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O DESEJO E SUA INTERPRETAÇÃO

Jacques Lacan

Lição XIX

 29 de Abril de 1959

F A L O F A N I A

 

Se a tragédia de Hamlet é a tragédia do desejo, está na hora de observar – é aí onde lhes conduzi ao final do meu último propósito, no momento em que chegávamos ao final da nossa preleção – aquilo que observamos sempre por último, a saber, o que é o mais evidente. Eu não sei, de fato, que nenhum autor tenha se detido somente nessa observação, no entanto, difícil de se desconhecer uma vez que a formulamos, que de uma ponta a outra de Hamlet só se fala de luto.

 

A primeira observação de Hamlet diz respeito a esse escândalo, esse casamento precoce de sua mãe. O casamento que a própria mãe, na sua ansiedade, sua ansiedade, a saber, aquilo que atormenta seu filho amado, ela mesma chama: "Nosso casamento precoce demais, I doubt it is no other but the main; his father’s death and our o’erhasty marriage". Não é preciso lhes lembrar essas palavras de Hamlet sobre essa ênfase acerca da refeição no enterro que serviram no festim de núpcias: "Economia, economia! Thrift, thrift, Horatio!", indicando com tal termo alguma coisa que nos lembra que na nossa exploração do mundo do objeto, nessa articulação que é aquela da sociedade moderna entre aquilo que chamamos os valores de uso e os valores de troca, com todas as noções que em torno disso se engendram, há alguma coisa talvez que a análise desconheça – eu entendo a análise marxista, econômica, enquanto dominando o pensamento da nossa época – e na qual tocamos a todo instante a força e a amplitude, - são os valores rituais. Ainda para aquilo que apontamos sem parar em nossa experiência, poderá ser útil que nós os destaquemos, que nós os articulemos como essenciais.

 

Eu já fiz alusão da penúltima vez a essa função do rito no luto. É por essa mediação que o rito introduz àquilo que o luto abre de hiância em algum lugar, mais exatamente à forma pela qual vem coincidir, colocar no centro de uma hiância perfeitamente essencial, a hiância simbólica, maior, a falta simbólica, o ponto x em suma, sobre o qual pode-se dizer que em algum lugar, quando Freud faz alusão ao umbigo do sonho, talvez seria isso, justamente, o correspondente psicológico que ele evoca dessa falta.

 

Também sobre a questão do luto não podemos ficar chocados que em todos os lutos maiores, que foram postos em questão em Hamlet, sempre volta isso, que os ritos foram encurtados, tornados clandestinos. Polonius é enterrado sem cerimônia, secretamente, rapidamente, por razões políticas. E vocês lembram de tudo aquilo que se envolve em torno do enterro de Ofélia, da discussão de saber como acontece que mui provavelmente estando morta havendo por haver querido, tendo se afogado de uma forma deliberada – pelo menos é a opinião popular – no entanto, ela é enterrada em terra santa, em terra cristã; portanto, alguma coisa do rito cristão lhe é concedido, os coveiros não duvidam. Se ela não fosse uma pessoa de uma faixa elevada, teriam lhe tratado de outra forma, da forma pela qual o padre articula que assim deveria ter sido, pois ele não é de opinião que lhe fossem dadas as honras funerárias. Ela teria sido jogada em terra não consagrada, teriam acumulado sobre ela os restos e os detritos da maldição e das trevas. O padre só concordou com rituais abreviados, eles também.

 

Tudo isso é fortemente acentuado no final da cena do cemitério. Nós não podemos não levar em conta todos esses elementos, principalmente se nós aí acrescentarmos muitas outras coisas. A sombra do pai é uma sombra que tem uma culpa irreparável, que foi surpreendida, nos diz ele, ofendida de um modo eterno, que foi surpreendida – não está aí um dos menores mistérios do sentido dessa tragédia – "na flor dos seus pecados". Ele não teve tempo de juntar, antes de sua morte, esse algo que o teria colocado em condições de comparecer diante do julgamento final.

 

Nós temos aí uma espécie de traços, de clues¹, como se diz em inglês, de elementos que se ordenam demais, convergem demais, de um modo eminentemente significativo para que não nos detenhamos aí (para que não nos perguntemos, como começamos a fazê-lo da última vez) sobre a relação do drama do desejo com tudo aquilo de que se trata em torno do luto e das exigências do luto.

¹. Indício, rastro pistas.



É o ponto sobre o qual gostaria hoje de me deter para tratar de aprofundar em que sentido isso, para nós, introduz uma questão, a do objeto, e do objeto na medida em que o abordamos na análise sob diversas formas. Nós o abordamos no sentido do objeto do desejo. E há aí também, do objeto ao desejo, uma relação simples como um encontro que poderia ser articulado como se se tratasse de um simples appointement, sendo que, talvez, seja outra coisa.

 

Nós abordamos também a questão do objeto de um ângulo bem diferente, quando falamos do objeto na medida em que o sujeito se identifica a ele no luto. Ele pode, dizem, reintegrá-lo ao seu ego. O que é isso? Será que não há aí duas fases que na análise não são articuladas, não são acordadas? Será que alguma coisa não exige de nós que tentemos penetrar mais adiante nesse problema?

 

É claro, aquilo que acabei de dizer do luto em Hamlet não nos permite encobrir que no fundo desse luto está, em Hamlet, como em Édipo, um crime; que até um certo ponto, todos esses lutos se sucedem em cascata como a continuação, as seqüelas, as conseqüências do crime de onde parte o drama. E isso é também aquilo pelo que Hamlet, digamo-lo, é um drama edipiano, o que nos permite igualá-lo, colocá-lo no mesmo nível funcional na genealogia trágica que o Édipo.

