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O DESEJO E SUA INTERPRETAÇÃO

Jacques Lacan


Lição XV -  Hamlet III

18 de Março de 1959

 

         Os princípios analíticos são, no entanto, tais, que, para chegar ao objetivo, não se deve empurrá-los. Pode ser, talvez alguns dentre vocês acreditem (penso que não há muitos desse tipo), que estejamos longe da clínica. Não é verdade! Nós estamos nela em cheio, porque aquilo de que se trata, sendo situar o sentido do desejo, do desejo humano, esse modo de referência ao qual procedemos sobre o que é, de resto, desde o início, um dos grandes temas do pensamento analítico, é alguma coisa que não saberia, de modo algum, nos desviar daquilo que é, de nós, solicitado como o mais urgente.

         Foram ditas muitas coisas sobre Hamlet, e fiz alusão a isto da última vez. Eu tentei mostrar a espessura da acumulação dos comentários sobre Hamlet. Chegou-me, no intervalo, um documento atrás do qual eu padecia, no meu desejo de perfeccionismo, a saber, o Hamlet and Œdipus, de Ernest Jones[1]. Eu o li, para me aperceber que, em suma, Jones havia mantido seu livreto informado daquilo que aconteceu desde 1909. E não é mais a Loening[2], que ele faz alusão como referência recomendável, mas a Dover Wilson[3], que escreveu muito sobre Hamlet, e escreveu muito bem. No intervalo, como eu mesmo havia lido uma parte da obra de Dover Wilson, creio que lhes dei mais ou menos a substância.

É mais um certo recuo que se trataria de tomar agora em relação a isso tudo, à especulação de Jones, que, devo dizê-lo, é fortemente penetrante – e, podemos dizer, no conjunto, de um outro estilo que tudo aquilo que, na família analítica, pôde ser escrito, acrescentado sobre o tema. Ele faz observações muito justas, que simplesmente faço retomar. Ele faz, em particular, essa observação de simples bom senso, que Hamlet não é um personagem real, mas que, mesmo assim, nos coloca as mais profundas questões a respeito do caráter de Hamlet, sendo, talvez, alguma coisa que merece que nos detenhamos um pouco mais seriamente do que o fazemos de costume.

Como sempre, quando estamos num domínio que diz respeito de uma parte, à nossa exploração e também, por outra parte, à um objeto, há uma dupla via a ser seguida. Nossa via nos engaja numa certa especulação fundada sobre a idéia que nos fazemos do objeto. É bem evidente que há coisas, eu diria, para se aplainar no primeiríssimo plano. Em particular, por exemplo, aquilo com que lidamos nas obras de arte, especialmente nas obras dramáticas, que são os caracteres, no sentido em que o entendemos em francês. Caracteres , isto é, alguma coisa em que, supomos, o autor contenha toda a sua densidade; que criou alguém, um homem simples e sensato, um caráter, e estaria suposto nos comover pela transmissão dos caracteres desse caráter. E, por esta única sinalização seríamos já introduzidos a uma espécie de realidade suposta, que estaria além daquilo que nos é dado na obra de arte.

Eu direi que Hamlet já tem essa propriedade muito importante de nos fazer sentir até que ponto esta visão, apesar de comum, que nós aplicamos a todo propósito, espontaneamente, quando se trata de uma obra de arte, é, no entanto, pelo menos, se não para rejeitar, pelo menos a suspender. Pois, de fato, em toda a arte há dois pontos sobre os quais podemos nos apegar solidamente, como pontos de referência absolutamente certos, é que não basta dizer como eu disse, que Hamlet é uma espécie de espelho onde cada um se viu a seu modo, leitor ou espectador. Mas deixemos os espectadores que são insondáveis...

Em todo caso a diversidade das interpretações críticas que foram dadas disso sugerem que há algum mistério, pois a soma daquilo que foi antecipado, afirmado a respeito de Hamlet, é, propriamente dito, inconciliável, contraditório, penso já lhes haver mostrado suficientemente da última vez. Eu articulei que a diversidade das interpretações era estritamente da ordem do contrário ao contrário. Eu indiquei também um pouco aquilo que podia ser Hamlet para seus atores, é um domínio sobre o qual nós teremos talvez que voltar daqui a pouco, que é muito significativo. Eu disse que era o papel por excelência, e que, ao mesmo tempo, dizíamos “O Hamlet de fulano, beltrano, sicrano”, isto é, na medida em que há atores de um certo vigor pessoal, do mesmo modo o há em Hamlet.

