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O DESEJO E SUA INTERPRETAÇÃO
Jaques Lacan
Lição XXI
KANT COM SADE
.
20 de Maio de 1959
Vamos retomar hoje nosso propósito no ponto em que o deixamos na última
vez, isto é, no ponto em que há uma espécie de operação
que havia formalizado para vocês sob o modo de uma divisão subjetiva
na demanda, o de que se trata. Nós vamos retomar isso na medida em
que isso nos conduz ao exame da fórmula do fantasma enquanto suporte
de uma relação essencial, de uma relação pivô,
aquela que tento promover para vocês neste ano no funcionamento da
análise.
Se vocês se lembrarem, lhes escrevi na última vez as seguintes
letras: imposição, proposição da demanda no lugar
do Outro, como sendo a etapa ideal primária. É uma reconstrução,
evidentemente e, no entanto, nada é mais concreto, nada é mais
real, já que é na medida em que a demanda da criança
começa a se articular que o processo se engendra, ou, pelo menos,
pretendemos mostrar que o processo se engendra, de onde vai se formar essa
Spaltung do discurso que é expressa nos efeitos do inconsciente.
Se vocês lembrarem, na última vez, depois dessa primeira posição
do sujeito no ato da primeira articulação da demanda, fizemos
alusão àquilo que se extrai disso como essa pendência
necessária da posição do Outro real, como aquele que
é todo poderoso para responder a essa demanda.
Como lhes disse, é um estágio que evocamos, que é essencial
para a compreensão da fundação da primeira relação
ao Outro, à mãe, como dando no Outro a primeira forma da omnipotência.
Mas, como lhes disse, é considerando o que se passa ao nível
da demanda que vamos prosseguir o processo da geração lógica
que se produz a partir dessa demanda. De modo que o que expressei noutro
dia sob a forma que fazia intervir o Outro como sujeito real – não
sei mais se é sob essa forma ou sob outra que havia escrito isso na
lousa, que a demanda aqui toma um outro alcance, que ela se torna demanda
de amor, enquanto demanda de satisfação de uma necessidade
ela é revestida nesse nível de um signo, com uma barra que
muda essencialmente seu alcance. Pouco importa que empreguei essas letras
ou não (foram de fato essas que utilizei) já que isso é
mui precisamente aquilo que pode engendrar todo um tipo de [paleta] que é
a das experiências reais do sujeito, na medida em que elas vão
se inscrever em um certo número de respostas que são gratificantes
ou frustrantes e que são, evidentemente, muito essenciais para que
aí se inscreva uma certa modulação de sua história.
Mas não é isso que é pretendido na análise sincrônica,
a análise formal, que é a que pretendemos agora. É na
medida em que – no estágio ulterior àquele da posição
do outro como outro real que responde à demanda – o sujeito o interroga
como sujeito, isto é, onde ele mesmo mostra-se como sujeito enquanto
sujeito para o outro. É nessa relação de primeira etapa
em que o sujeito se constitui em relação ao sujeito que fala,
se refere na estratégia fundamental que se instaura tão logo
apareça a dimensão da linguagem, e que só começa
com essa dimensão de linguagem; é na medida em que o outro,
tendo-se estruturado na linguagem, desse fato advém sujeito possível
de uma tragédia em relação à qual o próprio
sujeito pode se constituir como sujeito reconhecido no outro, como sujeito
para um sujeito. Não pode haver outro sujeito senão um sujeito
para um sujeito, e, por outro lado, o sujeito primeiro só pode se
instituir como tal somente como sujeito que fala, somente como sujeito da
palavra. É, portanto, na medida em que o próprio Outro é
marcado pelas necessidades da linguagem, que o Outro se instaura não
como outro real, mas como Outro, como lugar da articulação
da palavra, que se faz a primeira posição possível de
um sujeito como tal, de um sujeito que pode se apreender como sujeito, que
se capta como sujeito no outro, na medida em que o outro pensa nele como
sujeito.
Vocês vêem, lhes fiz observar da última vez, nada mais
concreto que isso. Não é, de forma alguma, uma etapa da meditação
filosófica, é esse algo de primitivo que se estabelece na relação
de confiança. Em que medida, e até que ponto, posso eu contar
com o outro? O que há de confiável nos comportamentos do outro?
Que continuação posso esperar daquilo que já por ele
foi prometido? Está bem aí aquilo sobre o que um dos conflitos
mais primitivos – o mais primitivo sem dúvida, do ponto de vista que
nos interessa – da relação da criança com o outro, é
alguma coisa em torno de que vemos girar a instauração e a
base mesma dos princípios de sua história, e isso também
se repete no nível o mais profundo de seu destino, daquilo que comanda
a modulação inconsciente de seus comportamentos. Está
alhures que numa pura e simples frustração ou gratificação.
É na medida em que ele pode se fundar sobre algo outro do que, vocês
sabem, se institui aquilo que nós encontramos na análise, ou
seja, até mesmo na experiência mais cotidiana da análise,
o que nós encontramos de mais radical na modulação inconsciente
do paciente, neurótico ou não. É, portanto, na medida
em que diante do outro como sujeito da palavra, enquanto se articula primordialmente,
é em relação a esse outro que o próprio sujeito
se constitui como sujeito que fala, não como sujeito primitivo do
conhecimento, não o sujeito dos filósofos, mas o sujeito enquanto
olhado pelo outro, como podendo lhe responder em nome de uma tragédia
comum, como sujeito que pode interpretar tudo aquilo que o outro articula,
designa de sua intenção mais profunda, de sua boa ou de sua
má fé.
