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O DESEJO E SUA INTERPRETAÇÃO

Jacques Lacan

Lição XVIII
22 de abril de 1959

 

Hamlet, nós o dissemos, não pode suportar o encontro. O encontro é sempre cedo demais para ele, e ele o retarda. Esse elemento da procrastinação não pode, de modo algum - ainda que alguns autores, numa literatura que tenho, mais e mais, ao longo desse estudo aprofundado... - estar afastado. A procrastinação permanece uma das dimensões essenciais da tragédia de Hamlet.

 

Quando ele age, por outro lado, é sempre com precipitação. Ele age quando, de repente, parece que quando uma ocasião se oferece, quando não sei que apelo do evento além dele próprio, de sua resolução, de sua decisão, parece lhe oferecer não sei qual abertura ambígua, que é, propriamente, para nós, analistas, aquilo que introduziu na dimensão da realização essa perspectiva que chamamos a fuga.

 

Nada é mais nítido que esse momento em que ele se precipita sobre algo que se mexe atrás da tapeçaria, quando ele mata Polonius. Em outros momentos também, a maneira quase misteriosa – eu diria quase em estado segundo, quando à noite ele acorda nesse barco, numa tempestade – quando vai verificar as mensagens, romper os selos da mensagem da qual Guildenstern e Rosencrantz são portadores, e a maneira também quase automática pela qual substitui uma mensagem por outra, refaz, graças a seu anel, o selo real, e vai encontrar também essa prodigiosa ocasião do seqüestro pelos piratas, para escapar dos seus guardas, que irão, sem dúvida, para sua própria execução.

 

Nós temos aí alguma coisa de uma verdadeira fenomenologia, - já que é preciso chamar as coisas pelo seu nome -, sobre a qual, sabemos, toda a ênfase facilmente reconhecível, quase familiar, da nossa experiência, como também as nossas concepções, na relação com a vida do neurótico.

 

É que na última vez tentei lhes fazer sentir além dessas características tão sensíveis, nessa referência estrutural que percorre toda a peça: Hamlet está sempre na hora do Outro. É claro, não passa de uma miragem, pois a hora do Outro – e é também aquilo que lhes expliquei quando chamei a resposta última nesse significante do Outro barrado: não há, lhes disse, Outro do Outro. Não há, no próprio significante, garantia da dimensão da verdade instaurada pelo significante. Só há a sua, a hora, e não também senão uma só hora, é a hora de sua perda. E toda a tragédia de Hamlet é nos mostrar o encaminhamento implacável de Hamlet na direção dessa hora.

 

O que especifica seu destino, aquilo que faz dele o valor altamente problemático, o que é, portanto? Pois esse encontro com a hora de sua perda não é somente o destino comum que é significativo para todo o destino humano. A fatalidade de Hamlet tem o sinal particular, pois ela não teria para nós, de outro modo, esse valor eminente. É onde, portanto, estamos. É aí que estávamos no final do nosso discurso da última vez.

 

O que é que falta à Hamlet? E até que ponto o desígnio da tragédia de Hamlet, tal como Shakespeare a compôs para nós, nos permitirá uma articulação, uma referência dessa falta que vai além das aproximações com as quais sempre nos contentávamos, e que também, para aquilo com que nos contentamos, mesmo que sejam aproximativas, turvam também não somente a nossa linguagem, nossa conduta, nossas sugestões - é preciso dizê-lo – perante o paciente.

 

Começamos, no entanto, por essa aproximação de que se trata. Podemos dizê-lo, o que falta é, a todo instante, para Hamlet, aquilo que poderemos chamar uma linguagem comunicativa, a linguagem de todos os dias, esse tipo de fixação de um objetivo, de um objeto em sua ação, que comporta sempre, em algum lugar, aquilo que chamamos arbitrário.

 

Hamlet, nós o vimos, nós até mesmo começamos a explorar porque, é alguém que, como dizem as mulheres, não sabe o que quer. E, de certa forma, essa primeira dimensão é por ele, no discurso que lhe faz manter Shakespeare, presentificado. Ela é presentificada em certos volteios, bem significativos, por sinal. É a curva de sua eclipse na tragédia. Eu quero dizer, durante o curto momento em que ele não vai estar ali, em que ele vai fazer esse circuito marinho, do qual vai retornar excessivamente rápido, tão logo saído do porto, quando vai fazer essa viagem para a Inglaterra sob as ordens do rei, sempre obedecendo. Ele cruza as tropas de Fortinbras, que está aí no segundo plano da tragédia evocado desde o início, e que no final vem fazer a limpeza na cena, recolher os mortos, recolocar em ordem os estragos. E eis como nosso Hamlet fala desse Fortinbras. Ele fica abalado ao ver essas tropas corajosas, que vão conquistar alguns pedaços da Polônia em nome de um pretexto bélico mais ou menos fútil, que é aquele de uma ocasião de retorno sobre ele mesmo.

 