Mas isso vai mais longe. Alguns chegaram até a sustentar – em particular Robertson no nível do terceiro centenário, sustentados um pouco, sem dúvida, por uma espécie de rush que houve então sobre os temas shakespearianos, a exaltação passional com a qual todo o mundo literário inglês fez reviver o tema – alguns deram a entender uma voz que se opunha, para dizer que, estritamente, Hamlet era o vazio, o que não se manteve, que não há chave de Hamlet, que Shakespeare havia feito como pôde para juntar um tema no qual a exploração filológica, que foi bastante longe, mostra (sabíamos que já havia um Hamlet que se atribui a Kyd, que teria sido encenado uns doze anos antes desse outono de 1601, quando temos mais ou menos a certeza de que pela primeira vez apareceu este Hamlet) - pudemos chegar até a dizer, e eu direi que é sobre isto que se termina o primeiro capítulo do livro de Jones -, ele foi propriamente articulado até por Grillparzer, um dramaturgo austríaco ao qual Freud fez, na ocasião, uma referência muito importante e que diz que o motivo mesmo de Hamlet era sua impenetrabilidade, o que é, todavia, bastante curioso como opinião! Que isto pôde ser dito não se pode dizer que isto não seja uma opinião estritamente anti-aristotélica. Na medida em que o caráter `’omoios [homoios][4] do herói em relação a nós é o que colocamos no primeiro plano para explicar, sobre a base mesma da explicação aristotélica, o efeito da comédia e da tragédia.

Que tudo isto pôde ter sido antecipado a respeito de Hamlet é algo que tem o seu preço. É preciso dizer que há sobre isto todo um leque de opiniões que não se eqüivalem, que apresentam toda uma série de nuances no que diz respeito àquilo que podemos dizer disto; e que não é a mesma coisa dizer que Hamlet seja uma peça que não deu certo. Que vocês o digam, que alguém que não é nada menos que T.S. Elliot, que para um certo meio é mais ou menos o maior poeta inglês moderno, pensa também, e o disse, que Shakespeare não esteve à altura de seu herói, quero dizer que se Hamlet é alguém que é incompatível à sua tarefa, Shakespeare também não correspondeu à articulação do papel de Hamlet. Aí estão opiniões que podemos dizer, no entanto, problemáticas; eu lhas relato para conduzí-los na direção daquilo de que se trata. E a opinião mais matizada, que é, creio, aqui, a mais certa – está na relação de Hamlet com aquele que o apreende, seja como leitor, seja como espectador, alguma coisa que é da ordem de uma ilusão.

É diferente de dizer que Hamlet é simplesmente o vazio. Uma ilusão não é o vazio. Para poder produzir sobre a cena um efeito fantasmático da ordem daquilo que se representaria, se vocês quiserem, meu pequeno espelho côncavo com a imagem real que surge e que só pode se ver de um certo ângulo e de um certo ponto, é preciso toda uma maquinaria. Que Hamlet seja uma ilusão, a organização da ilusão, eis alguma coisa que não é a mesma ordem de ilusão que todo mundo sonha a respeito do vazio. É, no entanto, importante se fazer essa distinção.

O que há de certo, em todo caso, é que tudo confirma que há alguma coisa desta ordem. Isto dá, é o primeiro ponto, o apanhado ao qual podemos solidamente nos apegar. Por exemplo, alguém como Trench[5], que é citado por Jones, veremos em que termos escreve alguma coisa assim: “Nós encontramos a maior dificuldade, mesmo com a ajuda de Shakespeare, de entender Hamlet; até mesmo Shakespeare, talvez, achava difícil entendê-lo. O próprio Hamlet... (vê-se que esse trecho é divertido, o deslizamento da pena ou do pensamento vai na direção disso), o próprio Hamlet se encontrava, é possível, na impossibilidade de se compreender a si próprio”. E: “Mais capaz que os outros homens de ler no coração e os motivos dos outros...”. Esse final de frase não se refere nem a nós mesmos nem a Shakespeare, mas a Hamlet. Vocês sabem que Hamlet, o tempo todo se entrega a esse jogo de desmontagem com seus interlocutores, com aqueles que vêm interrogá-lo, preparar-lhe armadilhas. E “ele é perfeitamente incapaz de ler seus próprios motivos”. Eis o que é dito.