Essencialmente nesse nível, se me permitirem um jogo de palavras,
o S se apresenta realmente não somente como o S que se inscreve como
uma letra, mas também nesse nível como o Es da fórmula
tópica que Freud dá do sujeito, Isso [(Ça]. Isso [Ça],
sob uma forma interrogativa, sob a forma também onde, se colocarem
aqui um ponto de interrogação, o S se articula, “será?”
[“est-ce?”]. Aí está tudo aquilo que nesse nível o sujeito
formula, ainda, dele mesmo. Ele está, no estado nascente, em presença
da articulação do Outro na medida em que ela lhe responde,
mas ela lhe responde além daquilo que ele formulou na sua demanda.
S, é nesse nível que o sujeito se suspende e na etapa seguinte,
isto é, na medida em que vai dar esse passo onde ele quer se apreender
no além da palavra, está ele mesmo como marcado com alguma
coisa que o divide primordialmente dele mesmo enquanto sujeito da palavra,
é nesse nível, enquanto sujeito barrado, $, que ele pode, que
ele deve, que ele entende encontrar a resposta; e que também não
a encontra na medida em que reencontra no Outro, nesse nível, esse
oco, esse vazio que articulei para vocês enquanto dizendo que não
há Outro do Outro, que nenhum significante possível garante
a autenticidade da seqüência dos significantes, que ele depende
essencialmente para isso da boa vontade do Outro, que não há
nada que, ao nível do significante, garanta, autentifique no que quer
que seja, a cadeia e a palavra significante.
E é aqui que se produz
por parte do sujeito esse algo que ele tira de outro lugar, que ele faz vir
de outro lugar, que ele faz vir do registro imaginário, que ele faz
vir de uma parte dele mesmo enquanto engajado na relação imaginária
ao outro. E é esse a que vem aqui, que surge no lugar onde se acede,
onde se apresenta a interrogação do [S], sobre o que ele é
realmente, sobre aquilo que ele quer realmente. É aí que se
produz o surgimento desse algo que chamamos a, a na medida em que ele é
o objeto, o objeto do desejo, sem dúvida, e não na medida em
que esse objeto do desejo se cooptaria diretamente em relação
ao desejo, mas na medida em que esse objeto entra em jogo em um complexo
que chamamos o fantasma, o fantasma como tal, isto é, na medida em
que esse objeto é o suporte em torno de que, no momento em que o sujeito
evanesce diante da carência do significante que responde de seu lugar
no nível do Outro, [ele] encontra seu suporte nesse objeto.
Isto quer dizer que nesse nível a operação é
divisão. O sujeito tenta se reconstituir, se autentificar, reunir-se
na demanda conduzida para o Outro. A operação se detém.
Na medida em que aqui o quociente que o sujeito busca alcançar – na
medida em que deve se apreender, se reconstituir e se autentificar como sujeito
da palavra – permanece aqui suspenso, em presença, ao nível
do Outro, da aparição desse resto por onde ele mesmo, o sujeito,
suprido, trás o resgate, vem substituir a carência ao nível
do Outro do significante que lhe responde.
É na medida em que esse quociente e esse resto
permanecem aqui em presença um do outro e, se assim podemos dizer,
se sustentam um pelo outro, que o fantasma não é nada mais
que o enfrentamento perpétuo desse $, desse $ na medida em que ele
marca esse momento de fading do sujeito, no qual o sujeito não encontra
nada no Outro que o garanta, ele, de modo certo e certeiro, que o autentifique,
que o permita situar-se e de nomear-se ao nível do discurso do Outro,
isto é, enquanto sujeito do inconsciente. É respondendo a esse
momento que surge como suplente do significante faltante, esse elemento imaginário
[a], que chamamos na sua forma mais geral, enquanto termo correlativo da
estrutura do fantasma, esse suporte de S como tal, no momento em que tenta
se indicar como sujeito do discurso inconsciente.
Parece-me que aqui não tenho nada mais a dizer sobre isso. Eu vou,
no entanto, dizer mais, para lhes lembrar o que isso quer dizer no discurso
freudiano, por exemplo o: “Wo Es war, soll Ich werden”, “Aí onde Isso
estava, aí Eu devo advir” [“Là où C’était, là
Je dois devenir”]. É muito preciso, é esse Ich que não
é das Ich, que não é o eu [moi], que é um Ich,
o Ich utilizado como sujeito da frase. “Aí onde isso estava, ali onde
Isso fala”, isto é, onde no instante anterior alguma coisa estava,
que é o desejo inconsciente, aí devo me designar, aí
“Eu [Je] devo ser”, esse eu [Je] que é o objetivo, o fim, o termo
da análise antes que ele se nomeie, antes que ele se forme, antes
que ele se articule, a não ser que ele nunca o faça, pois também
na fórmula freudiana esse “soll Ich werden”, esse deve ser, esse “devo-Eu
me tornar” [dois-Je devenir] é o sujeito de um tornar-se, de um dever
que lhes é proposto.
Nós devemos reconquistar esse campo perdido do ser do sujeito, como
diz Freud na mesma frase, em uma bonita comparação com a reconquista
da Holanda sobre o Zuyderzee, de terras oferecidas para uma conquista pacífica
. Esse campo do inconsciente sobre o qual devemos ganhar na realização
da Grande Obra analítica, é bem disso o de que se trata. Mas
antes que isto seja feito, “Aí onde Isso estava”, o que é que
nos designa o lugar desse Eu [Je] que deve vir à tona? O que nos designa,
é o índice de que? Mui exatamente daquilo de que se trata,
do desejo, do desejo enquanto função e termo daquilo de que
se trata no inconsciente.