“[...] A menor oportunidade me acusa, Ela dá com as esporas em minha vingança que se amolece! O que é um homem se sua felicidade suprema, se o emprego de seu tempo é somente comer e dormir? Uma besta”, não mais. Aquele que pôs em nós este olho da razão...” em inglês é: “Sure, he that made us with such large discourse, Looking before and after, gave us not That capability and god–like reason To fust in us unused”. O que o tradutor transcreve por: “a razão (é o grande discurso, o discurso fundamental, aquilo que chamarei aqui o discurso concreto) que nos faz ver adiante e atrás, e nos dá essa capacidade (aqui a palavra razão vem no seu lugar), certamente não nos deu esse dom divino para que, por falta de uso, ele mofe em nós. Ora, diz Hamlet, seja esquecimento bestial, bestial oblivion (é uma das palavras chaves na dimensão do seu ser na tragédia), seja covarde escrúpulo, craven scruple, que minucioso demais prevê a saída, - pensamento que colocado em quatro partes possui um quarto de sabedoria contra três quartos de covardia – vivo dizendo, não sei muito bem porque, “esta coisa deve ser feita”, “This thing’s to do”, quando melhor devo fazê-la e o posso, sith I have cause, and will, and strength, and means, to do’t. Quando tenho razão, a causa, a vontade, a força e os meios para fazê-la. Exemplos grossos como o mundo me convêm a isso, como esses grossos e onerosos exércitos conduzidos por um tenro e delicado príncipe, cujo espírito, no sopro de uma ambição divina provoca o desenrolar invisível, expondo sua fraqueza débil e mortal à audácia da fortuna, do perigo e da morte, even for an egg–shell, por uma concha vazia. Ser grande, sem contestação, isso não é de forma alguma se comover sem grande tema, mas encontrar esse grande tema em um cisco, quando a honra está em jogo. Rightly to be great Is not to stir without great argument, but greatly to find quarrel in a straw When honour’s at the stake. O que sou eu se meu pai morto e minha mãe suja, dois motivos, minha razão e meu sangue deixam tudo dormir, quando vejo, para minha vergonha, a morte iminente de mais de vinte mil homens que, por um fantasma de glória, vão ao túmulo assim como à cama, combatendo por um lote sobre o qual nem cabem para lutar, cuja capacidade, como túmulo, não pode conter os mortos, Which is not tomb enough and continent To hide the slaim? E, que de agora em diante meus pensamentos sejam de sangue ou que não sejam dignos de nada. O, from this time forth, My thoughts be bloody or be nothing worth![1].

 

Tal é a meditação de Hamlet sobre aquilo que eu chamava o objeto da ação humana, esse objeto que aqui deixa a porta aberta àquilo que chamarei todas as particularizações às quais nos detivemos. Nós chamaremos isso a oblatividade: despejar seu sangue por uma causa nobre, a honra. A honra é também designada: estar comprometido pela sua palavra. Nós chamaremos isso o dom. Enquanto analistas, efetivamente, não podemos deixar de encontrar essas determinações concretas, não ser apanhados pelo seu peso, quer seja de carne ou de comprometimento.

 

O que eu tento lhes mostrar aqui é alguma coisa que disso tudo não é somente a forma comum, o menor denominador comum. Trata-se não somente de uma posição, de uma articulação que poderia se caracterizar como um formalismo. Quando lhes escrevo a fórmula $ <> a, colocada no termo dessa questão que o sujeito apresenta no Outro que, dirigindo-se a ele, chama - o “Que queres?”, essa questão, que é o “Che vuoi?” na qual o sujeito está à procura de sua última palavra, e que não tem nenhuma outra chance fora da exploração da cadeia inconsciente na medida em que ela percorre o circuito da cadeia significante superior, mas que não é (a não ser que hajam condições especiais que chamamos analíticas) nada que não esteja, de fato, aberto à investigação; fora esse socorro da cadeia inconsciente, enquanto foi, pelo analista, pela experiência freudiana descoberta. Aquilo com o que lidamos é esse algo a que se pode concordar, num curto circuito imaginário, na relação a meio caminho desse circuito do desejo com o que está em frente, a saber, o fantasma e a estrutura do fantasma – sua estrutura geral, é o que expresso – a saber, uma certa relação do sujeito ao significante, é o que é expresso pelo $, é o sujeito enquanto afetado irredutivelmente pelo significante, com todas as conseqüências que isso comporta, em uma certa relação específica com uma conjuntura imaginária em sua essência, a, não o objeto do desejo, mas o objeto no desejo.

 

É por causa dessa função do objeto no desejo, o de que se trata de aproximar-se, na medida em que a tragédia de Hamlet nos permite aproximá-lo, articulá-lo de um modo exemplar, que nos inclinamos com esse interesse insistente sobre a estrutura da obra de Shakespeare.

 

Vamos nos aproximar mais. $<>a como tal significa isto: é na medida em que o sujeito é privado de alguma coisa dele mesmo que tomou valor pelo significante mesmo de sua alienação (esse algo é o falo); é na medida em que, portanto, o sujeito é privado de alguma coisa que se liga à sua própria vida, porque isso tomou valor daquilo que o liga ao significante; é enquanto está nessa posição que um objeto particular se torna objeto de desejo.

 

Ser objeto de desejo é alguma coisa essencialmente diferente de ser objeto de alguma necessidade. É dessa subsistência do objeto como tal, do objeto no desejo, no tempo, que ele vem tomar o lugar daquilo que, no sujeito, resta, pela sua natureza, mascarado: este sacrifício dele mesmo, essa libra de carne engajada em sua relação ao significante. É porque alguma coisa vem tomar o lugar disso que esse algo se torna objeto no desejo.

 

E isso que é tão profundamente enigmático por ser, no fundo, uma relação ao escondido, ao oculto, é porque é assim, é porque - se me permitirem uma fórmula que é daquelas que surgem sob minha pena, nas minhas notas, e que me retorna aqui, mas não façam disso uma fórmula doutrinal, tomem aí no máximo uma imagem – é na medida em que a vida humana poderia se definir como um cálculo no qual o zero seria irracional. Essa fórmula é só uma metáfora matemática e deve-se dar aqui ao irracional seu sentido matemático. Eu não faço aqui alusão a não sei qual afetivo insondável, mas a alguma coisa que se manifesta no interior mesmo das matemáticas sob a forma equivalente daquilo que se chama um número imaginário, que é V-1 [raíz de menos 1], pois há algo que não saberia corresponder ao que quer que seja de intuitivável, e que, no entanto, quer ser guardado com sua plena função: é essa relação, afirmo, do objeto com esse elemento oculto do suporte vivo, do sujeito, enquanto tomando função de significante que não pode ser subjetivada como tal.

 

É porque é dessa forma que essa estrutura, da mesma forma, na mesma relação em que estamos com a V-, - que é algo que em si não saberia corresponder a nada de real, no sentido matemático do termo – é justamente também por causa disso que só podemos apreender a verdadeira função do objeto, fazendo o giro de uma série de suas relações possíveis com o $, isto é, com o S que, no ponto preciso em que o a assume o máximo do seu valor, só pode ser ocultado. E é justamente essa volta das funções do objeto, - seria dizer muito que a tragédia de Hamlet nos faz fechar -, mas, seguramente, em todo caso, ela nos permite ir muito além do que nunca se foi por nenhuma via.

