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 O DESEJO E SUA INTERPRETAÇÃO

JACQUES LACAN
Lição XVII
15 de Abril de 1959


O  OBJETO OFELIA

         Eu anunciei, em suma, como chamariz, que hoje, afinal, falaria dessa isca que é Ofélia. E penso que vou manter minha palavra.

Esse objeto, esse tema, essa personagem, vem aqui como elemento em nosso propósito, aquele que seguimos desde há quatro de nossos encontros, que é o de mostrar em Hamlet a tragédia do desejo. E mostrar que se ela pode, propriamente falando, ser qualificada assim, é, sem dúvida, a medida em que o desejo como tal, onde o desejo humano, o desejo com o qual lidamos na análise, o desejo que estamos em postura, segundo o modo de nossa visão, perante ele, de infletir, ou até mesmo de confundir com outros termos, esse desejo só se concebe, só se situa em relação às coordenadas fixas na subjetividade tais como Freud demonstrou que elas fixam numa certa distância, um e outro, o sujeito e o significante, o que põe o sujeito numa certa dependência do significante como tal.

Isto quer dizer que nós não podemos realizar a experiência analítica partindo da idéia de que o significante seria, por exemplo, um puro e simples reflexo, um puro e simples produto daquilo que chamamos, na ocasião, as relações inter-humanas. E isto não é somente um instrumento, é um dos componentes iniciais essenciais de uma topologia, por falta da qual vemos o conjunto dos fenômenos se reduzir, se achatar de um modo que não nos permite, a nós analistas, realizar aquilo que podemos chamar os pressupostos da nossa experiência.

Eu comecei nesse caminho tomando Hamlet como um exemplo de alguma coisa que nos denuncia um sentido dramático muito vivo das coordenadas dessa topologia, e que faz com que seja a isso que atribuamos o excepcional poder de cativação que tem Hamlet, que nos faz dizer que se a tragédia de Hamlet tem esse papel prevalecente nas preferências do público crítico, que se ela é sempre sedutora para aqueles que dela se aproximam, isso está ligado a alguma coisa que mostra que o poeta aí pôs, por algum viés, alguns apanhados de sua própria experiência. E tudo o indica nesse tipo de virada que representa Hamlet na obra shakespeareana, até mesmo que sua experiência de poeta, no sentido técnico do termo, tenha-lhe, aos poucos, mostrado o caminho.

É por causa de certos desvios que pensamos aqui poder interpretar em função de alguns dos nossos pontos de referência, aqueles que são articulados por nossa aferição, que podemos perceber o alcance desse estudo, certamente muito essencial. Uma peripécia está presa de um modo que distingue a peça de Shakespeare das peças precedentes ou dos relatos de Saxo Grammaticus, de Belleforest, como peças sobre as quais temos apanhados fragmentários. Esse desvio é aquele da personagem de Ofélia, que está de fato presente na história desde o início – Ofélia, lhes disse, é a armadilha; desde a origem da lenda de Hamlet é a armadilha em que Hamlet não cai, primeiro porque o preveniram, segundo porque a própria isca, isto é, a Ofélia de Saxo Grammaticus não se presta para tal, apaixonada como ela é, há muito tempo, nos diz o texto de Belleforest, do príncipe Hamlet.

Essa Ofélia, Shakespeare faz dela outra coisa completamente diferente. Na intriga, talvez, ele só fez aprofundar essa função, esse papel que tem Ofélia na lenda, destinada como ela é, a pegar, cativar, surpreender o segredo de Hamlet. Ela é, talvez, alguma coisa que se torna um elemento dos mais íntimos do drama de Hamlet que nos fez Shakespeare, do Hamlet que perdeu o rumo, a via de seu desejo. Ela é um elemento de articulação essencial nesse caminho que faz Hamlet ir àquilo que lhes chamei, da última vez, a hora do seu encontro mortal, do acontecimento de um ato que ele cumpre de certa forma, apesar dele mesmo.

Nós veremos ainda mais hoje, até que ponto Hamlet é bem a imagem desse nível do sujeito onde podemos dizer que é em termo de significantes puros que o destino se articula, e que o sujeito não é, senão de certa forma, o avesso de uma mensagem que não é nem mesmo a sua.

O primeiro passo que demos nessa via foi, portanto, o de articular o quanto a peça, que é o drama do desejo na relação com o desejo do Outro, o quanto ela é dominada por esse Outro, que é aqui o desejo da forma menos ambígua, a mãe, isto é, o sujeito primordial da demanda. Esse sujeito sobre o qual lhes mostrei que é o verdadeiro sujeito todo poderoso do qual falamos sempre na análise. Isso não é a toda-potência [toute-puissance] da mulher que tem nela essa dimensão da qual ela é a toda-potência, dita toda-potência do pensamento. É de toda-potência do sujeito como sujeito da primeira demanda de que se trata, e é a ela que essa toda-potência deve sempre ser referida, eu lhes disse também na ocasião das nossas primeiras iniciativas.

Trata-se de alguma coisa, ao nível desse desejo do Outro, que se apresenta ao príncipe Hamlet, isto é, ao sujeito principal da peça, como tragédia, o drama de uma subjetividade. Hamlet ainda está aí, e podemos dizer, eminentemente mais do que em qualquer outro drama.

O drama se apresenta de modo sempre duplo, seus elementos sendo ao mesmo tempo inter e intra-subjetivos. Portanto, na perspectiva mesma do sujeito, do príncipe Hamlet, esse desejo do Outro, esse desejo da mãe se apresenta, essencialmente, como um desejo que, entre um objeto eminente (entre esse objeto idealizado, exaltado, que é seu pai) e esse objeto depreciado, desprezível (que é Claudius, o irmão criminoso e adúltero), não escolhe.