Eu lhes assinalo que, imediatamente depois, Jones, que justamente começou fazendo todas as reservas, dizendo que não devemos nos deixar levar a falar de Hamlet como de um personagem real, é em outro lugar que é preciso procurar a articulação, e que além nós devemos encontrar... – é a posição tradicional em matéria de interpretação psicanalítica, mas que, creio, contém algum erro, alguma falácia sobre a qual quero primeiramente chamar sua atenção. Jones faz essa observação e a seguir, não deixa de deslizar em algo que se expressa mais ou menos assim: “Eu não conheço julgamento mais autêntico que aquele em toda a literatura sobre o problema”[6]. Em outro lugar, o mesmo Jones nos dirá que, em suma, “o poeta, o herói e a audiência são profundamente comovidos por sentimentos que os tocam sem que eles percebam”[7].

Há aí, portanto, algo que nos faz tocar com o dedo a estrita equivalência de certos termos dessa questão, a saber o poeta e o herói, com alguma coisa (basta se deter um instante para se perceber) é que eles só estão realmente aí por seu discurso. Se se trata de alguma coisa que é a comunicação daquilo que está no inconsciente daqueles que estão antecipados aí como sendo os primeiros termos, a saber o poeta e o herói, não se pode dizer que esta comunicação do inconsciente, em todo caso, possa se conceber, não é presentificada por nada mais do que a articulação do discurso dramático.

Não falemos do herói que, na verdade, se vocês me acompanham no caminho por onde tento lhes introduzir, não é senão estritamente idêntico a palavras. Principalmente se começamos a tomar o sentimento daquilo que torna mais elevado o valor dramático, no caso, desse herói, é um modo. Está bem aí o segundo punhado ao qual lhes peço pegar, é da mesma ordem que esse lado que foge de tudo aquilo que podemos dizer de sua consistência. Em outros termos, Hamlet aqui se torna a obra exemplar.

Que o modo sobre o qual uma obra nos toca, nos toca precisamente do modo mais profundo, isto é, sobre o plano do inconsciente, é algo ligado a essa ordem, a uma composição da obra, que, sem nenhuma dúvida, faz com que nos interessemos mui precisamente no nível do inconsciente, mas que isso não é em razão da presença de alguma coisa que realmente suporta frente a nós um inconsciente. Eu quero dizer que nós não lidamos, nem contrariamente àquilo que cremos, ao inconsciente do poeta, mesmo se ele testemunha da sua presença por alguns traços não concertados na sua obra, por elementos de lapsos, por elementos simbólicos despercebidos dele mesmo, não é isto que nos interessa de modo maior; pode-se encontrar alguns traços disso em Hamlet, foi por aí que se empenhou, no último termo, Ella Sharpe, como lhes disse da última vez. É, a saber, que ela vai procurar limpar daqui, dali, aquilo que no caráter de Hamlet pode fazer se perceber não sei que enrosco, não sei que fixação da metáfora em torno de temas femininos, ou de temas orais. Eu lhes asseguro que, ao ver do problema que apresenta Hamlet, está realmente aí alguma coisa que parece secundária, quase pueril, sem perder, naturalmente, todo o interesse.

Em muitas obras, indo assim buscar, sob esse ângulo, alguns traços, alguma coisa que pode lhes informar sobre um autor, vocês fazem obra de investigação biográfica sobre o autor, vocês não analisam o alcance da obra como tal. E o alcance de primeiro plano que toma para nós Hamlet é aquele que lhe dá o valor de estrutura equivalente àquela de Édipo. Alguma coisa que pode nos permitir nos interessar ao mais profundo da trama; aquilo que para nós permite estruturar certos problemas é evidentemente outra coisa do que tal ou tal confissão fugaz. É bem evidentemente o conjunto, a articulação da tragédia nela mesma que é o que nos interessa, é aquilo que estou acentuando. Isso vale por sua organização, por aquilo que isso instaura de planos sobrepostos no interior do que pode achar lugar, a dimensão própria da subjetividade humana. E aquilo que faz com que, se vocês quiserem, nessa maquinaria, ou ainda nesses montantes – para metaforizar aquilo que quero lhes dizer– na necessidade de um certo número de planos sobrepostos, a profundidade de uma peça, de uma sala, de uma cena, a profundidade é dada no interior do que pode se colocar de modo mais amplo, o problema, para nós, da articulação do desejo.