 

Vamos partir do final, do ponto de encontro, da hora do encontro, desse ato em que, afinal de contas, vocês devem perceber que o ato terminal, aquele no qual, enfim, ele lança, pelo preço de sua ação cumprida, todo o peso de sua vida, esse ato merece ser chamado ato que ele ativa e que ele sofre. Há, ao redor desse ato, um lado de hallali[2]. No momento em que realiza seu gesto, ele é também o cervo acuado de Diana. Ele é aquele em torno do qual se fecha o complô urdido - não sei se percebem - com um cinismo e uma malícia incríveis, entre Claudius e Laerte, quaisquer que possam ser as razões de um e de outro; provavelmente aí estando implicado também este tipo de tarântula, o cortesão ridículo que veio lhe propor o torneio onde se oculta o complô.

 

Tal é a estrutura. Ela é das mais claras. O torneio que lhe é proposto coloca-o em posição de campeão de um outro. Eu já insisti sobre isto. Ele é o desafiante da aposta de seu tio e padrasto, Claudius. Acontece algo sobre o que já insisti da última vez, é, a saber, para apostas, objetos a que aí se caracterizam com todo o seu brilho, a saber, que como todos os objetos e todas as apostas, são, essencialmente, em primeiro lugar, no mundo do desejo humano caracterizados por aquilo que a tradição religiosa, em representações exemplares, nos ensina a nomear uma vanitas, uma espécie de tapeçaria de ponto pequeno. É a acumulação de todos os objetos de prêmio que estão aí, e postos em uma balança em face da morte.

 

Ele apostou com Laerte seis cavalos da Barbária[3], contra os quais ele pôs na balança seis espadas próprias para duelo e punhais franceses, a saber, toda um aparato de duelista, com tudo aquilo que depende disso, como aquilo que serve para pegá-los, pendurá-los em suas bainhas, penso. E, particularmente, há três que tem aquilo que o texto chama de carriages. Essa palavra, carriage[4] é uma forma particularmente preciosa de expressar um tipo de anel no qual deve-se pendurar a espada. É uma palavra de colecionador que faz ambigüidade com o suporte [l’affût] do canhão, de modo que se estabelece todo um diálogo entre Hamlet e aquele que vem lhe trazer as condições do torneio. Durante um diálogo bastante longo, tudo é feito para fazer espelhar diante dos seus olhos a qualidade, o número, a variedade desses objetos, dando todo o seu acento a esse tipo de prova da qual lhes disse do caráter paradoxal, até mesmo absurdo, esse torneio que se propõe a Hamlet.

 

E no entanto Hamlet parece uma vez mais esticar o pescoço como se nada, em suma, pudesse nele se opor a um tipo de disponibilidade fundamental. Sua resposta é aí perfeitamente significativa. “Senhor, eu vou me manter nesta sala: que isto desagrade a sua majestade, é a minha hora de descanso; que tragam os floretes como quer o cavalheiro, e se o rei persiste em sua decisão, eu o farei ganhar, se puder; senão só ganharei a minha curta vergonha e os golpes recebidos”[5].

 

Eis portanto alguma coisa que, no ato terminal, nos mostra a estrutura mesma do fantasma. No momento em que ele está no ponto de sua resolução, finalmente! Como sempre, na véspera de sua resolução, ei-lo que se louva literalmente a um outro, e, ainda assim, para nada, do modo mais gratuito, e esse outro sendo justamente seu inimigo, aquele que ele deve abater. E isso, ele o coloca na balança com as coisas do mundo, primeiramente as que menos lhe interessam, ou seja, que não é aquele o momento de sua preocupação maior com todos esses objetos de coleção, mas que ele vai se esforçar em ganhar para um outro.

 

Sem dúvida, no andar abaixo, há alguma coisa que os outros pensam que é com isso que vamos cativá-lo, e ao que, evidentemente, ele não é totalmente estranho, não como os outros assim pensam, mas, no entanto, sobre o mesmo plano em que os outros o situam, a saber, que ele está interessado por honra, isto é, em um nível daquilo que Hegel chama “a luta por puro prestígio”, interessado por honra naquilo que vai opô-lo a um rival, por outro lado, admirado.

 

E nós não podemos não nos deter um instante na segurança dessa conexão colocada aí, levada adiante por Shakespeare. Vocês aí reconhecem alguma coisa que é antiga no nosso discurso, no nosso diálogo, a saber, o estágio do espelho. Que Laerte, nesse nível, seja seu semelhante, é o que está expressamente articulado no texto. Está articulado de modo indireto, quero dizer no interior de uma paródia. É quando ele responde a esse cavalheiro muito tapado que se chama Osric, e que vem lhe propor o duelo, lhe falar de seu adversário começando a jogar diante de seus olhos a qualidade eminente daquele ao qual ele terá que mostrar seu mérito. Ele lhe corta a palavra fazendo melhor ainda do que ele. “Sir, his definement suffers no perdition in you”, Senhor, por sua por sua descrição, não lhe falta nada, conquanto saiba que se fôssemos fazer um inventário ultrapassar-se-ia a aritmética da memória, pois todo esse esforço não saberia acompanhar-lhe a rapidez da vela”[6]. É um discurso extremamente precioso que ele prossegue, bastante afetado, que paródia de certa forma o estilo de seu interlocutor, e pelo qual ele conclui: “I take him to be a soul of great article, Eu considero que sua alma seja uma alma de grande valor, e que nela está infusa uma tal raridade e um tal valor que para fazer dela pronunciação verdadeira, seu semelhante só pode ser o seu espelho, e que outro poderia traçar o seu retrato senão ao ser sua própria sombra e nada mais”[7]?