Ela não escolhe em razão de alguma coisa que está aí presente como da ordem de uma voracidade instintiva que faz com que, nela, esse sacrossanto objeto genital de nossa recente terminologia se apresente como nada além de o objeto de um gozo que é, verdadeiramente, satisfação direta de uma necessidade. Essa dimensão é essencial, ela é aquela que forma um dos pólos entre os quais vacila a súplica de Hamlet à sua mãe. Eu lhes mostrei na cena em que, confrontado a ela, ele lhe lança esse apelo à abstinência, nesse momento em que, nos termos, de resto os mais crus, os mais cruéis, ele transmite a mensagem essencial que o fantasma, seu pai, encarregou-o de transmitir. De repente, esse apelo fracassa e retorna; ele manda-a de volta ao leito de Claudius, às carícias do homem que não deixarão de fazê-la, mais uma vez, ceder.

Nesse tipo de queda, de abandono do final da súplica de Hamlet, encontramos o termo mesmo, o modelo que nos permite conceber em que ele, seu desejo, seu élan na direção de uma ação que ele está ávido por realizar – o mundo inteiro se torna para ele vívido reproche de nunca estar à altura de sua própria vontade – essa ação recai da mesma forma que a súplica que ele endereça à sua mãe. É, essencialmente, nessa dependência do desejo do sujeito em relação ao sujeito Outro que se apresenta o acento maior, o acento mesmo do drama de Hamlet, aquilo que podemos chamar sua dimensão permanente.

Trata-se de ver em quê, de um modo mais articulado, entrando em um detalhe psicológico que permaneceria, devo dizer, fundamentalmente enigmático, se ele não fosse, tal detalhe, submetido a esta visada de conjunto que faz o sentido da tragédia de Hamlet, como isto retine sobre o nervo mesmo do querer de Hamlet, sobre esse algo que no meu grafo é o gancho, o ponto de interrogação do Che vuoi? da subjetividade constituída no Outro e se articulando no Outro.

É o sentido daquilo que tenho para dizer hoje. Aquilo que podemos chamar a regulagem imaginária daquilo que constitui o suporte do desejo, daquilo que, frente a um ponto indeterminado, um ponto variável, aqui sobre a origem da curva, e que representa essa assunção pelo sujeito de seu querer essencial, aquilo que vem se regular sobre alguma coisa que está em algum lugar, em frente, e de certa forma podemos dizê-lo de imediato, no nível do sujeito inconsciente, a chegada, a topada, o termo daquilo que constitui a questão do sujeito, é alguma coisa que simbolizamos por este $, em presença deste a, e que chamamos o fantasma; que na economia psíquica representa alguma coisa que vocês conhecem, esse algo ambíguo enquanto está, de fato, no consciente quando nós o abordamos por uma certa fase, um último termo, esse termo que faz [o fundo] de toda paixão humana, enquanto marcada por alguns desses traços que chamamos traços de perversão.

O mistério do fantasma, na medida em que ele é de certa forma, o último termo de um desejo, e que sempre, mais ou menos, se apresenta sob uma forma bastante paradoxal, para ter, propriamente falando, motivado o rejeito antigo de sua dimensão como sendo da ordem do absurdo. E esse passo essencial – que foi feito na época moderna, quando a psicanálise constitui a curva primeira que sub-tende esse fantasma enquanto perverso – de interpretá-lo, de concebê-lo, é que ele só pôde ser concebido enquanto ordenado a uma economia inconsciente: que se ele aparece, a topada, no seu último termo, no seu enigma, se ele pode ser compreendido em função de um circuito inconsciente, ou que, ele se articula através de uma outra cadeia significante profundamente diferente da cadeia que o sujeito comanda na medida em que é esta aqui, a que está embaixo da primeira, e no nível, primeiramente, da demanda. E esse fantasma intervêm, e também não intervêm. É na medida em que alguma coisa que normalmente não chega a isto por essa via, não retorna ao nível da mensagem, do significado do Outro, que é o módulo, a soma de todas as significações tais como são adquiridas pelo sujeito na troca inter-humana e o discurso completo. É na medida em que esse fantasma passa ou não passa para chegar na mensagem, que nós nos encontramos numa situação normal ou numa situação atípica.

É normal que por essa via ele não passe, que permaneça inconsciente, que seja separado. É também essencial que em certas fases, e em fases que se inscrevem mais ou menos na ordem do patológico, ele ultrapasse também essa passagem. Nós daremos seu nome a esses momentos de ultrapassagem, esses momentos de comunicação que só podem ser feitos, como lhes indica o esquema, num só sentido. Eu indico essa articulação essencial, já que é para ir adiante, em suma, no manuseio desse aparelho que nós chamamos aqui o grama [le gramme], que nós estamos aqui.

Por enquanto vamos ver, simplesmente, o que quer dizer, e como funciona na tragédia shakespeareana aquilo que chamei o momento de enlouquecimento do desejo de Hamlet, na medida em que é nessa regulagem imaginária que convêm referi-lo.

Ofélia, nessa localização, se situa ao nível da letra a, a letra enquanto inscrita nessa simbolização de um fantasma, o fantasma sendo o suporte, o substrato imaginário de alguma coisa que se chama, propriamente falando, o desejo, na medida em que se distingue da demanda, que se distingue também da necessidade. Esse a corresponde a esse algo na direção de que se dirige toda a articulação moderna da análise, quando ela busca articular o objeto e a relação do objeto.