E o desejo aqui é sustentado pela oposição, a coexistência
dos dois termos que são aqui o $, o sujeito na medida em que justamente
nesse limite ele se perde, que aí o inconsciente começa – o
que quer dizer que não há pura e simplesmente privação
de alguma coisa que se chamaria consciência, isto é, que uma
outra dimensão comece onde não lhe é mais possível
saber, onde ele não é mais [que esse a]. Aqui se detém
toda possibilidade de se nomear. Mas nesse ponto de parada está também
o índice, o índice que é trazido, que é a função
maior, quaisquer que sejam as aparências daquilo que, naquele momento,
é sustentado diante dele como o objeto que o fascina, mas que é
também aquele que o retém diante da anulação
pura e simples, a síncope de sua existência. E é isso
que constitui a estrutura daquilo que chamamos o fantasma.
É nisso que vamos nos deter hoje. Nós vamos ver o que comporta
como generalidade de aplicação essa fórmula do fantasma.
Também vamos tomá-lo, já que dissemos da última
vez que estava na sua função sincrônica, isto é,
no lugar que ele ocupa nessa referência do sujeito para com ele mesmo,
do sujeito com aquilo que ele é ao nível do inconsciente quando
– não direi, ele se interroga sobre aquilo que ele é –, quando
ele é, em suma, conduzido pela questão sobre o que ele é,
o que é a definição da neurose.
Detenhamo-nos antes nas propriedades formais, tais como a experiência
analítica nos permite reconhecê-las, desse objeto a enquanto
intervêm na estrutura do fantasma.
O sujeito, digamos, está na borda dessa nominação falhante
que é o papel estrutural daquilo que é objetivado no momento
do desejo. E ele está no ponto em que sofre, se assim posso dizer,
no máximo, o auge [acmé], aquilo que podemos chamar a virulência
do logos, na medida em que ele se encontra com o ponto supremo do efeito
alienante de sua implicação no logos. Esta tomada do homem
na combinatória fundamental que dá a característica
essencial do logos, é uma questão que outros além de
mim tem para resolver, de saber o que ela pode querer dizer; eu quero dizer,
o que quer dizer que o homem é necessário a essa ação
do logos no mundo. Mas aqui o que temos para ver, é aquilo que resulta
disso para o homem, e como o homem encara isso, como ele o mantém.
A primeira fórmula que pode nos vir é que é preciso
que ele o sustente realmente, que ele o sustente de seu real, dele enquanto
real, isto é, também daquilo que lhe resta sempre o mais misterioso.
Um desvio aqui não seria mal vindo. É tentar, para nós,
apreender – é aquilo sobre o que, por sinal, alguns dentre vocês,
há muito tempo se interrogam – aquilo que até poderia, no último
termo, querer dizer esse emprego que fazemos aqui do termo real, na medida
em que o opomos ao simbólico e ao imaginário.
É preciso afirmar que se a psicanálise, se a experiência
freudiana vem em seu tempo, na nossa época, não é certamente
indiferente constatar que é na medida em que pode vir para nós,
com a maior resistência, aquilo que poderia chamar seja a forma de
uma crise da teoria de conhecimento, ou do próprio conhecimento. Enfim,
esse ponto sobre o qual da última vez já tentei atrair a atenção
de vocês é, a saber, aquilo que significa a aventura da ciência
– como ela se criou, inseriu, ramificou sobre essa extensa cultura – que
foi uma tomada de posição, suficientemente parcial para que
possamos chamá-la parcial, que foi essa retirada do homem sob certas
posições em presença do mundo, que foram primeiramente
posições contemplativas, aquelas que implicavam, não
a posição do desejo – sem dúvida lhes fiz notar – mas
a escolha, a eleição de uma certa forma desse desejo; desejo,
tenho dito, de saber, desejo de conhecer. Certamente podemos especificá-la
como uma disciplina, uma ascese, uma escolha, e sabemos o que é extraído
disso, a saber, a ciência, nossa ciência moderna, nossa ciência
na medida em que pode-se dizer que ela se distingue para nós por essa
tomada excepcional sobre o mundo que, por um certo lado, nos tranqüiliza
quando falamos de realidade.
Nós sabemos que não ficamos sem apreensão sobre o real,
mas qual, afinal de contas? Será uma tomada de conhecimento? E eu
só posso aqui indicar-lhes, pelo menos, a questão. Será
que não parece, à primeira aproximação, à
primeira apreensão que temos daquilo que resulta desse processo que,
seguramente, no ponto em que estamos, no ponto da elaboração
especialmente da ciência física, é a forma em que o sucesso
se impulsionou o mais longe da tomada de nossas cadeias simbólicas
sobre alguma coisa que chamamos a experiência, a experiência
construída; será que não parece que, menos do que nunca,
temos o sentimento de atingir esse algo que, no ideal da filosofia incipiente,
da filosofia dos seus inícios, se propunha como o fim, a recompensa
do esforço do filósofo, do sábio, isto é, essa
participação, esse conhecimento, essa identificação
ao ser que era visado e que era representado na perspectiva grega, na perspectiva
aristotélica, como sendo aquilo que era a finalidade do conhecer,
a saber, a identificação, pelo pensamento do sujeito (que não
se chamava naquele momento sujeito), daquele que pensava, daquele que perseguia
o conhecimento, ao objeto de sua contemplação?