 

Em suma, a referência à imagem do outro como sendo aquilo que só pode absorver completamente aquele que o contempla, está aí a propósito dos méritos de Laerte, certamente apresentada, inflado de uma maneira muito gongórica, o concetti é alguma coisa que tem todo o seu valor nesse momento. Ainda mais que, como vocês vão vê-lo, ver é nessa atitude que Hamlet vai abordar Laerte antes do duelo. É nesse pé que ele o aborda e torna isso ainda mais significativo, nesse paroxismo da absorção imaginária formalmente articulado como uma relação especular, uma reação em espelho, seja aí situado pelo dramaturgo igualmente o ponto manifesto da agressividade.

 

Aquele que se admira mais é o que mais se combate. Aquele que é o Ideal do eu é também aquele que, segundo a fórmula hegeliana da impossibilidade da coexistência, deve-se matar. Isso, Hamlet, só o faz sobre um plano que podemos chamar desinteressado, sobre o plano do torneio. Ele aí se engaja de um modo que podemos qualificar como formal, ou até mesmo fictício. É sem seu conhecimento que ele entra, em realidade, no jogo mais sério.

 

O que é que isso quer dizer? Isso quer dizer que ele não entrou aí, digamos, com o seu falo. Isso quer dizer que aquilo que se apresenta para ele nessa relação agressiva é um engano, é uma miragem, que é, apesar disso, que vai aí [perder] a vida, que é no seu desconhecimento que ele vai, precisamente nesse momento, ao mesmo tempo, ao encontro do acontecimento do seu ato e de sua própria morte, que vai, com poucos instantes de diferença, coincidir com ele.

 

Ele não entrou aí de forma alguma com o seu falo. É uma forma de expressar aquilo que estamos procurando, a saber, onde está a falta, onde está a particularidade dessa posição do sujeito Hamlet no drama. Ele aí entrou assim mesmo, pois se os floretes estão com a ponta protegida, é só para seu engano. Na realidade há pelo menos um que não está com a ponta protegida, que, no momento da distribuição das espadas, já está, antecipadamente, cuidadosamente marcado para ser dado a Laerte. Este está com uma ponta verdadeira, e, ainda mais, uma ponta envenomed [8], envenenada.

 

O que é marcante é que aqui o folgado do cenarista encontra o que podemos chamar a formidável intuição do dramaturgo. Eu quero dizer que ele não se dá tanto à pena para nos explicar que essa arma envenenada vai passar, na luta (Deus sabe como! Isso deve ser uma das dificuldades da atuação) da mão de um dos adversários à mão do outro. Vocês sabem que é em uma espécie de corpo a corpo em que eles se envolvem depois que Laerte tendo levado o golpe de ponta o qual Hamlet não pode curar [guérir], e do qual deve morrer. Em alguns instantes acontece que esta mesma ponta está na mão de Hamlet. Ninguém se dá mal para explicar tão espantoso incidente de sessão. Ninguém precisa, por sinal, se dar o mínimo mal, pois aquilo de que se trata é bem disso, isto é, de mostrar que aqui o instrumento da morte, na ocasião, o instrumento mais velado do drama, aquilo que Hamlet só pode receber do outro, o instrumento que faz morrer é alguma coisa que está em outro lugar que naquilo que é aí materialmente representado.

 

Aqui não podemos não ficar marcados, espantados com alguma coisa que literalmente se encontra no texto. É claro que aquilo que estou lhes dizendo é que além desse desfile no torneio, da rivalidade com aquele que é seu semelhante, e, mais bonito ainda, o próprio eu que ele pode amar, além se atua o drama do acontecimento do desejo de Hamlet, além, aí está o falo.

 

E, afinal de contas, é neste encontro com o outro que Hamlet vai, enfim, se identificar com o significante fatal. Pois bem, coisa muito curiosa, está no texto. Fala-se de floretes, dos foils, no momento de distribui-los: “Give them the foils, young Osric, dê-lhes os floretes. Cousin Hamlet, you know the wager, você conhece a aposta?”[9], e mais alto Hamlet diz: “Give us the foils[10]. Entre esses dois termos, onde está a questão dos floretes, Hamlet faz um jogo de palavras, “I’ll be your foil, Laerte. In mine ignorance Your skill shall, like a star i’ th’ darkest night, Stick fiery off indeed[11]. Traduziu-se em francês como foi possível: “Laerte, meu florete só será florzinha perto do seu”. Foil, no contexto, quer dizer “florete”. Aqui foil não pode ter este sentido, e possui um sentido perfeitamente distinguível, é um sentido perfeitamente confirmado na época, sendo mesmo freqüentemente empregado. É o sentido em que foil, que é a mesma palavra que a palavra francesa “folha” em francês antigo, utilizado sob uma forma preciosa para designar a folha na qual alguma coisa de preciosa é conduzida, isto é, “um porta jóias [un écrin]”. Aqui é utilizado para dizer: “Eu só vou estar aqui para destacar seu brilho de estrela na negritude do céu combatendo com você”.

 

Por sinal, são as condições mesmas nas quais o duelo foi decidido, a saber, que Hamlet não tem nenhuma chance de ganhar, que ele terá suficientemente ganhado se o outro só lhe ganhar três pontas sobre doze. A aposta está firmada a nove contra doze, isto é, dando-se uma vantagem a Hamlet.

 

Eu diria que nesse jogo de palavras sobre foil encontramos legitimamente isso que está incluso no que está por baixo do trocadilho; quero dizer que é uma das funções de Hamlet fazer o tempo todo jogos de palavras, trocadilhos, duplos sentidos, jogar sobre o equívoco. Esse jogo de palavras não está aí por acaso. Quando ele lhe diz serei seu porta jóias, emprega a mesma palavra que faz jogo de palavras com o que está em jogo naquele momento, a saber, a distribuição das espadas. E mui precisamente no trocadilho de Hamlet há, afinal de contas, essa identificação do sujeito ao falo mortal na medida em que está aí presente. Ele lhe diz eu serei seu porta jóias para fazer refletir seu mérito, mas o que vai vir num instante é, de fato, a espada de Laerte, na medida em que esta espada é aquela que o feriu, a ele, Hamlet, de morte, mas é igualmente a mesma que vai se encontrar à mão para atingir seu percurso e matar ao mesmo tempo, e seu adversário é o objeto último de sua missão, a saber, o rei que ele deve fazer perecer imediatamente após.