Há alguma coisa de justa nessa pesquisa, nesse sentido em que o papel desse objeto é, sem dúvida, decisivo como ela o articula (eu quero dizer a noção comum da relação de objeto), quando ela o articula como aquilo que estrutura fundamentalmente um modo de apreensão do mundo. Simplesmente, na relação de objeto, tal como ela nos é explicada, o mais comumente, atualmente, na maioria dos tratados que lhe fazem uma mais ou menos grande parte (que isso seja um volume editado bastante próximo de nós, ao qual faço alusão, como ao exemplo o mais caricatural, como de outros mais elaborados como aqueles de Federn ou tal ou qual outro), o erro e a confusão consistem nessa teorização do objeto enquanto objeto que se chama objeto pré-genital.

Um objeto genital está também, nomeadamente, no interior das diversas formas do objeto pré-genital, e das diversas formas do objeto anal, etc. É precisamente o que lhes é materializado sobre esse esquema, nisso que é tomar a dialética do objeto pela dialética da demanda. E essa confusão é explicável porque nos dois casos o próprio sujeito se encontra, num momento, numa postura em sua relação com o significante que é a mesma. O sujeito está em posição de eclipse. Enquanto que nesses dois pontos de nosso grama [gramme], quer se trate do código ao nível do inconsciente, isto é, da série de relações que ele tem com um certo aparelho da demanda, ou se trate da relação imaginária que o constitui de um modo privilegiado numa certa postura também definida por sua relação ao significante diante de um objeto a, nesses dois casos o sujeito está em posição de eclipse.

Ele está nessa posição que comecei a articular da última vez sob o termo fading. Eu escolhi esse termo por todos os motivos filológicos, e também porque se tornou perfeitamente familiar a propósito da utilização dos aparelhos de comunicação que são os nossos. O fading é exatamente aquilo que se produz num aparelho de comunicação, de reprodução da voz, quando a voz desaparece, desaba, desvanece, para reaparecer ao grado de alguma variação no próprio suporte, na transmissão.

É, portanto, enquanto o sujeito está num mesmo momento de oscilação, que é aquele que caracteriza – nós viremos, naturalmente, a dar seu suporte e suas coordenadas reais àquilo que é tão somente uma metáfora – o fading diante da demanda e no objeto, que a confusão pode se produzir, e que, de fato, o que se chama relação de objeto, é sempre relação do sujeito nesse momento privilegiado e dito de fading do sujeito, há – não “objetos” como se diz – significantes da demanda. E enquanto a demanda permanece fixa, é no modo, no aparelho significante que corresponde aos diferentes tipos, oral, anal e outros, que podemos articular alguma coisa que tem, de fato, um tipo de correspondência clínica.

Mas há um grande inconveniente em se confundir aquilo que é relação ao significante com o que é relação ao objeto, pois esse objeto é outro, pois esse objeto, enquanto objeto do desejo tem um outro sentido, porque todas essas coisas tornam necessário que não desconheçamos – até mesmo daríamos todo seu valor primitivo determinante, como fazemos aos significantes da demanda, na medida em que eles são significantes orais, anais, com todas as subdivisões, todas as diferenças de orientação ou de polarização que possa tomar esse objeto enquanto tal em relação ao sujeito (aquilo que a relação de objeto, tal como ela é enquanto articulada, desconhecia) – justamente essa correlação ao sujeito que é expressa assim, enquanto o sujeito é marcado com a barra.

É o que faz com que o sujeito, mesmo quando o consideramos nos estágios mais primitivos do período oral, tal como o articulou por exemplo, de um modo especialmente próximo, especialmente rigoroso, exato, uma Mélaine Klein – nós nos encontramos, observem, no próprio texto de Mélaine Klein, em presença de certos paradoxos, e que esses paradoxos não estão inscritos na pura e simples articulação que se pode fazer do sujeito como sendo colocado frente a frente com o objeto correspondente a uma necessidade, nomeadamente o mamilo, o seio, no caso.

Pois o paradoxo aparece nisso que, desde a origem, um outro significante enigmático se apresenta no horizonte dessa relação. Isto é perfeitamente colocado em evidência em Mélaine Klein , que só tem um mérito nesse caso, é de não hesitar em ir adiante, isto é, em confirmar aquilo que ela encontra na experiência clínica, e, por falta de explicação, se contentar com explicações muito pobres. Mas, seguramente, ela testemunha que o falo já está aí como tal, e como, propriamente falando, destruidor em relação ao sujeito.

Ela faz disso, antes de tudo, esse objeto primordial que é, ao mesmo tempo o melhor e o pior, aquilo em torno de quê vão girar todos os avatares tanto do período paranóide como do período depressivo. Eu só faço aqui, evidentemente, indicar, lembrar.

Aquilo que eu posso articular mais adiante a respeito desse $, e enquanto ele nos interessa, não enquanto ele é confrontado, colocado em relação à demanda, mas com esse elemento que vamos neste ano tentar uma aproximação maior, que é representado por a; o a, objeto essencial, objeto em torno de quê gira como tal a dialética do desejo, objeto em torno de quê o sujeito se encontra numa alteridade imaginária, diante de um elemento que é alteridade ao nível imaginário, tal como nós já o articulamos e o definimos inúmeras vezes. Ele é imagem, ele é pathos.

E é por esse outro que é o objeto do desejo, que é preenchida uma função que define o desejo nessa dupla coordenada que faz com que ele não vise - nem um pouco! - um objeto enquanto tal, de uma satisfação de necessidade, mas um objeto na medida em que ele mesmo já é relativizado, quero dizer, colocado em relação ao sujeito – o sujeito que está presente no fantasma. Isso é uma evidência fenomenológica, e eu retornarei a isso mais adiante.