Em que nós nos identificamos ao termo da ciência moderna? Eu
não creio nem mesmo que haja uma única ramificação
da ciência, que seja aquela onde chegamos aos resultados mais perfeitos,
os mais adiantados, que isso seja aquilo mesmo em que a ciência busca
se iniciar, dar o primeiro passo, como nos termos de uma psicologia que se
chama behaviourismo; se bem que nós estamos certos de ser decepcionados
no último termo quanto ao que há para se conhecer, ou mesmo
quando nos encontramos em uma das formas dessa ciência que ainda está
balbuciando, – que pretende imitar, como o pequeno personagem em Melancholia
de Dürer, o pequeno anjo, que ao lado da grande Melancolia começa
a fazer seus primeiros círculos – quando nós começamos
uma psicologia que se pretende científica, colocamos no princípio
que vamos fazer um simples behaviourismo, isto é, que vamos nos contentar
em observar, sobretudo recusamos, no início mesmo, toda visada que
comporta como que essa assunção, essa identificação
com aquilo que está aí diante de nós. Além do
método, isso vai consistir inicialmente em nos recusarmos acreditar
que possamos, no objetivo, chegar àquilo que está no antigo
ideal do conhecimento.
Há aí, sem dúvida, alguma coisa de verdadeiramente exemplar
e que é de natureza a nos fazer meditar sobre o que se passa quando,
por outro lado, uma psicologia (que) evidentemente, se não a colocamos
e não a articulamos como uma ciência é, no entanto, uma
coisa que se apresenta como paradoxal em relação ao método
até aqui definido sobre a contribuição científica),
a psicologia freudiana, ela nos diz que o real do sujeito não deve
ser concebido como o correlativo de um conhecimento.
O primeiro passo em que se situa o real como real, como termo de alguma coisa
onde o sujeito está implicado, não é em relação
ao sujeito do conhecimento que ele se situa, já que alguma coisa no
sujeito se articula que está além de seu conhecimento possível
e que, no entanto, já é o sujeito que mais é, o sujeito
que se reconhece nisso, que é sujeito de uma cadeia articulada. Que
alguma coisa que é da ordem de um discurso desde o início,
que sustenta portanto algum suporte, algum suporte do qual não é
abusivo qualificá-lo com o termo ser se, afinal de contas, damos a
esse termo sua definição mínima, se o termo ser quer
dizer alguma coisa, é o real enquanto se inscreve no simbólico,
o real implicado nessa cadeia que Freud nos diz ser coerente e comandar,
além de todas essas motivações acessíveis ao
jogo do conhecimento, o comportamento do sujeito. É bem alguma coisa
que, no sentido completo, merece ser nomeado como da ordem do ser, desde
que já é alguma coisa que se apresenta como um real articulado
no simbólico, como um real que tomou seu lugar no simbólico,
e que tomou esse lugar além do sujeito do conhecimento.
É no momento em que, diria, - e é aí que se encerra
o parêntese que eu havia aberto há pouco - , é no momento
em que, na nossa experiência do conhecimento alguma coisa para nós
se desvencilha daquilo que é desenvolvido sobre a árvore do
conhecimento, onde alguma coisa nesse ramo que se chama a ciência se
revela, se manifesta a nós como sendo alguma coisa que enganou a esperança
do conhecimento.
Se, por outro lado, podemos dizer que isso foi, talvez, mais longe que toda
espécie de efeito esperado do conhecimento, é, ao mesmo tempo
e nesse momento que, na experiência da subjetividade, naquela que se
estabelece na confidência, na confiança analítica, Freud
nos designa essa cadeia onde as coisas se articulam de um modo que é
estruturado de maneira homogênea o a toda uma outra cadeia simbólica,
com aquilo que conhecemos como discurso que, no entanto, não é
acessível, como na contemplação, não é
acessível ao sujeito na medida em que ele poderia aí apoiar
como objeto onde ele se reconhece. Bem ao contrário, fundamentalmente,
ele se desconhece. E em toda extensão onde ele tenta, nessa cadeia,
abordar, onde ele tenta aí se nomear, se localizar, é aí
precisamente que ele não se encontra. Ele só está aí
nos intervalos, nos cortes. Cada vez que ele quer se apreender, ele só
está no intervalo, e é bem por isso que o objeto imaginário
do fantasma, sobre o qual ele vai buscar se sustentar, é estruturado
como ele o é – é o que eu quero lhes mostrar agora.
Há muitas outras coisas para demonstrar sobre essa formalização
$ a, mas quero lhes mostrar como é feito a. Eu lhes disse, é
como corte e como intervalo que o sujeito se reencontra no termo de sua interrogação.
É também, essencialmente, como forma de corte que o a, em toda
sua generalidade, nos mostra sua forma. Aqui eu vou simplesmente reagrupar
um certo número de traços comuns que vocês já
conhecem, que dizem respeito às diferentes formas desse objeto. Para
aqueles aqui que são analistas, posso ir rápido nem que depois
eu tenha que entrar no detalhe, que recomeçar. Se se trata de que
o objeto no fantasma seja alguma coisa que tenha a forma de corte, dentro
do que vamos poder reconhecê-la? Francamente, direi que ao nível
do resultado, penso que já vocês me anteciparam, pelo menos
eu ouso esperar tal.
Nesta relação que faz com que $, no ponto onde ele se interroga
como $, se mantém somente em uma série de termos que são
aqueles que chamamos aqui a, enquanto que objetos no fantasma, podemos, numa
primeira aproximação, dar três exemplos disso. Isso não
implica que seja completamente exaustivo, quase o é. Digo que isso
não o é completamente enquanto tomar as coisas ao nível
daquilo que chamarei o resultado, isto é, do a constituído,
não é uma iniciativa tão legítima. Eu quero dizer
que começar por aí é simplesmente lhes fazer partir
de um terreno já conhecido, no qual vocês se encontrarão
para tornar o caminho mais fácil. Isso não é a via mais
rigorosa, como vocês verão, quando teremos que alcançar
esse termo pela via mais rigorosa da estrutura. Isto é, a via que
parte do sujeito na medida em que ele é barrado, na medida em que
é ele que levanta, que suscita o termo do objeto. Mas é do
objeto que nós partiremos, porque é daí que vocês
se reconhecerão melhor.