 

Essa referência verbal, esse jogo de significante não está certamente aí por acaso. É legítimo fazê-lo entrar em jogo, isso não é de fato um acidente no texto. Uma das dimensões nas quais se apresenta Hamlet e sua textura é de fato essa, através de todo o texto de Shakespeare, e isso por si só mereceria um desenvolvimento.

 

Vocês vêem como aí, atuando um papel essencial, esses personagens diversos que chamamos palhaços, que chamamos bobos da corte, que são, propriamente falando, aqueles que tendo toda sua franqueza podem se permitir desvelar os motivos mais escondidos, os traços de caráter das pessoas que a polidez proíbe abordar francamente. É alguma coisa que não é simplesmente cinismo e jogo mais ou menos injurioso do discurso, é essencialmente pela via do equívoco, da metáfora, do jogo de palavras, de um certo uso do concetti, de um falar precioso, dessas substituições de significantes sobre as quais aqui insisto quanto à sua função essencial; eles dão a todo o teatro de Shakespeare um estilo, uma matiz que é absolutamente característica do seu estilo e que cria essencialmente a dimensão psicológica.

 

O fato de que Hamlet seja um personagem angustiante mais que um outro não nos deve dissimular que a tragédia de Hamlet é a tragédia que, por um lado, ao pé da letra, leva esse louco, esse palhaço, esse fazedor de palavras ao nível do zero. Se por alguma razão se retirar essa dimensão de Hamlet da peça de Shakespeare, mais de quatro-quintos da peça desapareceria como o observou alguém.

 

Uma das dimensões em que se realiza a tensão de Hamlet é este perpétuo equívoco, aquele que nos é de certa forma dissimulado pelo lado, se assim posso dizer, mascarado do affaire. Eu quero dizer que o que se joga entre Claudius, o tirano, o usurpador e o assassino de Hamlet é, a saber, o desmascarar das intenções de Hamlet, a saber, porque ele faz o louco. Mas aquilo que não se deve esquecer é a forma como ele faz o louco, essa forma que dá a seu discurso esse aspecto quase maníaco, essa maneira de apanhar no ar as idéias, as ocasiões de equívoco, as ocasiões de fazer brilhar em um instante diante de seus adversários, esse tipo de iluminação dos sentidos. Há sobre isso na peça textos em que eles mesmos se colocam a construir, ou até mesmo a fabular. Isso os marca não como algo de discordante, mas como algo de estranho pela sua jogada de especial pertinência. É nesse jogo, que não é somente um jogo de dissimulação, mas um jogo de espírito, um jogo que se estabelece no nível de significantes, na dimensão dos sentidos, que se mantêm aquilo que pode-se chamar o espírito mesmo da peça.

 

É no interior dessa disposição ambígua que faz de todos os propósitos de Hamlet, e ao mesmo tempo da reação daqueles que o cercam, um problema onde o próprio espectador, o auditor, se perde e se interroga sem parar, é aí que é preciso situar a base, o plano sobre o qual a peça de Hamlet toma o seu alcance; e só o lembro aqui para lhes indicar que não há nada arbitrário nem excessivo ao se dar todo seu peso a esse último pequeno jogo de palavras sobre o foil.

 

Eis portanto a característica da constelação na qual se estabelece o ato último, o duelo entre Hamlet e aquele que é aqui um tipo de semelhante ou de duplo mais bonito que ele mesmo. Nós insistimos sobre esse elemento que está, de certa forma, no nível inferior do nosso esquema i (a), que é aquilo que se encontra para Hamlet um instante remodelado, que ele – para quem mais nenhum homem nem mulher é outra coisa que uma sombra inconsistente e pútrida – encontra aqui um rival à sua altura. Digamo-lo, esse semelhante remodelado, aquele que vai lhe permitir, ao menos por um instante, sustentar na sua presença a aposta humana de ser ele também um homem, só é aí, nesse remodelamento, uma conseqüência, não é um início. Eu quero dizer que é a conseqüência daquilo que se manifesta na situação, a saber, a posição do sujeito em presença do outro como objeto do desejo, a presença imanente do falo que só pode aqui aparecer na sua função formal, com o desaparecimento do próprio sujeito. O que é que torna possível o fato que o próprio sujeito sucumba antes mesmo de pegá-lo em mãos para se tornar ele mesmo o assassino?

 

Nós voltamos uma vez mais ao nosso cruzamento, esse cruzamento tão singular do qual falei, do qual marquei em Hamlet o caráter essencial, a saber, aquilo que se passa no cemitério, a saber, alguma coisa que deveria interessar um de nossos colegas que em sua obra tratou eminentemente ao mesmo tempo do ciúme e do luto[12]. É alguma coisa que é um dos pontos mais salientes dessa tragédia: o ciúme do luto.

 

Pois eu lhes peço se referirem à cena que termina o ato do cemitério, aquele sobre o qual eu lhes conduzi três vezes ao longo da minha exposição. É, a saber, isso de absolutamente característico: é que Hamlet não pode suportar o desfile ou a ostentação, e que ele articula como tal aquilo que há de insuportável na atitude de Laerte no momento do enterro de sua irmã. Essa ostentação de luto no seu parceiro. É por isso mesmo que ele se encontra arrancado dele mesmo, abalado, sacudido nos seus fundamentos, a ponto de não poder, como tal, tolerá-lo.