 

É isso que colocou Freud, e depois dele seus discípulos, sobre a pista da importância, para nós, de Hamlet. Mas isso deve ser ao mesmo tempo para nós uma ocasião de fazer sobre esse sujeito, - já que Hamlet, para a tradição analítica, se situa no centro de uma meditação sobre as origens – já que nós temos o costume de reconhecer no crime de Édipo a trama mais essencial da relação do sujeito ao que chamamos aqui o Outro, a saber, o lugar onde se escreve a lei – é bom lembrar alguns termos essenciais da forma que, para nós, são até agora articuladas essas relações do sujeito com o que se pode chamar o crime original.

 

Fica bem claro que devemos distinguir (ao invés de fazer, como sempre, deixar as coisas em uma espécie de confusão e de opacidade que não facilita as especulações das coisas que nós temos para dizer sobre esse assunto), que nos encontramos em presença de dois estágios.

 

Há o mito freudiano, que merece ser chamado assim, a construção do totem, estabelecida na medida em que ordena aquilo que podemos chamar, propriamente falando, um mito. Eu já toquei nesse problema numa ocasião, no que talvez possamos mesmo dizer que a construção freudiana é talvez aqui o exemplo único de um mito formado que tenha sído produzido na nossa idade histórica. A esse mito que nos indica, de certa forma, a ligação primitiva, essencial, de toda necessidade, que faz com que não possamos conceber a ordem da lei senão sobre a base de alguma coisa de mais primordial, que se apresenta como o quê? Aí está o sentido do mito de Édipo de Freud. É evidente que esse crime, que é o assassinato primevo do pai – que é para ele exigido como devendo reaparecer sempre como formando o horizonte, a barra terminal do problema das origens em toda matéria analítica, observemo-lo, pois ele o reencontra sempre e nada lhe parece esgotado, que ele não o alcance nesse último termo – o assassinato primitivo do pai, que o coloca na origem da horda ou na origem da tradição judaica, tem bem, evidentemente, um caráter de exigência mítica.

 

Um outro plano é aquele em que esse algo se desenvolve e se encarna na forma de um drama formador. Outra coisa é a relação da lei primeva ao crime primitivo, e o que acontece quando o herói trágico, que é Édipo, que também é cada um de nós em certo ponto de seu ser, virtualmente, quando ele reproduz o drama edipiano, quando matando o pai, ele se acasala com a mãe, quando, de certa forma, renova sobre o plano trágico, em um tipo de banho lustral¹, o renascimento da lei.

1. purificado.



Aqui nós podemos ver as dissimetrias entre a tragédia de Édipo e a tragédia de Hamlet. Édipo responde estritamente a essa definição que eu acabei de dar da reprodução ritual do mito. Édipo, em suma, completamente inocente, inconsciente, faz em um tipo de sonho que é sua vida - a vida é um sonho¹ – realiza desapercebido [à son insu], o renovar dos passes que vão do crime à restauração da ordem e à punição que ele mesmo assume, que faz aparecer, no final, castrado.

1. Qué es la vida? Un frenesí.
    Qué es la vida? Una ilusión,
    una sombra, una ficción,
    y el mayor bien es pequeño;
    que toda la vida es sueño,
    y los sueños, sueños son.

    Pedro Calderón de La Barca, La vida    
    es sueño
[1636].
Último monólogo de Segismundo.


 






Pois está bem aí o elemento que devemos considerar essencial e que resta, se nos mantivermos no nível genético do assassinato primitivo, o elemento que nos é velado. É o sentido, afinal de contas, daquilo que aponta, daquilo que importa. É, a saber, dessa punição, dessa sanção, dessa castração, na qual permanece trancada à chave o resultado que é, propriamente falando, a humanização da sexualidade no homem, que é também a chave com a qual temos costume, por nossa experiência, de fazer girar todos os acidentes de evolução do desejo.

 

É aqui que não é indiferente percebermos as dissimetrias entre o drama de Hamlet e o drama de Édipo. Persegui-los até no detalhe seria quase uma operação brilhante demais. Indiquemos, no entanto, que o crime se produz em Édipo no nível da geração do herói. Em Hamlet, ele já se produziu no nível da geração precedente. Em Édipo ele se produz, o herói não sabendo o que ele faz e de certa forma guiado pelo fatum¹. Aqui, em Hamlet, o crime acontece de um modo deliberado, pois o foi, mesmo, por traição. Ele surpreende aquele que é a vítima disso, o pai, em um tipo de sono, e mesmo em um sono perfeitamente real. Ele é, nesse sono, alguma coisa que não é absolutamente integrada. Podemos dizer que Édipo atuou o drama como cada um de nós o repete nos seus sonhos, mas aqui o herói foi realmente – aqui nossas referências podem servir – surpreendido de um modo completamente estranho ao phylum² daquilo que ele pretende então com seus pensamentos. Ele o indica: "Eu fui surpreendido na flor dos meus pecados"³. Um golpe vem se abater sobre ele, partindo de um ponto onde ele não o espera, verdadeira intrusão do real, verdadeira ruptura do fio do destino. Ele morre sobre um leito de flores, nos diz o texto shakespereano, e a cena dos atores chega mesmo até a nos reproduzir, na espécie de pantomima preliminar, este leito de flores sobre a cena.

1. Profecia, vontade dos deuses, fado, destino.
2.
Tronco primitivo de onde saiu uma série genealógica.
3.
Ato I, Cena V.