Há três modos referidos na experiência analítica,
identificados bem até o presente, como tais (a, , d).
A primeira categoria é aquela que chamamos habitualmente, à
torto e à direita, o objeto pré-genital.
A segunda espécie é aquele tipo de objeto que está implicado
naquilo que é chamado o complexo de castração, e vocês
sabem que sob sua forma mais geral, é o falo.
A terceira talvez seja o único termo que lhes surpreenderá
como uma novidade, mas na verdade penso que aqueles dentre vocês que
puderam estudar de mais perto aquilo que pude escrever sobre as psicoses
não se encontrarão, no entanto, essencialmente desnorteados,
a terceira espécie de objeto preenchendo exatamente a mesma função
em relação ao sujeito com o seu ponto de falha, de fading,
isso não sendo nada além, e nem mais nem menos que aquilo que
chamamos comumente o delírio, e mui precisamente aquilo porque Freud,
desde quase o início de suas primeiras apreensões, pode escrever:
“Eles amam seu delírio como a eles mesmos”, Sie lieben also den Wahn
wie sich selbst.
Nós vamos retomar essas três formas do objeto na medida em que
elas nos permitem apreender alguma coisa na sua forma que lhes permite preencher
essa função, a de tornarem-se os significantes que o sujeito
tira de sua própria substância para sustentar diante dele, precisamente,
esse buraco, essa ausência do significante ao nível da cadeia
inconsciente.
-1. Enquanto objeto pré-genital, o que é que quer dizer o a?
Na experiência animal, na medida em que ela se estrutura em imagens,
não deveríamos nós aqui evocar o próprio termo
por onde mais de uma reflexão materialista chega a resumir aquilo
que é, afinal de contas, o funcionamento de um organismo, essencialmente
humano, seja ele ao nível das trocas materiais? Precisamente – não
fui eu que inventei a fórmula – esse animal, humano que seja, só
é, afinal de contas, uma tripa com dois orifícios, aquele por
onde isso entra e o outro por onde isso sai. E é também aí
aquilo pelo que se constitui o objeto dito “pré-genital” na medida
em que ele vem preencher sua função significante no fantasma.
É na medida em que, pois, o sujeito se alimenta, se corta em algum
momento dele, até mesmo que no caso – é a inversão da
posição, o estado sádico-oral – ele mesmo o corta, ou
pelo menos, se esforça para cortá-lo e morder. É, portanto,
o objeto enquanto objeto de privação [sevrage], aquilo que
quer dizer, propriamente falando, objeto de corte por um lado e, por outro,
na outra extremidade da tripa, enquanto aquilo que rejeita, se corta dele
– e também que todo aprendizado, é feito por ritos e pelas
formas da higiene – que ele aprende que aquilo que rejeita, ele o corta dele
mesmo.
É essencialmente na medida em que o que fazemos, na experiência
analítica comum, a forma fundamental do objeto das fases ditas oral
e anal, a saber, o mamilo (esta parte do seio que o sujeito pode pegar no
seu orifício bucal, e também aquilo do qual ele é separado),
é também esse excremento que se torna também para o
sujeito, num outro momento, a forma mais significativa de sua relação
com os objetos; [esses objetos] são pegos, escolhidos, mui precisamente,
na medida em que eles são especialmente exemplares, manifestando na
forma a estrutura do corte, que eles estão implicados em desempenhar
esse papel de suporte ao nível em que o sujeito se encontra ele mesmo
situado como tal no significante, enquanto estruturado pelo corte.
E é o que nos explica que esses objetos, entre outros e de preferência
a outros, sejam escolhidos. Pois não podemos deixar de notar que se
se tratasse de que o sujeito erotiza tal ou qual de suas funções
enquanto que simplesmente vital, por que não haveria também
uma fase mais primitiva que as outras e, parece, até mais fundamental,
que é aquela a que ele estaria ligado a uma função,
- do ponto de vista da nutrição, tão vital quanto aquela
que se passa pela boca, para acabar na excreção do orifício
intestinal, - a respiração? Sim, mas a respiração
não conhece em lugar algum este elemento de corte. A respiração
não se corta, ou, se ela é cortada, o é de modo que
não deixa de engendrar algum drama. Nada se inscreve em um corte da
respiração a não ser de modo excepcional. A respiração,
esse ritmo, a respiração é pulsação, a
respiração é alternância vital, ela não
é nada que permita, sob o plano imaginário, simbolizar precisamente
o de que se trata, a saber, o intervalo, o corte.
Não é dizer, no entanto, que nada do que se passa pelo orifício
respiratório não possa, como tal, ser escandido, já
que precisamente é por esse mesmo orifício que se produz a
emissão da voz e a emissão da voz, ela é alguma coisa
que se corta, que se escande. E é também o porquê de
a reencontrarmos daqui a pouco, e precisamente ao nível desse terceiro
tipo do a que chamamos o delírio do sujeito. Na medida em que, justamente,
essa emissão não é escandida, na medida em que ela é
simplesmente [pneuma], flatus, é, evidentemente, muito notável
– e aqui lhes peço se reportarem aos estudos de Jones – ver que, do
ponto de vista do inconsciente, ela não é individualizada,
ao ponto mais radical, como sendo alguma coisa que seja da ordem respiratória.