O sujeito está presente no fantasma. E a função do objeto – que é objeto do desejo unicamente nisso que ele é marco do fantasma – o objeto ocupa o lugar, diria eu, daquilo que sujeito é privado simbolicamente. Isso pode lhes parecer um pouco abstrato, quero dizer, àqueles que não fizeram conosco todo o caminho precedente. Digamos para esses que é na medida em que na articulação do fantasma o objeto toma o lugar daquilo que o sujeito está privado. É o quê? É do falo que o objeto toma essa função que ele tem no fantasma, e que o desejo, com o fantasma como suporte, se constitui.

Eu penso que é difícil ir mais adiante no extremo daquilo que eu quero dizer no que diz respeito àquilo que devemos chamar, propriamente falando, o desejo e sua relação com o fantasma. É nesse sentido e na medida em que essa fórmula “o objeto do fantasma é essa alteridade, imagem e pathos por onde um outro toma o lugar daquilo de que o sujeito é privado simbolicamente”; vocês o vêem bem, é nessa direção que esse objeto imaginário se encontra, de certa forma, em posição de condensar sobre ele aquilo que podemos chamar as virtudes ou a dimensão do ser, que ele pode se tornar esse verdadeiro engano do ser que é o objeto do desejo humano; é algo diante de que Simone Weil se detém quando ela aponta a relação a mais espessa, a mais opaca que possa nos ser apresentada do homem com o objeto do seu desejo, a relação do avaro com seu baú, na qual parece culminar para nós, de modo mais evidente, esse caráter de fetiche que é aquele do objeto do desejo humano, e que é também o caráter ou uma das faces de todos esses objetos.

É bastante cômico ver como me foi dado recentemente, um tipo que tinha vindo nos explicar a relação da teoria da significação com o marxismo, dizer que não saberíamos abordar a teoria da significação sem fazê-la partir das relações inter-humanas. Isso ia bastante longe! No final de três minutos aprendíamos que o significante era o instrumento graças ao que o homem transmitia a seu semelhante seus pensamentos privados – isso nos foi dito textualmente numa boca que se autorizava por Marx. Por não trazer as coisas a esse fundamento da relação inter-humana, caímos, parecia-lhe, no perigo de fetichizar aquilo de que se trata no domínio da linguagem!

Certamente, aceito que, de fato, devemos encontrar alguma coisa que se parece muito com um fetiche, mas me pergunto se esse algo que se chama fetiche, isso não é justamente uma das dimensões mesmas do mundo humano, e precisamente aquela que tentamos dar conta. Se colocamos o todo na raiz da relação inter-humana, nós só chegamos a uma coisa, é a reenviar o fato da fetichização dos objetos humanos a não sei qual mal-entendido inter-humano que, ele mesmo, portanto, supõe um reenvio a significações. Da mesma forma que os pensamentos privados de que se tratava – eu penso num pensamento genético – estão bem aí para lhes fazer sorrir, pois já, se os pensamentos privados estão aí, não há porque buscá-los mais longe!

Em suma, é bastante surpreendente que essa relação, não a praxis humana, mas a uma subjetividade humana dada como essencialmente primitiva, seja sustentada numa doutrina que se qualifica marxista, sendo que me parece que basta abrir o primeiro tomo do Capital para se perceber que o primeiro passo da análise de Marx é muito, propriamente falando, a propósito do caráter fetiche da mercadoria, de abordar o problema muito exatamente no nível próprio, e, como tal, ainda que o termo não seja dito, enquanto tal, no nível do significante.

As relações significantes, as relações de valor, são dadas primeiro, e toda a subjetividade, aquela da fetichização eventual, vêm se inscrever no interior dessa dialética significante. Quanto a isso não há dúvida. Isso é um simples parênteses, reflexo que eu despejo na sua orelha, das minhas indignações ocasionais, e da chateação que posso sentir por haver perdido meu tempo.

Agora tentemos nos servir dessa relação $ em presença do a, que é para nós o suporte fantasmático do desejo. É preciso que o articulemos nitidamente, porque a, esse outro imaginário, o que é que isso quer dizer?

Isso quer dizer que alguma coisa de mais ampla do que uma pessoa pode aí se incluir, uma cadeia toda, um cenário todo. Eu não preciso voltar nessa ocasião ao que, no ano passado, adiantei aqui, a respeito da análise do Balcão de Jean Genet. Basta, para dar seu sentido àquilo que eu quero dizer, no caso, retornar àquilo que podemos chamar o bordel difuso, na medida em que se torna a causa daquilo que costumamos chamar sacrossanto genital.

O que é importante nesse elemento, propriamente falando, estrutural do fantasma imaginário enquanto se situa ao nível de a, é, por um lado, esse caráter opaco, aquele que o especifica sob as formas as mais acentuadas, como o pólo do desejo perverso; em outros termos, que faz dele o elemento estrutural das perversões, e nos mostra, portanto, que a perversão se caracteriza nisso, que todo a ênfase do fantasma é colocada do lado do correlativo propriamente imaginário do outro, a, ou do parênteses no qual alguma coisa que é (a+b+c...,etc.) – é toda a combinação de [objetos]: os mais elaborados podem se encontrar aí reunidos segundo a aventura, as seqüelas, os resíduos nos quais veio se cristalizar a função de um fantasma em um desejo perverso.

No entanto, o que é essencial, e o que é esse elemento de fenomenologia ao qual fazia alusão há pouco, é lhes lembrar que tão estranho, tão bizarro que possa ser no seu aspecto o fantasma do desejo perverso, o desejo aí está sempre, de alguma forma, interessado. Interessado numa relação que está sempre ligada ao patético, à dor de existir como tal, de existir puramente, ou de existir como termo sexual. É, evidentemente, na medida em que aquele que sofre a injúria no fantasma sádico é alguma coisa que interessa ao sujeito na medida em que ele mesmo pode ser oferecido a essa injúria, que o fantasma sádico subsiste. E essa dimensão, só podemos dizer uma coisa, é que só podemos ficar surpresos que, mesmo por instante, tenhamos sido capazes de pensar em eludi-la, fazendo da tendência sádica alguma coisa que, de modo algum, pudesse se referir a uma pura e simples agressão primitiva.