 



Há aí, sem nenhuma dúvida, algum mistério, e do qual também, desde o início, lhes assinalei o contraste com o fato tão singular que é a irrupção mais estranha ao sujeito no crime, é alguma coisa que parece, de certa forma, compensado, contrastado da maneira mais paradoxal pelo fato de que aqui o sujeito sabe. Eu quero dizer que Hamlet é informado pelo seu pai que sabe o que aconteceu, e também não está aí um dos menores enigmas.

 

O drama de Hamlet, contrariamente àquele de Édipo, não parte dessa questão: o que é que acontece? Onde está o crime? Onde está o culpado? Ele parte da denúncia do crime, do crime posto em dia na orelha do sujeito, e ele se desenrola a partir da revelação do crime. Também veremos aí ao mesmo tempo toda a ambigüidade e o contraste de alguma coisa da qual podemos inscrever sob a fórmula que é aquela onde inscrevemos a mensagem do inconsciente, a saber, o significante de  barrado, S( ). Na forma, se podemos dizer, normal do édipo, o S( ) porta uma encarnação, aquela do Outro, do pai – enquanto dele é esperado e chamada a sanção do lugar do Outro – a verdade da verdade, na medida em que ele deve ser o autor da lei, e no entanto, na medida em que ele não é nunca aquele que a sofre, aquele que, não mais do que qualquer outra pessoa, não pode garanti-la, aquele que, ele também, tem de sofrer a barra, aquele que na medida em que ele é o pai real faz dele um pai castrado.

 

Toda diferença, o que quer que ela possa simbolizar da mesma maneira, é a posição no final de Hamlet, ou mais exatamente, no seu início, já que é a mensagem que abre o drama de Hamlet. Aqui também nós vemos o Outro se revelar sob a forma mais significante como um  barrado. Não é somente da superfície dos vivos que ele está riscado, é de sua justa recompensa. Ele entrou com o crime no domínio do inferno, isto é uma dívida que ele não pôde pagar, uma dívida impagável, diz ele. Está bem aí o sentido mais terrível e mais angustiante de sua revelação para seu filho.

 

Édipo pagou, se apresenta como aquele que carrega no destino do herói a carga da dívida realizada, retribuída. Aquilo de que se lamenta para a eternidade o pai de Hamlet é ter estado nesse fio, interrompido, surpreso, rompido, de nunca mais poder responder por isso.

 

Vocês o vêem, aquilo em volta de que nos leva nossa investigação à medida em que ela progride, é aquilo de que se trata na retribuição, na punição, na castração, na relação do significante do falo, já que é nesse sentido que começamos a articulá-lo. E uma ambigüidade se estabelece entre o que próprio Freud nos indicou de um modo talvez um pouco fim de século – a saber, esse algo que faria com que nós estivéssemos destinados a não mais viver o édipo senão sob uma forma de certo modo falseada – esse algo do qual há, seguramente, um eco em Hamlet.

 

Um dos primeiros gritos no final do primeiro ato de Hamlet é este: "The time is out of joint: O cursed¹ spite², That ever I was born to set it right! O tempo saiu de seus eixos: Oh maldito! (Eu não posso traduzir spite de outra forma que apesar)". Spite está em todo lugar nos Sonnets de Shakespeare; "dépit"³ (apesar [malgré]) tomou para nós um sentido subjetivo. Nosso primeiro passo em uma introdução à compreensão dos elizabetanos seria a respeito de um certo número de palavras, de ver re-dar-lhes também o poder de girar sobre seus eixos. Isto é, de situar o apesar em algum lugar entre o apesar objetivo e o apesar subjetivo, em alguma coisa da qual parecemos ter perdido a referência, que é justamente aquilo que se passa no nível da ordem, a saber, dos termos que podem estar entre os dois, entre o objetivo e o subjetivo. "O cursed spite", é aquilo do qual ele tem, a despeito de, é no que o tempo lhe faz também injustiça (nós não sabemos mais articular essas palavras que estão em jogo no centro daquilo que é o vivido do sujeito) ou então tudo aquilo que ele pode designar como a injustiça no mundo. Talvez vocês aí reconheçam, de passagem, o engano da bela alma da qual não saímos, longe daí, apesar de todos os nossos esforços, mas que o vocabulário shakespeariano transcende. E não é por nada que fiz alusão aqui aos Sonetos, tão alegremente. Portanto, "Oh maldição, que eu não seja nascido nunca para recolocá-lo direito" ["Ô malédiction, que je ne sois né jamais pour le remettre droit"].

1. Maldito, odioso.
2. Malevolência, malignidade, despeito, rancor.
3. Despeito, esgotamento, enfado, indignação.


 


E eis, pois, ao mesmo tempo justificado, mas aprofundado, o que pode nos parecer, no Hamlet, ilustrar uma forma decadente do édipo. Um tipo de Untergang incompleta que faz ambigüidade com aquilo na direção em que quero, agora, um instante, conduzir sua atenção, a saber, aquilo que Freud chama assim, em cada via individual, a saber, aquilo que ele descreveu sob este título em 1924¹, chamando, ele mesmo, a atenção sobre aquilo que é, afinal de contas, o enigma do édipo, que não é simplesmente que o sujeito tenha tido vontade, desejado a morte de seu pai, o estupro de sua mãe, mas que isto seja inconsciente. É, a saber, como isso vem a ser no inconsciente e como vem a aí estar a ponto de que o sujeito, durante um período importante de sua vida, o período de latência – fonte dos pontos de construção no ser humano de todo o seu mundo objetivo – vem a não mais se ocupar disso, nem um pouco. De tal modo a não se ocupar nem um pouco disso que vocês sabem muito bem que Freud admite, pelo menos na origem de sua articulação doutrinal, que em um caso ideal não mais se ocupar dele se torne alguma coisa de, felizmente, definitiva. Eu lhes reenvio a esse texto, que não é longo, e que vocês encontrarão no tomos 13 dos Gesammelte Werke. O que é que Freud nos diz?