 

E a primeira rivalidade, aquela muito mais autêntica – pois se é com todo o aparato da cortesia e com um florete embotado que Hamlet aborda o duelo, é na garganta de Laerte que ele salta no buraco onde acaba de descer o corpo de Ofélia, para lhe dizer: “Mostre-me o que saberá fazer. Chorar? Brigar? Jejuar? [...] Eu o farei. Você veio prontamente para gemer, provocar-me saltando no seu túmulo? Faça-se enterrar vivo com ela, eu também o farei. E se você conversa montanhas que joguem sobre nós milhões de terras, e tanto que perto deste túmulo, que deixará vermelho o seu cume na zona de fogo, isso pareça uma verruga! E se você elevar a voz, eu gritarei[13].

 

E aí todo mundo se escandaliza, se espalha para separar esses irmãos inimigos prestes a se sufocarem. E Hamlet ainda mantêm seus propósitos falando ao seu parceiro: “E senhor, quem lhe faz usar dessa forma comigo? Eu sempre lhe amei. Não importa. Hércules pode fazer o que puder, o gato miará, e o cão terá sempre o seu dia”[14]. O que é por sinal um elemento proverbial que aqui me parece tomar todo seu valor de certas aproximações que alguns dentre vocês podem fazer, mas eu não posso me deter. O essencial é que no momento em que ele conversar com Horácio, ele lhe explicará: “Eu não pude suportar ver esse tipo de exibição do seu luto”[15]. Ei-nos levados ao coração de alguma coisa que vai nos abrir toda uma problemática.

 

Que relação haverá entre aquilo que nós trouxemos sob a forma $<>a, no que diz respeito à constituição do objeto no desejo, e o luto? Observemos isso, abordamos por suas características mais manifestas, que podem parecer também as mais distantes do centro que buscamos aqui, aquilo que se apresenta para nós.

 

Hamlet conduziu-se com Ofélia do modo mais que desprezível e cruel. Eu insisti sobre o caráter da agressão desvalorizante, da humilhação sem cessar imposta a essa pessoa que se tornou, de repente, o símbolo mesmo do rejeito como tal de seu desejo. Nós não podemos deixar de ficar chocados de alguma coisa que completa, para nós, uma vez mais, sob uma outra forma, em um outro traço, a estrutura para Hamlet. É que de repente esse objeto vai retomar para ele sua presença, seu valor. Ele declara: “Eu amava Ofélia, e trinta e seis mil irmãos com tudo aquilo que eles tem de amor não chegariam de jeito nenhum à soma do meu. O que você fará por ela?”[16].

 

É nesses termos que começa o desafio endereçado a Laerte. É, de certa forma, na medida em que o objeto de seu desejo se tornou um objeto impossível, que ele se torna de novo para ele o objeto de seu desejo. Uma vez mais acreditamos nos encontrar aí em um desvio familiar, a saber, uma das características do desejo do obsessivo. Não paremos rápido demais nessas aparências muito evidentes. O obsessivo, não é tanto que o objeto de seu desejo seja impossível que o caracteriza, se tanto é que, pela estrutura mesma dos fundamentos do desejo, há sempre essa nota de impossibilidade no objeto do desejo. O que o caracteriza não é portanto que o objeto de seu desejo seja impossível, pois ele não estaria aí, e por esse traço ele só é aí uma das formas especialmente manifestas de um aspecto do desejo humano, é que o obsessivo coloca a acento sobre um encontro com essa impossibilidade.

 

Dito de outra forma, ele se arranja para que o objeto de seu desejo tome o valor essencial de significante dessa impossibilidade. Aí está uma das notas pela qual já podemos abordar essa forma. Mas há algo de mais profundo que nos solicita.

 

O luto é outra coisa que nossa teoria, que nossa tradição, que as fórmulas freudianas já nos ensinaram a formular em termos de relação de objeto. Será que, por um certo lado, não podemos ficar chocados com o fato de que o objeto do luto, é Freud que o colocou, pela primeira vez, desde que há psicólogos, e que pensam, em destaque!

 

O objeto do luto está em uma certa relação de identificação – e que ele tentou definir de mais perto, chamar uma relação de incorporação com o sujeito – que ele toma o seu alcance, que se agrupam, se organizam, as manifestações do luto. Então, será que nós não podemos tentar, nós, rearticular mais, no vocabulário que aprendemos aqui a manusear, aquilo que pode ser essa identificação do luto? Qual é a função do luto?

 

Se nós avançamos nessa via vamos ver, e unicamente em função dos aparelhos simbólicos, que empregamos nessa exploração, aparecer da função do luto, conseqüências que creio novas, e para vocês eminentemente sugestivas. Eu quero dizer destinadas a lhes abrir apanhados eficazes e fecundos aos quais vocês não podiam acessar por uma outra via.

 

A questão do que é a identificação deve esclarecer-se com as categorias que são aquelas que aqui, diante de vocês, já há anos promovo é, a saber, aquelas do simbólico, do imaginário e do real.

 

O que é que é essa incorporação do objeto perdido? Em que consiste o trabalho do luto? Permanecemos em um vago que explica a parada de toda especulação em torno dessa via aberta por Freud em torno do luto e da melancolia, do fato de que a questão não é articulada corretamente. Atenhamo-nos aos primeiros aspectos, os mais evidentes, da experiência do luto. O sujeito se abisma na vertigem da dor e se encontra em uma certa relação aqui de certa forma ilustrada da maneira mais manifesta por aquilo que nós vemos se passar na cena do cemitério – o salto de Laerte na tumba e o fato de que ele abraça, fora de si, o objeto cujo desaparecimento é causa dessa dor – que faz disso no tempo, no ponto desse abraço, na maneira mais manifesta, um tipo de existência ainda mais absoluta que ela não corresponde mais a nada que seja.