Eu só estou me estendendo demais. Se o faço é para acentuar alguma coisa que é aquilo na direção do que devemos articular agora a verdadeira oposição entre perversão e neurose. Se a perversão é, pois, alguma coisa articulada evidente e exatamente do mesmo nível, vocês irão ver, que a neurose, alguma coisa de interpretável, de analisável, na medida em que nos elementos imaginários alguma coisa se encontra de uma relação essencial do sujeito a seu ser, sob uma forma essencialmente localizada, fixada como sempre se disse, a neurose se situa por uma ênfase colocada sobre o outro termo do fantasma, isto é, ao nível do $.

Eu lhes disse que esse fantasma como tal se situa no extremo, na ponta, ao nível de botaréu do reflexo da interrogação subjetiva, na medida em que o sujeito tenta aí se despertar nesse além da demanda, na dimensão mesma do discurso do Outro, onde tende a reencontrar o que foi perdido por essa entrada no discurso do Outro. Eu lhes disse que ao último termo não é do nível da verdade, mas trata-se da hora da verdade.

É, de fato, essencialmente aquilo que nos mostra, o que nos permite designar o que distingue mais profundamente o fantasma da neurose do fantasma da perversão. O fantasma da perversão, lhes disse, é apelável, está no espaço, ele suspende não sei que relação essencial; ele não é, propriamente falando, atemporal, ele é fora do tempo. A relação do sujeito com o tempo, na neurose, é justamente esse algo do qual falamos pouco demais, e que é, no entanto, a base mesma das relações do sujeito com o seu objeto ao nível do fantasma.

Na neurose o objeto se encarrega dessa significação que deve ser buscada naquilo que chamo a hora da verdade. O objeto aí está sempre antes ou depois dessa hora. Se a histeria se caracteriza pela fundação de um desejo enquanto insatisfeito, a obsessão se caracteriza pela função de um desejo impossível. Mas o que há além desses dois termos é algo que tem uma relação dupla e inversa num caso e noutro com esse fenômeno que aflora, que aponta, que se manifesta de um modo permanente nessa procrastinação do obsessivo, por exemplo, fundada sobre o fato, por sinal, de que ele antecipa sempre tarde demais. Da mesma forma que para o histérico há que ele repete sempre aquilo que há de inicial em seu trauma, a saber, um certo cedo demais, uma imaturação fundamental.

É aqui, no fato de que o fundamento de um comportamento neurótico, na sua forma mais geral, é que no seu objeto, o sujeito busca sempre ler a sua hora, e, mesmo se podemos dizer que ele aprende a ler a hora, é nesse ponto que reencontramos nosso Hamlet. Vocês verão porque Hamlet pode ser gratificado, que pode-se emprestar-lhe ao grado de cada um todas as formas do comportamento neurótico tão longe quanto vocês o levarem, a saber, até à neurose de caráter. Mas também, tão legitimamente quanto, há para isso uma razão que, ela, se espalha através de toda a intriga e que faz verdadeiramente um dos fatores comuns da estrutura de Hamlet; da mesma forma que o primeiro termo, o primeiro fator era a dependência em relação ao desejo do Outro, ao desejo da mãe. Eis o segundo caráter comum que lhes peço agora reencontrar na leitura ou na releitura de Hamlet. Hamlet está sempre suspenso à hora do outro, e isto até o final.

Vocês lembram de uma das primeiras curvas na qual lhes detive ao começar a decifrar esse texto de Hamlet, aquele depois da play scene, a cena dos comediantes em que o rei ficou abalado, denunciou visivelmente aos olhos de todos (a respeito daquilo que acontecia na cena) seu próprio crime, que ele não podia suportar o espetáculo disso. Hamlet triunfa, exulta, zomba daquele que assim se denunciou, e sobre o caminho que o leva ao encontro já tomado antes da play scene, com sua mãe (e do qual cada um apressa sua mãe a apressar o término), sobre o caminho desse encontro onde vai se desenrolar a grande cena sobre a qual já tantas vezes acentuei, ele encontra seu sogro Claudius, rezando, Claudius abalado em seus fundamentos por aquilo que acaba de tocá-lo, lhe mostrando o rosto mesmo, o cenário de sua ação. Hamlet está aí diante de seu tio, do qual tudo parece indicar, mesmo na cena, que não somente ele está pouco disposto a se defender, mas até mesmo que ele não vê a ameaça que pesa sobre sua cabeça. E ele se detém porque não é a hora.

Não é o tempo do outro. Não é o momento em que o outro deve ter que apresentar suas contas diante do Eterno. E isso estaria bem demais, por um lado, ou muito mal do outro; isso não vingaria o bastante seu pai, porque talvez nesse gesto de arrependimento que é a prece se abriria para ele a via da salvação. Seja como for há uma coisa certa, é que Hamlet, que acabou de fazer essa captura da consciência no rei, “Wherein I’ll catch the conscience of the king[1]”, ao que se propunha, Hamlet se detém. Ele não pensa um só instante que é agora a sua hora. O que quer que possa no decorrer acontecer, não é o tempo do outro, e ele suspende o seu gesto. Da mesma forma só será, e sempre, em tudo o que Hamlet faz, o fará no tempo do outro.