1. A dissolução do complexo de Édipo.



Partimos daquilo que ele nos diz, e em seguida veremos no que isso pode vir a trazer água para nosso moinho. Freud nos diz: o complexo de Édipo entra em seu Untergang, em sua descenso, no seu declínio, nesse declínio que será uma peripécia decisiva para todo desenvolvimento ulterior do sujeito, no decorrer disto: enquanto, diz ele, o complexo de Édipo não foi sentido, experimentado sob as duas faces de sua posição triangular, enquanto o sujeito, rival do pai, se viu sobre esse ponto concreto de uma ameaça, que não é nenhuma outra coisa que a castração, isto é, enquanto ele quer tomar o lugar do pai, ele será castrado; na medida em que ele tomará o lugar da mãe (é literalmente o que Freud diz) ele perderá também o falo, já que o ponto de acabamento, de maturidade do édipo, a descoberta plena do fato de que a mulher é castrada, é igualmente feita.

 

É, mui precisamente, na medida em que o sujeito é tomado nessa alternativa fechada, que não lhe deixa nenhuma saída no plano de alguma coisa que nós podemos articular como a relação que nós vamos tentar mais adiante melhor aprofundar, essa coisa que se chama o falo e que é a chave da situação, que naquele momento é aquela que se forma como a do drama essencial do édipo. O édipo, eu diria, na medida em que está precisamente no sujeito, marca a junção e o desvio que o faz passar do plano da demanda àquele do desejo.

É na medida em que essa "coisa" – pois eu deixo a interrogação sobre a qualificação, e vamos ver aquilo que isso deve ser para nós – eu não disse "objeto". Dizendo "coisa", eu digo real, não ainda simbolizada, mas de certa forma em potência de sê-lo: isso para que tudo seja dito, que nós podemos chamar um significante, com um [sentido] difuso.

 

O falo, é isso que nos é apresentado por Freud como a chave do Untergang, do descenso, do declínio do édipo. E nós vemos agrupado na articulação freudiana alguma coisa que não põe de forma alguma a mulher em uma posição – eu não digo dissimétrica – tão dissimétrica. E, é na medida em que o sujeito entra quanto a essa "coisa" em uma relação que podemos chamar de lassitude (está no texto de Freud) quanto à gratificação, é na medida em que o rapaz renuncia a estar à altura – isso foi ainda mais articulado para a moça, que nenhuma gratificação deve ser esperada sobre esse plano – é na medida em que, enfim, que alguma coisa da qual sabemos que não se produz a emergência articulada, naquele momento, que o sujeito tem para fazer o seu luto do falo, que o édipo entra no seu declínio.

 

A coisa se desprende de um modo tão evidente que é em torno de um luto, que não é possível que nós não tentemos fazer a aproximação para percebermos que é por aí que para nós se ilumina a função ulterior desse momento de declínio, seu papel decisivo que, não esqueçamos, não é somente, não pode ser somente, para nós, o fato de que os fragmentos, os detritos mais ou menos incompletamente recalcados no édipo vão retornar ao nível da puberdade sob a forma de sintomas neuróticos. Mas isso, que nós sempre admitimos também, que é da experiência comum dos analistas, disso depende alguma coisa na economia, não mais somente do inconsciente, mas na economia imaginária do sujeito, que não se chama senão sua normalização sobre o plano genital. A saber, que não há feliz sucesso da maturação genital a não ser pelo acabamento justamente tão pleno quanto possível desse édipo, na medida em que o édipo porta como conseqüência o estigma, no homem, tanto quanto na mulher, do complexo de castração.

 

É aqui então, talvez, fazendo a aproximação, a síntese com aquilo que nos foi dado na obra freudiana no que diz respeito ao mecanismo do luto, que podemos perceber que é isso, para nós, que vai ser esclarecedor quanto ao fato que se produz no sujeito, esse luto, sem dúvida particular, já que esse falo não é, sem dúvida, um objeto como os outros.

 

Mas aqui também podemos nos deter, pois, afinal de contas, se lho peço, o que é que define o alcance, os limites dos objetos dos quais podemos ter de carregar o luto? Isso, até o presente, também não foi articulado. Nós desconfiamos que o falo, dentre os objetos dos quais podemos ter de carregar o luto, não é um igual aos outros. Aí, como em todo lugar, ele deve ter seu lugar bem de lado, mas justamente, é o de que se trata de precisar, e como em muitos casos, quando se trata de precisar, é o lugar de alguma coisa sobre um fundo; é precisando-o sobre esse fundo que a precisão do lugar do fundo aparece também em retroação.

 

Nós estamos aqui em terreno completamente novo. Tentamos, portanto, avançar, pois é para isso que vai nos servir, em último termo, nossa análise de Hamlet. É para nos lembrar essa questão que trabalho diante de vocês por uma série de toques concêntricos, que acentuo, que lhes faço entender de uma forma diversamente ressonante e que espero fazer cada vez mais precisa, a saber, aquilo a que chamo o lugar do objeto no desejo.