Mais precisamente, em razão, justamente, dessa imposição
da forma do corte, relacionada ao nível mais profundo da experiência
que temos disso no inconsciente (e é mérito de Jones o haver
notado), ao flatus anal que se encontra, paradoxalmente - e por essa espécie
de surpresa desprazerosa que as descobertas analíticas nos trouxeram
-, se encontra a simbolizar no mais profundo o de que se trata cada vez que,
ao nível do inconsciente, é o falo que se encontra a simbolizar
o sujeito.
-2. No segundo nível, e só se trata aí evidentemente
de um artifício de exposição, pois não há
nem primeiro nem segundo nível, no ponto em que nos deslocamos aqui,
todos os a tem a mesma função. Eles têm a mesma função,
trata-se de saber porque eles tomam uma forma ou outra, mas na forma que
descrevemos na sincronia, aquilo que tentamos destacar, são os traços,
são os caracteres comuns. Aqui, ao nível do complexo de castração,
lhe encontramos uma outra forma, que é aquela da mutilação.
De fato, se se trata de corte, é preciso e basta que o sujeito se
separe de alguma parte dele mesmo, que ele seja capaz de se mutilar. E depois
da coisa toda – os autores analistas a perceberam – não implica nem
mesmo uma modalidade tão nova no primeiro aspecto, já que eles
se lembraram a propósito da mutilação, na medida em
que ela desempenha um papel tão importante em todas as formas, em
todas as manifestações do acesso do homem à sua própria
realidade, na consagração de sua plenitude de homem – nós
sabemos pela história, nós sabemos pela etnografia, nós
sabemos pela constatação de todos os processos iniciáticos
por onde o homem busca, em um certo número de formas de estigmatização,
definir seu acesso a um nível superior de realização
dele mesmo – nós sabemos essa função da mutilação
como tal, e não é aqui que terei de lhes lembrar o catálogo
e o leque.
É preciso simplesmente, e basta, que eu lhes lembre aqui, simplesmente
para lhes fazer, nesta oportunidade, tocar com o dedo, sob uma outra forma
que é ainda aqui de algo que podemos chamar corte de que se trata,
e graciosamente, na medida em que instaura a passagem a uma função
significante, já que aquilo que resta dessa mutilação
é uma marca. É o que faz com que o sujeito que sofreu a mutilação
como um indivíduo particular no rebanho carregue definitivamente sobre
ele a marca de um significante que o extrai de um estado primeiro para conduzí-lo,
identificá-lo a uma potência de ser diferente, superior. É
o sentido de toda espécie de experiência de travessia iniciática,
na medida em que reencontramos sua significação ao nível
do complexo de castração como tal.
Não fica tão bem, lhes faço notar de passagem, esgotar
a questão, pois depois do tempo todo que tento, com vocês, me
aproximar daquilo de que se trata no nível do complexo de castração,
vocês devem ter percebido as ambigüidades que reinam em torno
da função desse falo. Em outros termos, marcado se ele é
simplesmente o resultado de ver que, por algum lado, é ele que
está marcado, é ele que é conduzido à função
de significante, resta que, no entanto, a forma da castração
não esteja inteiramente implicada naquilo que podemos ter no
exterior, nos resultados das cerimônias que desembocam a tal ou qual
deformação, circuncisão.
A marca conduzida sobre o falo não é essa espécie de
extirpação, de função particular de negativação
trazida ao falo no complexo de castração. Isso não podemos
aproveitar nesse nível da exposição, voltaremos a isso,
penso, da próxima vez, quando tivermos que explicar aquilo que lhes
indico simplesmente hoje, é o problema que se apresenta agora que
reabordaremos essas coisas, que refaremos o inventário disso. É,
a saber, em que e porque Freud pôde, no início, fazer esta coisa
enorme que é ligar o complexo de castração a esse algo
a que um exame atento mostra que não é tão solidário,
a saber, de uma função dominadora, cruel, tirânica, de
um tipo de pai absoluto. Aí está, certamente, um mito. E como
tudo aquilo que Freud trouxe, é um fato muito miraculoso, é
um mito que permanece, e tentaremos explicar porque.
Não fica por menos que, em sua função fundamental, os
ritos de iniciação que se marcam, que se inscrevem em um certo
número de formas de estigmatização, de mutilação,
aquele ponto que abordamos hoje, a saber, na medida em que desempenham
esse papel do a, na medida em que eles são para os próprios
sujeitos que os experimentam destinados a mudar de natureza. Aquilo que no
sujeito, até aí, na liberdade dos estágios pré-iniciáticos
que caracterizam as sociedades primitivas, foi deixado para um tipo de jogo
indiferente de desejos naturais, os ritos de iniciação tomam
a forma de mudar o sentido desses desejos, de lhes dar, a partir daí
precisamente, uma função onde se identifica, onde se designa
como tal o ser do sujeito, onde ele se torna, se assim podemos dizer, homem,
mas também mulher de pleno exercício; onde a mutilação
serve aqui para orientar o desejo, para tomar precisamente essa função
de índice, de alguma coisa que é realizada e que não
pode se articular, se expressar, a não ser em um para-além
simbólico e um para-além que é aquele que chamamos hoje
o ser, uma realização de ser no sujeito.