Ele aceita tudo. Não esqueçamos, no entanto, que no início e na mágoa em que ele já estava, antes mesmo do encontro com o ghost e o desvendar do fundo do crime, desse simples re-casamento da mãe, ele só pensava numa coisa: partir para Wittenberg. É o que alguém ilustrava recentemente para comentar um certo estilo prático que tende a estabelecer-se nos costumes contemporâneos, fazendo observar que Hamlet era o mais belo exemplo daquilo que se evita em muitos dramas dando passaportes com tempo determinado. Se lhe tivessem dado seu passaporte para Wittenberg, não haveria o drama.

É no tempo de seus pais que ele fica ali. É no tempo dos outros que ele suspende seu crime; é no tempo de seu sogro que ele embarca para a Inglaterra; é no de Rosencrantz e Guildenstern que ele é conduzido, evidentemente com uma facilidade que maravilhava Freud, a enviá-los adiante da morte, graças a um truque bastante bem sucedido. E é assim mesmo, no tempo de Ofélia também, no momento do seu suicídio essa tragédia vai encontrar seu termo, num momento em que Hamlet , que passa, parece, a perceber que isso de matar alguém não é difícil, “o tempo de dizer one” não lhe dará tempo de falar ufa. E, no entanto, acabam de lhe anunciar algo que não parece em nada a uma ocasião para matar Claudius. Propõe-se-lhe um belo torneio sobre o qual todos os detalhes foram minuciosamente cronometrados, preparados, e cujos motivos estão constituídos por aquilo que chamaremos, no sentido cumulativo do termo, uma série de objetos que são todos caracterizados como objetos preciosos, objetos de coleção. Seria preciso retomar o texto, há aí refinamentos, entramos no domínio da coleção; trata-se de espadas, de dragonas, de coisas que só tem valor como objetos de luxo. E isso vai fornecer o motivo de um tipo de torneio no qual Hamlet, de fato, é provocado sobre o tema de uma certa inferioridade da qual lhe é acordado o benefício do challenge. É uma cerimônia complicada, um torneio que, evidentemente, para nós, é a armadilha onde ele deve cair, que foi fomentado pelo seu sogro e seu amigo Laerte, mas que, para ele, não esqueçamos, não é nada mais do que aceitar ainda cabular aula, a saber, que vai ser divertido.

Até mesmo quando ele sente, no nível do coração, um pequeno aviso, há aí alguma coisa que o comove. A dialética do pressentimento, naquele momento, do herói, vem aqui dar um instante, seu acento ao drama. Mas, no entanto, essencialmente, é ainda no tempo do outro, e, de um modo ainda maior, para sustentar a provocação do outro – pois não são seus bens que estão envolvidos, mas em benefício de seu sogro, e ele próprio mantendo-se como de seu sogro – que vai se encontrar entrando nessa luta, em princípio por cortesia, com aquele que é presumido ser mais forte que ele em esgrima, e, como tal, vai suscitar nele os sentimentos de rivalidade e de honra na armadilha dos quais já foi previsto que o pegariam certamente.

Ele se precipita, portanto, na armadilha. Eu diria que o que há de novo nesse momento é somente a energia, o coração com o qual ele aí se precipita. Até o último termo, até o último momento, até a hora em que é igualmente determinante para ser a sua própria hora, a saber, que ele será atingido mortalmente antes que possa atingir seu inimigo. É no tempo do outro que a tragédia persegue todo o tempo sua cadeia, e se realiza. Para conceber o de que se trata esse é um quadro absolutamente essencial.

É nisso que a ressonância do personagem e do drama de Hamlet é a ressonância mesmo, metafísica, da questão do herói moderno, na medida em que, de fato, alguma coisa para ele mudou na sua relação com seu destino.

Eu lhes disse, o que distingue Hamlet de Édipo, é que ele, Hamlet sabe. E isso, por sinal, explica, antes de tudo, conduzidos ao coração, ao ponto do que nós acabamos de designar serem os traços de superfície. Por exemplo, a loucura de Hamlet. Há heróis trágicos na tragédia antiga que são loucos, mas ao que saiba, não há – eu digo na tragédia, não falo dos textos lendários – que os façam loucos desse jeito.

Será que podemos dizer que tudo na loucura de Hamlet se resume a fazer o louco? É uma questão que vamos agora nos colocar. Mas ele faz o louco porque ele sabe que ele é o mais fraco. Isso não interessa ser apontado, vocês vêem que, por mais superficial que isso seja, eu o aponto agora não porque isso avança mais em nossa direção, mas somente porque é secundário.

Não é, no entanto, secundário nisso, é preciso refletir nisso se nós queremos entender aquilo que Shakespeare quis em Hamlet, é que é o traço essencial da lenda original, o que há em Saxus Grammaticus e em Belleforest. Shakespeare escolheu o sujeito de um herói obrigado, para prosseguir os encaminhamentos que o levam ao termo de seu gesto, a fazer o louco. Isso é uma dimensão propriamente moderna. Aquele que sabe está em uma posição tão perigosa como tal, tão designada para o fracasso e o sacrifício, que o seu encaminhamento deve ser – como diz em algum lugar Pascal “ser louco com os outros”.

Esta maneira de fazer o louco, que é um dos ensinamentos, uma das dimensões daquilo que eu poderia chamar a política do herói moderno, é alguma coisa que merece não ser negligenciada se nós pensamos que é aquilo que Shakespeare apreendeu no momento em que quer fazer a tragédia de Hamlet. Aquilo que lhe oferecem os autores é essencialmente isso. E só se trata disso, de saber o que esse louco tem em mente. Que seja no interior disso que Shakespeare tenha escolhido seu sujeito é um ponto essencial.

