrá-lo
para vocês, que Shakespeare foi mais além do que qualquer um,
ao ponto em que sua obra é a própria obra, é aquela onde
podemos ver descrita uma certa cartografia de todas as relações
humanas possíveis, com esse estigma que se chama desejo, enquanto ponto
de toque, aquilo que designa irredutivelmente seu ser, aquilo pelo que, miraculosamente,
podemos encontrar esse tipo de correspondência.
Não lhes parece absolutamente maravilhoso que alguém cuja
obra recortada por todo lado, apresenta essa unidade de correspondência,
que alguém que foi certamente um dos seres que avançaram o mais
longe nessa direção de oscilações, tenha, ele
mesmo, sem nenhuma dúvida, vivido uma aventura, aquela que é
descrita no Sonnet, que nos permite recortar exatamente as posições
fundamentais do desejo. Retornarei a isso mais tarde. Esse homem surpreendente
atravessou a vida da Inglaterra elizabetana incontestavelmente não
despercebido, com suas algumas quarenta peças e com alguma coisa da
qual temos, no entanto, alguns traços, quero dizer, alguns testemunhos.
Mas leiam uma obra muito bem feita e que resume na hora atual, mais ou menos,
tudo o que foi feito das pesquisas sobre Shakespeare. Há uma coisa
absolutamente surpreendente, é que fora o fato de que ele certamente
existiu, não podemos, sobre ele, sobre suas amarras, sobre tudo o que
o cercou, sobre seus amores, suas amizades, não podemos verdadeiramente
nada dizer. Tudo é passado, tudo desapareceu sem deixar traços.
Nosso autor se apresenta, para nós analistas, como o enigma mais radicalmente
para sempre evanescido, dissolvido, desaparecido que possamos assinalar na
nossa história.
Tradução de Paulo Medeiros e equipe.