 

O que nos diz Freud quanto a este luto do falo? Ele nos diz que aquilo que está ligado a ele, o que é uma das molas fundamentais disso, aquilo que lhe dá seu valor – pois é isto que nós procuramos – é uma exigência narcísica do sujeito. Eis estabelecida aqui a relação desse momento crítico em que o sujeito se vê de todas as formas castrado ou privado da coisa, do falo. Aqui Freud faz intervir, e, como sempre, sem a mínima precaução – quero dizer que ele nos abalroa como de costume, graças a Deus! ele o fez, toda a sua existência, pois ele nunca teria chegado no final daquilo que lhe restava a traçar no seu campo – ele nos diz que é uma exigência narcísica. Em presença da última de suas exigências edipianas, o sujeito prefere, se assim podemos dizer, abandonar toda a parte dele mesmo, sujeito, que lhe será definitivamente, tão logo interdita, proibida, a saber, na cadeia significante pontuada, aquilo que faz o alto do nosso grafo.

 

Todo o affaire nada mais é senão o affaire fundamental da relação de amor tal como se apresentou para ele na dialética parental, e a maneira pela qual ele podia aí se introduzir. Ele vai deixar soçobrar tudo isso em razão, nos diz Freud, de alguma coisa que tem relação com esse falo (como tal já tão enigmaticamente introduzido aí desde a origem, e, no entanto, de uma maneira tão clara através de toda a experiência) numa relação narcísica com esse termo.

 

O que é que isso pode querer dizer para nós, no nosso vocabulário, na medida em que nosso vocabulário pode ser alguma coisa de esclarecedora, de mais esclarecedora, alguma coisa por meio da qual tentamos responder a essa exigência que Freud, eu dizia agora há pouco, deve deixar de lado porque lhe é preciso ir ao vivo, ao cortante do sujeito, e que ele não tem muito tempo para parar sobre as premissas. Por sinal, é assim, em geral, que se funda toda ação, e, mais ainda, toda ação verdadeira, isto é, a ação que é aí nosso propósito, ou, pelo menos, deveria sê-lo.

 

Pois bem, traduzido no nosso discurso, nas nossas referências, "narcísico" implica uma certa relação com o imaginário. "Narcísica" nos explica aqui isso, é que mui exatamente num luto, na medida em que nesse luto nada é satisfeito – e aqui nada pode satisfazer, já que a perda do falo sentida como tal é a saída mesma da volta feita de toda a relação do sujeito com aquilo que acontece no lugar do Outro, isto é, no campo organizado da relação simbólica na qual começou a se expressar a sua exigência de amor. Ele está no final e sua perda nesse affaire é radical.

 

O que se produz então é mui precisamente esse algo de que já indiquei o parentesco com o mecanismo psicótico, na medida em que é com sua textura imaginária, e somente com ela, que o sujeito pode aí responder. O que, sob uma forma velada, Freud nos apresenta como sendo a ligação narcísica do sujeito com a situação representando tal, isso que nos permite, naquele momento, identificá-lo a alguma coisa que representa nele, sobre o plano imaginário, essa falta como tal, que lhe põe, se assim podemos dizer, nadificado ou sob reserva tudo aquilo que mais tarde vai ser o molde de onde virá se remodelar a assunção de sua posição na função genital.

 

Mas aí, será ainda ultrapassar rápido demais aquilo de que se trata realmente? Será de fazer crer, como o cremos, que a relação com o objeto genital é uma relação de positivo a negativo? Vocês verão, não é nada disso, e é por isso que nossas notações são melhores, porque elas permitem articular como vai se apresentar realmente o problema.

Agente

Objeto
Pai [R]
Castração [S]
Falo [I]
Mãe [S]
Frustração  [I]
Seio [R]
Pai [I]
Privação [R]
Falo [S]


Aquilo de que se trata de fato, é de alguma coisa que, para nós, deve se conotar sob a forma seguinte, na medida em que ela nos fez abordar esse algo de que já nos aproximamos quando distinguimos as funções da castração, da frustração e da privação. Se vocês lembrarem-se, então lhes escrevi: castração, ação simbólica; frustração, termo imaginário, e privação, termo real. Eu lhes dei as conotações de suas relações com os objetos. Eu lhes disse que a castração se referia ao objeto fálico imaginário, e lhes escrevi que a frustração, imaginária na sua natureza, se referia sempre a um bem e a um termo real, e que a privação, real, se referia a um termo simbólico. Não há, acrescentava eu naquele momento, no real, nenhuma espécie de falha ou de fissura. Toda falta é falta no seu lugar, mas falta no seu lugar é falta simbólica.

 

Há aqui uma coluna que é aquela do agente, de suas ações com seu termo objetal, que é alguma coisa que tocou naquele momento em um único ponto, ao nível do agente da frustração, a mãe, e é para lhes mostrar que é enquanto mãe como tal, que é lugar da demanda de amor. Estava inicialmente simbolizada no duplo registro da presença e da ausência, se encontrava em posição de dar a largada genética da dialética, enquanto que, mãe real, faz girar aquilo de que o sujeito está privado realmente, o seio por exemplo, símbolo do seu amor. E eu me detive por aí.

 

Vocês poderão ver que ficaram livres aqui as casas que correspondem ao termo "agente" nas duas outras relações; é agora, de fato, e unicamente agora, que podemos aqui escrever o de que se trata.

 

O termo "agente" é alguma coisa que, quanto ao seu lugar, se refere ao sujeito. Esse sujeito, não podíamos naquele momento, nele articular nitidamente os diferentes estágios. É agora que podemos fazê-lo, e agora podemos escrever, ao nível em que colocamos o lugar efetivo da mãe, o termo onde tudo aquilo que se passa por seu fato toma seu valor, isto é, o A [O] do Outro na medida em que é aí que se articula a demanda.