Ei-nos agora no ponto em que Ofélia tem de preencher seu papel. Se a peça tem realmente tudo aquilo que já acabei de desenvolver na sua estrutura, afinal de contas, para que esse personagem Ofélia?

Eu lembro aquilo que alguns me criticam, de não ter avançado senão com uma certa timidez. Não creio que tenha demonstrado uma timidez excepcional. Eu não quero lhes encorajar a esse tipo de propósito extravagante, cujos textos psicanalíticos formigam literalmente. Eu só fico espantado que não tenham reparado que Ofélia é omfaloV (Omphalos)[2], porque encontram-se besouros, alguns tão grandes e tão enormes, ainda não espetados, só em se abrir os Unfinished papers on Hamlet que Ella Sharpe deixou, lamentavelmente, inacabados talvez, antes da sua morte, e que talvez não deveriam ter sido publicados. Mas Ofélia é, evidentemente, essencial. Ela corresponde a isso, e está ligada para sempre, pelos séculos, à figura de Hamlet.

Eu quero simplesmente - já que é bastante tarde para que possa terminar hoje com Ofélia - é lhes dar um apanhado daquilo que se passa ao longo da peça. Ofélia, nós ouvimos inicialmente falar dela, como da causa do triste estado de Hamlet. E essa é a sabedoria psicanalítica de Polonius: ele é triste, porque não está feliz; não é feliz, por causa da minha filha. Vocês não a conhecem? É a fina flor – e como, evidentemente, eu, o pai, não tolerarei isto!

Nós a vemos aparecer a propósito de alguma coisa que já faz dela uma pessoa muito notável, a saber, a respeito de uma observação clínica, que é ela que teve a felicidade de ser a primeira pessoa que Hamlet encontrou depois do encontro com o ghost. Isto é, que tão logo ele saiu desse encontro que tinha, no entanto, alguma coisa de muito marcante, encontrou Ofélia. E a maneira como ele se comporta com Ofélia é alguma coisa que, creio, vale a pena ser relatada.

My lord, as I was sewing in my closet, Meu senhor, como eu estava a costurar no meu quarto, O senhor Hamlet, com seu colete todo aberto, Sem chapéu algum sobre a cabeça, as meias sujas e que sem as ligas caíam sobre seus calcanhares, Pale as his shirt, his knees knocking each other, Pálido como sua camisa, com seus joelhos entrechocando-se, E o ar tão infeliz quanto se houvesse sido entregue do inferno para falar dos seus horrores, Ei-lo que vem a mim [...]. He took me by the wrist and held me the hard, Ele me pega pelo punho e o aperta bem forte, Then goes he to the length of all his arms, Ele recua com todo o cumprimento do seu braço, And with his other hand thus o’er his brow, Com sua outra mão sobre as sobrancelhas, He falls to such perusal of my face, Ele cai em um tal exame de meu rosto, como se quisesse desenhá-lo. Ele se mantém longamente assim, E por fim, me sacudindo ligeiramente o braço, E por três vezes assinalando com a cabeça de cima a baixo, And thrice his head thus waving up and down, Exala um suspiro tão triste e tão profundo que esse suspiro pareceu abalar todo seu ser e terminar a sua vida; Depois do que, me solta: E sempre olhando por cima do seu ombro, He seem’d to find his way without his eyes, Parece encontrar seu caminho sem a ajuda de seus olhos, Fora da porta e até o fim os mantém fixos sobre mim[3]”.

Tão logo Polonius grita: “É o amor!”. Essa observação e, creio, essa interrogação, essa distância tomada ao objeto para proceder a não sei qual identificação desde então difícil, essa vacilação em presença daquilo que até então foi o objeto de exaltação suprema, é alguma coisa que nos dá o primeiro tempo, estrangement[4], se assim pode-se dizer.

Nós não podemos dizer nada mais. No entanto, creio, até um certo ponto, que não forçamos nada, designando como propriamente patológico aquilo que se passa nesse momento, que testemunha uma grande desordem de Hamlet em seu jeito de se portar, e tornando-o afim desses períodos de irrupção e desorganização subjetiva, qualquer que seja. Acontece, no entanto, que alguma coisa vacila no fantasma, faz aí aparecer seus componentes, os faz aparecer e receber em alguma coisa que se manifesta nesses sintomas como aquilo que chamamos uma experiência de despersonalização, e que é aquilo pelo que os limites imaginários entre o sujeito e o objeto se alternam, no sentido próprio do termo, na ordem daquilo que se chama o fantástico.

E é bem propriamente quando alguma coisa na estrutura imaginária do fantasma está prestes a se alcançar, a comunicar com aquilo que chega muito mais facilmente no nível da mensagem, a saber, aquilo que vem subjacente a esse ponto aí, que é a imagem do outro, na medida em que essa imagem do outro é meu próprio eu [moi]. É aquilo em que os autores como Federn marcam com muita fineza as correlações necessárias entre os sentimentos do próprio corpo e a estranheza daquilo que chega em uma certa crise, em uma certa ruptura, em uma certa afecção do objeto como tal, e de um nível especificado que nós encontramos aí.

Talvez aqui eu force um pouco as coisas no intuito de lhes interessar, quero dizer, no intuito de mostrar no que isso se refere a experiências eletivas da nossa clínica. Nós voltaremos a isso sem dúvida. Pensem que é impossível, em todo caso, sem essa referência a esse esquema patológico, a esse drama, situar bem aquilo que foi promovido pela primeira vez por Freud ao nível analítico sob o nome de Unheimliche. Isso não está ligado, como acreditaram alguns, em todos os tipos de irrupção do inconsciente. Isso está ligado a esse tipo de desequilíbrio que se produz no fantasma, e na medida em que o fantasma, ultrapassando os limites que lhe são inicialmente atribuídos, se decompõem e vêm reencontrar aquilo pelo que ele alcança a imagem do outro. De fato, isso é só um toque.