 

Em outros termos, o buraco no real provocado por uma perda, uma perda verdadeira, esse tipo de perda intolerável ao ser humano, que provoca nele um luto, esse buraco no real se encontra por essa função mesma nessa relação que é o inverso daquela que promovo diante de vocês sob o nome Verwerfung. Da mesma forma que aquilo que é rejeitado no simbólico reaparece no real, que essas fórmulas devem ser tomadas no sentido literal, da mesma forma a Verwerfung, o buraco da perda no real de alguma coisa que é a dimensão, propriamente falando, intolerável oferta à experiência humana, que é, não a experiência da própria morte, que ninguém tem, mas aquela da morte de um outro que é para nós um ser essencial, isso é um buraco no real. Esse buraco no real, e por esse fato, e em razão da mesma correspondência que é aquela que articulo na Verwerfung, oferecer o lugar onde se projeta precisamente esse significante faltante, esse significante essencial como tal, à estrutura do Outro, esse significante cuja ausência torna o Outro impotente para lhes dar sua resposta – esse significante que vocês só podem pagar com sua carne e seu sangue, esse significante que é essencialmente o falo sob o véu.

 

É porque esse significante encontra aí o seu lugar, e ao mesmo tempo não pode encontrá-lo, porque esse significante não pode se articular no nível do Outro, que vem, como na psicose – e é aquilo pelo que o luto se aparenta à psicose – proliferar no seu lugar todas as imagens das quais relevam os fenômenos do luto, e não os fenômenos de primeiro plano, aqueles pelos quais se manifesta, não tal ou tal loucura particular, mas uma das loucuras coletivas mais essenciais da comunidade humana como tal, é, a saber, aquilo que está aí colocado no primeiro plano, em primeiro lugar da tragédia de Hamlet, a saber, o ghost, o fantasma, essa imagem que pode surpreender a alma de todos e de cada um.

 

Se da parte do morto, daquele que desaparece, esse algo não foi realizado, o que se chamam os ritos – os ritos destinados a quê, afinal de contas? O que são esses ritos funerários? Os ritos pelos quais satisfazemos ao que chamamos a memória do morto, o que é? senão é a intervenção total, massiva, do inferno até o céu, de todo o jogo simbólico. Eu gostaria de ter tempo de lhes fazer algum seminário sobre esse sujeito do rito funerário através de uma pesquisa etnológica. Eu me lembro, fazem muitos anos, haver passado bastante tempo sobre um livro que é uma ilustração disso realmente admirável, e que adquire todo seu valor, para nós exemplar, de ser de uma civilização bastante distante da nossa, para que os relevos dessa função apareçam realmente de um modo brilhante. É o Liji, um dos livros chineses consagrados.

 

O caráter macrocósmico dos ritos funerários, a saber, o fato de que, de fato, não há nada que possa preencher de significantes esse buraco no real a não ser a totalidade do significante, o trabalho realizado ao nível do Logos – eu digo isso para não dizer no nível do grupo nem da comunidade (claro, é o grupo e a comunidade enquanto que culturalmente organizados são os suportes disso) – o trabalho do luto se apresenta inicialmente como uma satisfação dada àquilo que se produz de desordem em razão da insuficiência de todos os elementos significantes a fazer face ao buraco criado na existência com a colocação em jogo total de todo o sistema significante em torno do mínimo luto.

 

E é isso que nos explica que toda a crença folclórica põe essencialmente a relação, a mais estreita, entre o fato de que alguma coisa tenha faltado, foi elidida ou recusada dessa satisfação ao morto, e o fato de que se produzem esses fenômenos que correspondem à empresa, à entrada em jogo, à colocação em funcionamento dos fantasmas e das larvas, no lugar deixado livre pelo rito significante.

 

E aqui nos aparece uma nova dimensão da tragédia de Hamlet. Eu lhes disse no início, é uma tragédia do mundo subterrâneo. O ghost surgido de uma ofensa irreparável; Ofélia aparece, nessa perspectiva, neutra, nada mais que uma vítima ofertada a essa ofensa primordial; o assassinato de Polonius e o ridículo arrastar de seu cadáver pelo pé, por um Hamlet que se torna, de repente, literalmente descontrolado [déchaîné, des-encadeado], e se diverte provocando todo mundo que lhe pergunta onde está o cadáver, e que se diverte propondo uma série de enigmas de bastante mal gosto, cujo auge culmina na fórmula: “Hide fox, and all after[17], o que é evidentemente uma referência a uma espécie de jogo de esconde-esconde. Isto quer dizer: a raposa está escondida, vamos correr atrás! O assassinato de Polonius e essa extraordinária cena do cadáver escondido no desafio da sensibilidade da inquietude de todos os que estão à volta permanece sendo uma derisão do de que se trata, a saber, de um luto não satisfeito.

 

Nós temos aqui, em alguma coisa da qual vocês o vêem, eu não pude lhes dar ainda hoje a última palavra, essa perspectiva, essa relação entre a fórmula $<>a, o fantasma, e alguma coisa que aparece disso paradoxalmente afastada é, a saber, a relação de objeto na medida em que o luto nos permite esclarecê-lo.

 

Nós vamos, da próxima vez, prosseguir em detalhe, mostrando, retomando os desvios da peça Hamlet na medida em que ela nos permite melhor apreender a economia aqui estreitamente ligada do real, do imaginário e do simbólico.

 

Talvez ao longo disso, muitas idéias preconcebidas em vocês, permanecerão em pane, até mesmo, espero, muito despedaçadas, mas isso penso que vocês aí estarão preparados pelo fato de que, já que comentamos uma tragédia em que não poupamos nem um pouco os cadáveres, esse tipo de devastação puramente idéico, eles não lhes aparecerão ao lado dos estragos deixados por ele, Hamlet, além de pouca coisa e que, para dizer tudo vocês se consolarão pelo caminho talvez difícil que lhes fiz percorrer com essa fórmula hamlética: Não se fazem Hamletes sem quebrar ovos!