 

No nível da castração, temos um sujeito enquanto real, mas sob a forma em que aprendemos a articulá-lo e a descobri-lo desde então, isto é, enquanto que sujeito falante, enquanto sujeito concreto, isto é, marcado com o sinal da palavra. É claro! Vocês o verão aí, de imediato, justamente. É aquilo que me parece que já há algum tempo os filósofos tentam articular, no que diz respeito à natureza singular da ação humana. Não é possível aproximar o tema da ação humana sem se perceber que quanto à ilusão de não sei qual começo absoluto que seria o último termo em que podemos apontar a noção de agente, há alguma coisa que soa. Esse algo que ecoa através dos tempos, tentaram introduzi-lo sob a forma de diversas especulações sobre a liberdade, que é ao mesmo tempo necessidade: está aí o último termo em que os filósofos chegaram a articular alguma coisa, isto é, que não há outra ação verdadeira que lhes coloque, de certa forma, no fio direto das vontades divinas.

 

Nos parece que pelo menos nós podemos pretender aqui trazer alguma coisa de um registro perfeitamente diferente, pela qualidade particular de sua articulação, quando nós dizemos que o sujeito, enquanto que real, é alguma coisa que tem esta propriedade de estar em uma relação particular com a palavra, condicionando nele este eclipse, esta falta fundamental que o estrutura como tal, no nível simbólico, na relação com a castração. Não se trata aí de um lingote de ouro, de um sésamo, de alguma coisa que nos abre tudo, mas que isto começa a articular alguma coisa, e alguma coisa que nunca foi dito, seguramente, talvez isto valha a pena de sublinhar.

 

Então, o que é que vai aparecer aqui no nível da privação? A saber, daquilo que se torna o sujeito na medida em que foi simbolicamente castrado? Mas foi simbolicamente castrado ao nível de sua posição como sujeito falante, não do seu ser, desse ser que tem de fazer luto desse algo que tem de carregar em sacrifício, em holocausto, na sua função de significante faltante. Isso se torna muito mais claro e muito mais fácil de conotar a partir do momento em que é em termos de luto que nós apresentamos o problema. Em termos de luto é enquanto que podemos escrever sobre o plano onde o sujeito é idêntico às imagens biológicas que o guiam, e que para ele fazem a trilha preparada de seu behaviour, daquilo que vai atraí-lo, e por todas as vias da voracidade e do acoplamento, e aí alguma coisa é pega, é marcada, é subtraída sobre esse plano imaginário que faz do sujeito como tal alguma coisa de realmente privado.

 

Essa privação que nossa contemplação, nosso conhecimento não nos permite reparar, situar em nenhum lugar no real, porque o real, enquanto tal se define como sempre pleno. Nós reencontramos aqui, mas sob uma outra forma e de outra forma acentuada, essa observação do pensamento que se chama, certa ou erroneamente, existencialista, que é o sujeito humano, vivente, que aí introduz uma nadificação [néantisation] – que eles chamam dessa forma, mas que, nós, nós chamamos de outra forma. Pois isso não nos basta, essa nadificação, na qual os filósofos fazem seus domingos, e mesmo seus domingos da vida (ver Raymond Queneau). Isso não nos satisfaz pelos usos mais artificiosos que fazem disso a prestidigitação dialética moderna.

 

Nós, nós chamamos isso , isto é, aquilo que Freud apontou como sendo o essencial da marca sobre o homem de sua relação com o Logos, isto é, a castração, aqui efetivamente assumida sobre o plano imaginário. Vocês verão, no decorrer, para que nos servirá essa notação  . Ela nos servirá para definir aquilo de que se trata, isto é, o objeto a do desejo, tal como ele aparece na nossa formulação do fantasma [ = a], que vai ser, para nós, para situar, em relação às categorias, para encabeçar capítulos, aos registros que são nossos registros habituais na análise.

 

O objeto a do desejo – vamos defini-lo, vamos formulá-lo como nós já o fizemos, e vamos repeti-lo uma vez mais aqui – é esse objeto que sustenta a relação do sujeito com aquilo que ele não é mais. Até aí vamos mais ou menos tão longe quanto, ainda que um pouco mais, do que [aquilo que] a filosofia tradicional e existencialista formularam sob a forma da negatividade ou da nadificação do sujeito existente – mas nós acrescentamos: aquilo que ele não é, na medida em que ele não é o falo. É o objeto que sustenta o sujeito nessa posição privilegiada que ele é levado a ocupar em certas situações, que é de ser propriamente essa, que ele não é o falo, que o objeto a tal como tentamos defini-lo, porque se tornou para nós, agora, exigível que tenhamos uma justa definição do objeto, pelo menos que façamos essa experiência a partir de uma definição que acreditamos justa desse objeto, de tentar ver como se ordena e ao mesmo tempo se diferencia, aquilo que até agora, em nossa experiência, certo ou errado, começamos a articular como sendo o objeto.

 

É bem evidentemente aquilo que vamos ver, é que nós vamos nos colocar a questão: esse objeto aí, enquanto a, será que definimos por aí o objeto genital? Aquilo que quer dizer que todos os objetos pré-genitais não seriam objetos? Eu não respondo a essa questão, eu digo que ela vai se apresentar a partir do momento em que é dessa forma que nós vamos começar a apresentar o problema.

 

É claro que a resposta não saberia ser de todo simples, e que desde já uma das vantagens que aparece é de nos permitir, em todo caso, ver a distinção, o viés, o plano de clivagem que se estabelece entre aquilo que chamamos até agora a fase fálica – e estou aqui na estrita via de nossa experiência tradicionalmente aceita – e a fase genital.