No caso de Hamlet, nós encontramos depois alguma coisa em que Ofélia está completamente enquanto objeto de amor. “I did love you once, eu lhe amava outrora”, diz Hamlet. E as coisas se passam, nas relações com Ofélia, nesse estilo de agressão cruel, de sarcasmos levados muito longe, que não faz disso as cenas menos estranhas de toda a literatura clássica. Pois se pudermos ver atuar sobre essa corda em peças extremas, em alguma coisa que se situa com esse caráter verdadeiramente central da cena trágica da peça de Hamlet, uma cena como aquela que ocorreu entre Hamlet e Ofélia, não é uma cena banal.

Isso é o que caracteriza essa atitude pelo qual encontramos traço daquilo que indicava há pouco, como desequilíbrio da relação fantasmática na medida em que ele desliza para o objeto o lado perverso. É um dos traços dessa relação. Um outro traço é que esse objeto de que se trata não é mais nem um pouco tratado como poderia sê-lo, como uma mulher. Ela se torna para ele a portadora de crianças, de todos os pecados, aquela que é designada para engendrar os pecadores e aquela que é designada em seguida como devendo sucumbir sob todas as calúnias. Ela se torna o puro e simples suporte de uma vida que em sua essência se torna, para Hamlet, condenada. Em suma, o que se produz nesse momento é essa destruição ou perda do objeto, que é reintegrada no seu quadro narcísico. Para o sujeito ele aparece, se assim posso dizer, fora. Aquilo do que ele é equivalente segundo a fórmula que empreguei há pouco, aquilo do qual ele toma o lugar, e aquilo que só pode ser dado ao sujeito no momento em que, literalmente, ele se sacrifica, em que o rejeita com todo seu ser. Ele é unicamente o falo.

Em que Ofélia é, nesse momento aí, o falo, é nisso, e na medida em que aqui o sujeito exterioriza o falo enquanto símbolo significante da vida e como tal ele o rejeita. Isso é o segundo tempo da relação ao objeto. O tempo um pouco avançado me constrange de lhes dar todas as coordenadas, e eu voltarei a isso.

Que seja bem disso o de que se trate, isto é, de uma transformação da fórmula $ à j (j, o falo), e sob a forma do rejeitado, isso é demonstrado uma vez que vocês perceberam por uma coisa totalmente outra do que a etimologia de Ofélia. Primeiro, porque só se trata disso, a saber, da fecundidade. “A concepção é uma benção, diz Hamlet a Polonius, mas tome cuidado com a sua filha”. E todo o diálogo com Ofélia é bem a mulher concebida aqui unicamente como portadora dessa turgescência vital que se trata de maldizer e de esgotar. Uma [nunnery] pode também, na época, designar um bordel. O uso semântico o mostra.

Por outro lado, a atitude de Hamlet com Ofélia na play scene é também alguma coisa onde se designa essa relação entre o falo e o objeto. Ali, porque ele está diante da sua mãe, e expressamente na medida em que está diante da sua mãe, lhe dizendo “há aqui um metal que me atrai mas que você”. Ele vai colocar sua cabeça entre as pernas [“Lady, shall I lie in your lap?” de Ofélia, pedindo-lhe expressamente.

A relação fálica do objeto do desejo está também claramente indicada nesse nível, e também não se torna supérfluo indicar, já que a iconografia fez disso um tal estado que dentre as flores com as quais Ofélia vai se afogar, é expressamente mencionado que as “dead men’s fingers” de que se trata são designadas de um modo mais grosseiro pelas pessoas comuns. Essa planta de que se trata é a Orchis Mascula. Trata-se de alguma coisa que tem uma relação qualquer com a mandrágora que faz com que isso tenha alguma relação com o elemento fálico. Eu procurei isso no New English Dictionnary, mas fiquei muito decepcionado, pois ainda que isso seja citado em referência ao termo finger, não há nenhuma alusão àquilo a que Shakespeare faz alusão por esta nominação.

Terceiro tempo, que é aquele em que várias vezes já lhes conduzi, e onde vou, mais uma vez, lhes deixar, o tempo da cena do cemitério. É, a saber, a ligação entre alguma coisa que se coloca como uma reintegração de a e a possibilidade, enfim, para Hamlet, de fechar a argola, isto é, enfim, de se precipitar para seu destino.

Esse terceiro tempo, enquanto inteiramente gratuito, absolutamente capital, pois toda a cena do cemitério é feita para que ela se produza, essa coisa que Shakespeare não encontrou em nenhum outro lugar, esse tipo de batalha furiosa no fundo de um túmulo sobre a qual já insisti. Essa designação como de uma ponta da função de objeto como sendo aqui reconquistado somente às custas do luto e da morte. É sobre isso, penso, que, enfim, poderei terminar da próxima vez.



[1] Hamlet: “The play’s the thing, Wherein I’ll catch the conscience of the King.”

                “A peça é o meio pelo qual atingirei a consciência do rei.” (II, 2.586)

[2] OmfaloV: “Umbigo”, “umbilical”, e, mais freqüente, “centro”, “meio”.

[3] Ofélia: “Estava a costurar no quarto, quando, descomposto, me surge lorde Hamlet, gibão aberto, sem chapéu, as meias caídas nos artelhos, e tão branco quanto a camisa; os joelhos lhe tremiam; o olhar, tão cheio de piedade, como vindo do inferno para relatar-me os eternais horrores. Desse modo me apareceu.” (II: 1: 77)

 

[4] Estrangement: Alienação.


A tradução do texto é de Paulo Medeiros