Poderíamos nessa ocasião fazer algumas observações
laterais e perceber que se alguma coisa se oferece à espera, para
a marca significante do rito de iniciação, não é
evidentemente por acaso que isso seja tudo aquilo que pode se oferecer aí
como um apêndice. Vocês sabem da mesma forma que o apêndice
fálico não é o único, no caso empregado, sem
nenhuma dúvida também a relação que o sujeito
pode estabelecer em toda a referência a ele mesmo, e que é aquela
em que podemos conceber que a apreensão vivida pode ser a mais notável,
a saber, a relação de intumescência, designa, é
claro, no primeiro plano, o falo como alguma coisa que se oferece de modo
privilegiado a essa função de poder se oferecer ao corte e
também de uma forma que será, seguramente, mais que em qualquer
outro objeto, temida e escabrosa.
É aqui que na medida em que a função do narcisismo é
relação imaginária do sujeito consigo mesmo, ela deve
ser tomada pelo ponto de suporte onde se inscreve, no centro, essa formação
do objeto significativo. E aí também podemos talvez perceber
como aquilo que é aqui importante na experiência que temos de
tudo o que se passa ao nível do estágio do espelho – a saber,
a inscrição, a situação em que o sujeito pode
colocar sua própria tensão, sua própria ereção,
em relação à imagem do além dele mesmo que ele
tem no outro – nos permite perceber o que podem ter de legítimo algumas
das aproximações que a tradição dos psicólogos-filósofos
já havia feito dessa apreensão da função do eu
[moi].
Eu faço aqui alusão àquilo que Maine de Biran nos trouxe
na sua análise tão fina do papel do sentimento do esforço,
o sentimento do esforço na medida em que ele é impulsionado,
apreendido pelo sujeito dos dois lados ao mesmo tempo, na medida em que ele
é o autor da impulsão, mas que é também o autor
daquilo que a contém, na medida em que sente essa impulsão
dele como tal no interior dele próprio. Eis que, aproximado dessa
experiência da intumescência, nos faz perceber bem o quanto pode
se situar aí e entrar em função, nesse mesmo nível
da experiência (como aquilo pelo que o sujeito se ressente sem nunca,
no entanto, poder se apreender, já que também aqui não
há, propriamente falando, marca possível, corte possível)
alguma coisa da qual creio que o elo aqui deva ser localizado enquanto tomando
valor simbólico, sintomático, no mesmo nível da experiência
que é aquela que tentamos analisar aqui na, que é aquela tão
paradoxal do cansaço.
Se o esforço não pode servir de modo algum ao sujeito, pela
razão de que nada permite impregná-lo com o corte significante,
inversamente parece que esse algo de que vocês conhecem o caráter
de miragem, o caráter inobjetivável ao nível da experiência
erótica, que se chama o cansaço do neurótico, esse cansaço
paradoxal que não tem nada a ver com nenhum dos cansaços musculares
que podemos registrar sobre o plano dos fatos – esse cansaço, na medida
em que responde é, de certa forma, o inverso, a seqüela, o traço
de um esforço que chamarei de “signifiquantidade”[“signifiquantité”].
É aí que poderíamos encontrar – e creio que, de passagem,
seria importante observar – esse algo que é, em sua forma mais geral,
aquilo que ao nível da intumescência, da impulsão como
tal do sujeito, nos dá os limites onde vêm evanescer a consagração
possível na marca significante.
-3. Nós chegamos à terceira forma desse pequeno a, na medida
em que ele pode aqui servir como objeto. Aqui eu gostaria que não
se entendesse mal e certamente não tenho, diante de mim, tempo suficiente
para poder pôr o acento sobre aquilo que vou tentar aqui isolar em
todos os seus detalhes. O que eu creio ser o mais favorável para lhes
mostrar aquilo de que se trata e como o entendo – fora de uma releitura atenta
que lhes peço fazer daquilo que escrevi sobre o sujeito De uma questão
anterior a todo tratamento possível da psicose, a saber, aquilo que
articulei do que nos permite, de modo tão impelido, tão elaborado
articular o delírio de Schreber – é o que vai nos permitir
captar a função da voz no delírio como tal.
Eu creio que é na medida em que tivermos buscado ver em que a voz
no delírio responde bem especialmente às exigências formais
desse a, na medida em que ele pode ser elevado à função
significante do corte, do intervalo como tal, que nós compreenderemos
as características fenomenológicas dessa voz. O sujeito produz
a voz e, direi mais, teremos de fazer intervir essa função
da voz na medida em que fazendo intervir o peso do sujeito, o peso real do
sujeito no discurso, na formação da instância do sobre-eu,
a voz grossa deve fazer entrar em jogo como algo que representa a instância
de um Outro se manifestando como real.
Será da mesma voz o de que se trata na voz do delirante? A voz do
delirante, será ela esse algo cuja função dramática
o Senhor Cocteau tentou isolar sob o título A voz humana? Basta se
referir à essa experiência para que possamos ter disso, de fato,
sob uma forma isolada, aí onde Cocteau, com muita pertinência
e faro soube nos mostrar, a incidência pura, a saber, ao telefone.
O que é que a voz nos traz como tal, além do discurso que ela
mantém no telefone? Certamente não deve-se aí variar
e fazer um pequeno caleidoscópio das experiências que
podemos ter disto. Basta-lhes evocar que tentando pedir um serviço
em qualquer casa de comércio, ou outra coisa qualquer, vocês
encontram no final da linha uma dessas vozes que lhes ensina bastante sobre
o caráter da indiferença, da má vontade, da vontade
bem estabelecida de eludir aquilo que pode haver aí de presente, de
pessoal em sua demanda, e que é muito essencialmente esse tipo de
voz que lhes ensina bastante sobre o fato de que vocês não tem
nada a esperar daquele a quem vocês se dirigem; uma dessas vozes que
chamaremos uma voz de contramestre, esse termo tão verdadeiramente,
magnificamente feito pelo gênio da língua, não que ele
seja contra o mestre, mas que ele é verdadeiramente o contrário
do mestre. Essa voz, esse tipo de presentificação da inutilidade,
da inexistência, do vazio burocrático que pode lhes dar algumas
vezes certas vozes, será isso que designamos quando falamos da voz
na função em que temos de fazê-la intervir ao nível
de a?