 

É da relação, que desde alguns anos era perfeitamente impossível se encontrar, dessa fase fálica na formação e a maturação do objeto o de que se trata. É em relação a essa posição sempre velada, que só aparece em phanies, nas aparições cintilantes, que se chama tê-lo, evidentemente, ou não tê-lo, isto é, no seu reflexo ao nível do objeto, que reencontramos, que percebemos a posição radical de que se trata. Mas a posição radical, aquela do sujeito ao nível da privação, do sujeito enquanto sujeito do desejo como tal, é de não ser o falo, é de ser ele mesmo, se assim posso dizer, um objeto negativo.

 

Vocês vêem até onde vou. As três formas, portanto, nas quais aparece o sujeito no nível dos três termos, castração, frustração e privação, são três formas que bem podemos chamar alienadas, mas talvez tragamos a esse termo alienação uma articulação sensivelmente diferente enquanto que diversificada. Eu quero dizer que, se no nível da castração o sujeito aparece numa síncope do significante, é outra coisa quando aparece no nível do Outro como submetido à lei de todos. É outra coisa ainda quando tem, ele mesmo, de se situar no desejo, onde a forma de sua desaparição nos parece então ter, em relação aos dois outros, uma originalidade singular bem própria a nos suscitar para articulá-la mais adiante.

 

E é bem isso que se produz, de fato, na nossa experiência, e aquilo na direção em que nos puxa o desenrolar da tragédia de Hamlet. O "alguma coisa podre" que o pobre Hamlet tem de recolocar sob seus pés é alguma coisa que tem relação, a mais estreita, com essa posição perante o falo. Através de toda a peça, nós o sentimos, esse termo, em todo lugar presente na desordem manifesta que é aquela de Hamlet cada vez que ele aproxima, se assim podemos dizer, pontos ardentes de sua ação. Eu só poderei hoje lhes indicar os pontos que nos permitem segui-lo de perto.

 

Há alguma coisa muito estranha no modo como Hamlet fala de seu pai. Há uma exaltação idealista de seu pai morto que se resume aproximadamente nisso, que a voz lhe falta para dizer aquilo que ele pode ter para dizer e que verdadeiramente ele se sufoca e se estrangula para concluir nisso, que aparece uma de suas formas particulares do significante que se chama em inglês, pregnant, isto é, alguma coisa que tem um sentido além de seu sentido. Ele não encontrava nada mais para dizer de seu pai, senão, diz ele, que ele era a man como qualquer outro. Aquilo que ele quer dizer, é bem evidentemente, contrário, primeira indicação e traço daquilo de que eu quero lhes falar.

 

Há muitos outros termos ainda. A rejeição, a depreciação, o desprezo lançado sobre Claudius é alguma coisa que tem todas as aparências de uma denegação. É, a saber, que na avalanche de injúrias na qual ele o cobre, e, diga-se, diante de sua mãe, ele culmina nesse termo: "O rei de peças e de pedaços", o rei feito de detritos colados, que não pode senão nos indicar que há aí alguma coisa também de problemático, a qual, seguramente, não podemos deixar de fazer a ligação com um fato, é que se há alguma coisa marcante na tragédia de Hamlet em relação à tragédia edipiana é que depois do assassinato do pai, o falo, ele, permanece aí. Ele está, de fato, bem aí, e é justamente Claudius que está encarregado de encarná-lo. É, a saber, que o falo real de Claudius, trata-se dele o tempo todo, e que ele não tem, em suma, nada mais para lamentar com sua mãe, senão, precisamente, apenas tendo morrido seu pai, de ter-se enchido dele – e de mandá-la de volta com um braço e um discurso desencorajadores a esse fatal e fatídico objeto, aqui, bem real, que parece ser de fato, o único ponto em torno do qual gira o drama.

 

É, a saber, que para esta mulher que não nos aparece como uma mulher, na sua natureza tão diferente das outras, na peça há - levando-se em conta todos os sentimentos humanos que ela mostra, por outro lado - alguma coisa de bem forte que deve, no entanto, prendê-la ao seu parceiro. Ora, parece bem que aí esteja o ponto em torno do qual gira e hesita a ação de Hamlet, o ponto em que, se assim podemos dizer, seu espírito aturdido treme diante de alguma coisa de completamente inesperada. É que o falo está em posição perfeitamente ectópica em relação à nossa análise da posição edipiana. O falo, aí bem real, é como tal que se trata de golpeá-lo. Hamlet pára sempre. Ele diz: "Eu poderia matá-lo" no momento em que encontra nosso Claudius rezando. E essa espécie de flutuação diante do objeto a atingir, esse lado incerto daquilo que há para golpear, está aí o próprio móbil daquilo que faz desviar, a todo instante, o braço de Hamlet, justamente essa ligação narcísica da qual nos fala Freud no seu texto do declínio do Édipo. Não podemos golpear o falo, porque o falo, mesmo se ele está aí bem real, é uma sombra.

 

Eu lhes peço meditar sobre isso a propósito de todos os tipos de coisas bem estranhas, paradoxais, nomeadamente isso: a que ponto essa coisa da qual nos comovíamos na época, a saber, porque, afinal de contas, era claro que não se assassinava Hitler. Hitler, que representa tão bem o objeto de que Freud nos mostra a função nessa espécie de homogeneização da multidão por identificação a um objeto no horizonte, ao objeto x, a um objeto que não é como os outros, não estaria aí alguma coisa que nos permite alcançar algo daquilo que estamos falando?

 

A manifestação perfeitamente enigmática do significante da potência como tal, está aí o de que se trata. O édipo, quando isso se apresenta sob a forma particularmente sensível no real, como em Hamlet, aquele do criminoso e do usurpador instalado como tal, desvia o braço de Hamlet, não porque tem medo desse personagem que despreza, [mas] porque ele sabe que aquilo que tem que golpear é outra coisa do que aí está. E isto é tão verdadeiro que dois minutos depois, quando ele terá chegado ao quarto de sua mãe, quando terá começado a lhe sacudir a revirar as tripas, ouve um ruído por trás da tapeçaria, e se joga sobre ele sem pestanejar.