 




[1] Hamlet: “How all occasions do inform against me,
And spur my dull revenge! What is a man,   
If his chief good, and market of his time,
Be but to sleep, and feed? a beast, no more.
Sure,he,that made us with such large discourse,
Looking before, and after, gave us not 
That capability and godlike reason
To fust in us unus’d. Now, whether it be
Bestial oblivion, or some craven scruple
Of thinking too precisely on the event, -
A thought, which, quarter’d, hath but one part wisdom,
And, ever, three parts coward, - I do not know
Why yet I live to say, This thing’s to do:
Sith I have cause, and will, and strength, and means,
To do’t. Examples, gross as earth, exhort me:
Witness, this army of such mass, and charge,  
Led by a delicate and tender prince;
Whose spirit, with divine ambition puff’d,
Makes mouths at the invisible event;

Exposing what is mortal, and unsure,

To all that fortune, death, and danger, dare,
Even for an egg-shell. Rightly to be great,
Is, not to stir without great argument;
But greatly to find quarrel in a straw,
When honour’s at the stake. How stand I then,
That have a father kill’d, a mother stain’d,
Excitements of my reason, and my blood,
And let all sleep? While, to my shame, I see
The imminent death of twenty thousand men, 
That, for a fantasy, and trick of fame,
Go to their graves like beds: fight for a plot
Whereon the numbers cannot try the cause.

Which is not tomb enough, and con
To hide the slain! – O, from this time forth,   
tinent,
My thoughts be bloody, or be nothing worth!

“Como tudo está contra mim, 
E incitam minha tímida vingança! Que é o homem,
Se o seu bem maior e sua máxima ocupação
Seja só comer e dormir? Um simples bruto.
Decerto, quem nos criou com a faculdade
que ao passado e ao futuro nos transporta,
não nos dotou dessa razão divina
para   que fique inútil. Seja, no entanto,
esquecimento  bestial, ou mesmo escrúpulo covarde
que me leva a pensar demais nas coisas -
pe três de covardia – nem sei
pensamento com um quarto de bom-senso

or que vivo e ainda digo: “Isso deve ser feito”,
pois para tal me sobram meios, força, causa e ânimo
para fazê-lo. Exemplos grandes como a terra me exortam:
este exército de tal poder e número,
conduzido por um príncipe moço e delicado,
cujo espírito, com ambição divina, faz exaltar,
levando-o a defrontar-se com os fatos invisíveis,
expondo a sua parte mortal e pouco firme,
contra o que ousa a fortuna, o acaso e a morte,
por uma casca de ôvo... O ser, de fato, grande
não é empenhar-se em grandes causas;
mas com grandeza se bater até por uma palha,
quando a honra está em jogo. E eu, deste modo,
com o pai assassinado, a mãe corrompida – razões
de estimular o sangue e o brio – nada me
homens próximos da morte, que por simples
desperta?
Vejo, envergonhado, vinte mil

fantasia e capricho da vaidade
caminham para o túmulo como se para o leito e lutam
por um pedaço de terra onde nem cabem.
e que co ocultar sequer os que aí tombarem. Doravantemo sepulcro ainda é pequeno para
terei só pensamentos de sangue ou de nada  alerão.”
(v
IV, 4, 32-66)

   

[2] Hallali corresponderia a um grito dos caçadores quando o animal se rende: sonner l’hallali.

[3] V, 2. 141.

[4] Carriage: l’affût. Espreitar a caça.

[5] Hamlet: Sir, I will walk here in the hall: If it please his majesty, it is the breathing time of day with me: let the foils be brought, the gentleman willing, and the king hold his purpose, I will win for him, if I can; if not, I will gain nothing but my shame, and the odd hits.

Hamlet: Senhor, vou pôr-me a passear nesta sala; se fôr do agrado de sua majestade, estarei na hora de tomar um pouco de ar fresco. Tragam os floretes, uma vez que o cavalheiro consinta; se o rei persiste em seu intento, ganharei para ele, se puder; caso contrário, lucrarei apenas a vergonha e os golpes sobressalentes.

[6] Hamlet, V. 2: 110.

[7] Hamlet, V. 2: 113.

[8] Hamlet, V, 2: 310.

[9] Hamlet, V, 2: 245 (É o rei quem fala).

[10] Hamlet, V, 2: 238.

[11] Hamlet, V, 2: 240: Vou servir de fundo para vosso brilho, Laertes. Minha inépcia fará luzir vossa arte, como a noite a uma estrela fulgente.

[12] LAGACHE, D., “Deuil pathologique” (1956) in La Psychanalyse no. 2, repris dans Œuvres, vol. IV, Paris, PUF.

[13] Hamlet :

“Com os diabos, que pretendes

orar? Lutar? Jejuar? Despedaçar-te?

Beber fel? Engolir um crocodilo?

Eu o farei. Vieste para queixar-te?

Desafiar-me, saltando em sua cova?
Enterra-te com ela e eu o farei.
Se falas de montanhas, que nos cubram
Jogando sobre nós milhões de acres,
Até que a nossa tumba, chamuscada
No topo por tocar as zonas tórridas,
Faça da Ossa um botão! Se o que pretendes
É atroar os ares, eu te sigo

E clamarei tão alto como tu.”
(V, 1: 263)


[14] Hamlet : “Hear you, sir; What is the reason that you use me thus”
I lov’d you ever: But it is no matter;
Let Hercules himself do what he may,
The cat will mew, the dog will have his day.” 

“Senhor, por que é que me tratais assim?
Sempre vos estimei – mas não importa;
Deixai que Hércules cumpra o que porfia.
Miará o gato e o cão terá seu dia.” (V, 1: 276)



[15]

Hamlet : [....] “But I am very sorry, good Horatio,
That to Laertes I forgot myself;
For by the image The portraiture of his: I’ll count this favours:of my caBut, sure, the bravery of his grieInto a towering passion.”  
did put me
use, I see






[....] “Mas causa-me tristeza, caro Horácio,

Que eu me tenha excedido com Laertes;
Vejo na sua dor a mesma imagem
Da minha causa; vou tentar movê-lo;
Porém a ostentação da sua mágoa
Levou-me ao desespero.”
(V, 1: 257)

 

[16] Hamlet : [....] “I lov’d Ophelia;
  forty thousand brothers
Could not, with all their quantity of love,
Make up my sum. –What wilt thou do for her?”
 


 
[
....] “Amava Ofélia;
quarenta mil irmãos por mais que amassem,
não somariam mais que o meu amor.
Que queres tu fazer então por ela?

          [17] Hamlet (IV, 2: 29)