Não, absolutamente não! Se aqui a voz se apresenta como tal,
como articulação pura e é bem aquilo que faz o paradoxo
do que nos comunica o delirante quando nós o interrogamos e alguma
coisa que ele tem para comunicar sobre a natureza das vozes parece se desvencilhar
sempre, de modo tão singular, nada mais firme para ele do que a consistência
e a existência da voz como tal. E, é claro, é justamente
porque ela é reduzida sob a forma mais marcante, no ponto puro onde
o sujeito só pode pegá-la como se impondo a ele.
E também tenho acentuado, quando analisamos o delírio do Presidente
Schreber, sobre esse caráter de corte que é tão posto
em evidência, que as vozes entendidas por Schreber são exatamente
os inícios de frases: “Sie sollen werden, etc”, e justamente as palavras
significativas que se interrompem, que se impelem, deixam surgir depois do
seu corte o apelo à significação. O sujeito aí
está implicado, de fato, mas propriamente falando, na medida em que
ele mesmo desaparece, sucumbe, se infla todo nessa significação
que só o visa de forma global. E é bem nessa palavra: ela o
interessa, que resumirei hoje, no momento de lhes deixar, esse algo que tentei
apreender e captar para vocês hoje.
Considero que esta sessão foi, talvez, uma das mais difíceis
de todas as que tive para dar-lhes. Vocês serão, espero, recompensados
por isto da próxima vez. Nós teremos de proceder por vias menos
áridas. Mas lhes pedi hoje se manterem em torno dessa noção
de interesse [d’intérêt]; é o sujeito como estando no
intervalo, como sendo aquilo que está no intervalo do discurso do
inconsciente, como sendo, propriamente falando, a metonímia desse
ser que se expressa na cadeia inconsciente.
Se o sujeito se sente eminentemente interessado por essas vozes, por essas
frases sem pé nem cabeça do delírio, é pelo mesmo
motivo que em todas as outras formas desse objeto que lhes enumerei hoje,
é ao nível do corte, é ao nível do intervalo
que ele se fascina, que ele se fixa para se sustentar nesse instante em que,
propriamente falando, ele se visa e se interroga como ser de seu inconsciente.
Aí está aquilo em torno de que colocamos a questão aqui,
e não quero, no entanto, acabar, pelo menos para aqueles que vem aqui
pela primeira vez, sem lhes fazer sentir qual é o alcance de uma tal
análise, dessa pequena cadeia que é o meu discurso de hoje
em relação àqueles que se sucedem há muitos dias.
É que também aquilo de que se trata é justamente de
ver aquilo que devemos fazer em relação a esse fantasma, pois
desse fantasma lhes mostrei aqui as formas mais radicais, as mais simples,
aquelas nas quais sabemos que constituem os objetos privilegiados do desejo
inconsciente do sujeito. Mas esse fantasma, ele é móvel, se
provocado não deve crer que ele possa, assim, deixar de lado um de
seus membros. Não há exemplo de que um fantasma convenientemente
atacado não reaja reinteirando sua forma de fantasma.
Também sabemos quais formas de complicação esse fantasma
pode alcançar na medida em que, justamente, sob sua forma dita perversa
ele insiste, ele mantém, ele complica sua estrutura, ele tenta cada
vez mais de perto preencher sua função. Será que interpretar
o fantasma, como se diz, deve ser pura e simplesmente trazer o sujeito a
um atual à nossa medida, o atual da realidade que podemos definir
como homens de ciência, ou como homens que imaginamos que, afinal de
contas, tudo é redutível em termos de conhecimento?
Parece muito bem que isso seja alguma coisa na direção do que
pende toda uma direção da técnica analítica,
de reduzir o sujeito às funções da realidade, essa realidade
que lhes lembrava da última vez, essa realidade que, para alguns analistas,
parece não dever poder se articular de outra forma que como aquilo
que chamei o mundo de advogados americanos! Será que, sem nenhuma
outra dúvida, a empresa não está fora do alcance dos
meios de uma certa persuasão? Será que o lugar ocupado pelo
fantasma não nos requer ver que há uma outra dimensão
onde temos de levar em conta aquilo que podemos chamar as exigências
verdadeiras do sujeito? Precisamente essa dimensão, não da
realidade, de uma redução ao mundo comum, mas de uma dimensão
de ser, de uma dimensão em que o sujeito leva em si alguma coisa,
meu Deus! que seja talvez tão incômoda para carregar quanto
a mensagem de Hamlet, mas que também, para dever talvez prometê-lo
a um destino fatal, também não é alguma coisa da qual
nós, analistas, – se é que nós, analistas, podemos,
na experiência do desejo, encontrar mais que um simples acidente, que
alguma coisa, afinal de contas, de bem preocupante, mas do qual só
se deve, em suma, esperar que isso passe e que a velhice venha para que o
sujeito reencontre naturalmente as vias da paz e da sabedoria – esse desejo
nos designa, a nós, analistas, outra coisa; essa outra coisa que ele
nos designa, como devemos nós, operar? Qual é nossa missão,
qual é, afinal de contas, o nosso dever? Aí está a questão
que coloco falando da interpretação do desejo.
Tradução de Paulo Medeiros e equipe.