 

Eu não sei mais qual autor astucioso fez observar que é impossível que ele creia que seja Claudius, pois acabava de deixá-lo na sala ao lado, e, no entanto, quando ele tiver aberto, estripado o infeliz Polonius, fará essa reflexão: "Pobre velho louco, eu pensava estar lidando com algo melhor". Cada qual pensa que ele quis matar o rei mas, diante do rei – falo de Claudius, o rei real, e usurpador também – ele, afinal de contas, se deteve, porque ele queria ter um melhor, isto é, o tê-lo, ele também, na flor de seu pecado. Tal como ele se apresentava aí, não era isso, não era o bom...

 

Aquilo de que se trata é justamente do falo, e é por isso que ele não poderá jamais alcançá-lo, até o momento em que justamente terá feito o sacrifício completo, e também, apesar dele, de todo seu apego narcísico, a saber, quando ele está ferido de morte e o sabe. É somente naquele momento que poderá fazer o ato que atinge Claudius. A coisa é singular e evidente, é marcante, e eu direi, está inscrita em todos as espécies menores de enigmas do estilo de Hamlet.

 

Quando esse tipo de personagem que para ele só é um calf¹, um veado capital, que ele, de certa forma, imolou ao espírito de seu pai – pois ele não está nem um pouco sentido pelo assassinato do Polonius – quando ele acuou esse Polonius num canto, sob a escada, e lhe perguntam em todo lugar do que se trata, ele solta aí algumas de suas miúdas brincadeiras, que são, nele, o que desorienta tanto seus adversários em relação a ele. Todo mundo se pergunta, está bem aí o fundo do affaire, se aquilo que ele diz é o que ele quer dizer, pois o que ele diz cutuca todo mundo bem diretamente. Mas para que ele o diga é preciso que ele saiba tanto disso que não se pode acreditar nisso, e assim por diante...

1. Bezerro, terneiro, vitelo; filhote de outros mamíferos grandes, como elefante, hipopótamo, baleia, alce, etc. - Jovem tolo e desajeitado.


 


É uma posição que deve ser bastante familiar para nós, do ponto de vista do fenômeno da confissão do sujeito. Ele diz esses propósitos que permaneceram até o presente bastante fechados aos autores: "The body is with the king (ele não emprega a palavra corpse, ele diz body aqui, eu lhes peço observar), but the king is not with the body"¹. Eu lhes peço simplesmente substituir a palavra "rei" pela palavra "falo" para se perceber que é precisamente o de que se trata, a saber, que o corpo está engajado nesse trato [affaire] com o falo – Oh, quanto! Mas que, por outro lado, o falo, ele não está engajado em nada, e ele lhes escorrega sempre por entre os dedos.

1. Ato IV, Cena II.



Imediatamente após ele diz: "The king is a thing", "o rei é uma coisa". "Uma coisa?", lhe dizem as pessoas completamente sideradas, estonteadas, como a cada vez que ele se entrega a seus aforismos costumeiros: "A thing, my lord?" Hamlet: "Of nothing, uma coisa de nada". A partir do que todo mundo está a se confortar com não sei qual citação do salmista onde é dito que, de fato, o homem é uma "Thing of nothing, uma coisa de nada", mas creio que mais vale para isso se referir aos próprios textos shakespearianos.

 

Shakespeare me parece, depois da leitura atenta de Sonnets, ser alguém que ilustrou singularmente em sua pessoa, um ponto perfeitamente extremo e singular do desejo. Em algum lugar, em um de seus Sonnets, do qual não imaginamos a audácia – eu fico espantado que possamos falar a esse respeito da ambigüidade – ele fala ao objeto de seu amor que, como todo mundo sabe, era de seu próprio sexo, e parece um jovem bem charmoso que parece bem ter sido o conde d’Essex. Ele lhe diz que ele tem todas as aparências que nele satisfazem ao amor, nisso que se parece em tudo a uma mulher, que só há uma pequena coisa da qual a natureza quis o poder, Deus sabe porque! e que essa pequena coisa ele não tem, infelizmente, ele, nada a fazer com ela, e que está bem desolado que isso deva fazer as delícias das mulheres. Ele lhe diz: "Deixa p’ra lá, tomara que teu amor permaneça, que isto seja o prazer delas".

 

Os termos "thing" e "nothing" estão aí estritamente empregados e não deixam nenhuma dúvida que isso faça parte do vocabulário familiar de Shakespeare. Esse vocabulário familiar, afinal de contas, aqui, é uma coisa secundária. O importante é, indo-se mais adiante, podemos justamente penetrar naquilo que é a posição - ela mesma criadora - de Shakespeare, sua posição, que creio, sem nenhuma dúvida, poder ser dita sobre o plano sexual invertido, mas não pode ser sobre o plano do amor tão pervertido. Se nos introduzimos nesse caminho dos Sonnets que vai nos permitir precisar ainda um pouco mais de perto aquilo que pode aparecer nessa dialética do sujeito com o objeto de seu desejo, nós poderemos ir mais adiante em alguma coisa que chamarei os instantes em que o objeto, por alguma via (e a via maior sendo aquela do luto) desaparecendo, evanescendo ao passo pequeno, feito por um tempo – um tempo que não saberia subsistir a não ser no tempo de um relampejar - se manifestar a verdadeira natureza daquilo que lhe corresponde no sujeito, a saber, aquilo que chamarei as aparições do falo, as falofanias. É por aí que lhes deixarei por hoje.

 

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