Portanto, me faço entender, digo que se Hamlet, aí está o ponto essencial, tem um alcance para nós privilegiado, quero dizer, se Hamlet é o drama maior, ou um dos maiores dramas da tragédia moderna, colocando Fausto do outro lado, não é simplesmente porque há Shakespeare, tão genial quanto o supomos, e tamanha virada na sua vida. Pois bem, evidentemente também, nós podemos dizer que Hamlet é um ponto onde se passou alguma coisa na vida de Shakespeare. Isso se resume talvez a isto, tudo aquilo que nós podemos dizer disso, pois esse algo que aconteceu, nós o sabemos, é a morte de seu pai, e nos contentarmos com isso faz-nos contentar com algumas coisas. E, supomos também que em torno desse evento devem ter havido outras coisas na sua vida, pois a virada, a orientação de sua produção é verdadeiramente manifesta.

Antes não há nada além dessa série de comédias ou esses dramas históricos que são realmente dois gêneros que ele elevou, um e outro, ao seu último grau de beleza, de perfeição, de fluência. Até aí é quase um autor com duas grandes especialidades sobre as quais ele atua com uma maestria, um brio, uma felicidade que no-lo coloca na ordem dos autores de sucesso.

A partir de Hamlet, o céu muda, e tocamos nessas coisas além de todo limite, que não tem mais nada a ver com nenhuma espécie de cânone, que não são mais da mesma ordem. Depois de Hamlet é o King Lear e muitas outras coisas ainda até chegar à Tempest. Nós sentimos aí uma coisa completamente diferente, um drama humano que se desenvolve, um registro totalmente diferente. É, afinal de contas, o Shakespeare jóia da história e do drama humano, que abre uma nova dimensão sobre o homem. Portanto, de fato, aconteceu alguma coisa naquele momento. Mas será que basta estarmos certos em pensar que seja isso? É claro, de certo modo. Mas, observemos assim mesmo que, se Hamlet é a peça que se apresenta no mais como um enigma, só fica mais evidente que toda peça que problematiza nem por isso é uma boa peça. Uma peça bem ruim também pode o ser. E, numa peça ruim, há provavelmente, no caso, um inconsciente tão presente quanto, e até mais presente ainda do que possa haver numa peça boa. Se ficamos comovidos por uma peça de teatro, não é em razão do que ela representa de esforços difíceis, daquilo que sem perceber, um autor aí deixa passar. É em razão, eu o repito, das dimensões do desenvolvimento que ela oferece no lugar a ser pego, para nós, aquilo que, propriamente falando, guarda em nós nossa própria relação com nosso próprio desejo.

E isso nos é oferecido de um modo tão eminente numa peça, que, por certos ângulos, realiza no máximo essas necessidades de dimensão, essa ordem e essa sobreposição de planos que dão seu lugar àquilo que deve aí, em nós, vir ecoar. Isso não é porque Shakespeare está naquele momento tomado num drama pessoal. Se levarmos as coisas a seus últimos limites, esse drama pessoal, acreditamos apreendê-lo e ele se desvencilha. Chegamos até a dizer que era o drama que estava nos Sonnets, as relações com seu protetor e sua amante (vocês sabem que ele se encontrou ao mesmo tempo, duplamente enganado, traído, por seu amigo e por sua amante), chegando-se até a dizer... – ainda que o drama daquele momento tenha provavelmente se passado num outro período mais temperado da vida de Shakespeare, não temos nenhuma certeza sobre essa história, só temos o testemunho dos Sonnets, eles mesmos singularmente elaborados.

Eu creio que se trata de uma outra coisa que não essa. Não é a presença, o ponto por trás de Hamlet, de tudo aquilo que podemos, na ocasião, sonhar que está em causa. É a composição. Sem dúvida, essa composição, o autor conseguiu conduzi-la a esse elevado grau de perfeição que faz de Hamlet alguma coisa que se distingue de todos os pré-Hamlet que pudemos, com nossa filologia, descobrir por uma articulação tão singular, tão excepcional, que aí está justamente aquilo que deve fazer objeto de nossa reflexão. Se Shakespeare foi capaz de fazê-lo até esse grau, é provavelmente em razão de um aprofundamento que é tanto quanto o aprofundamento do trabalho do autor quanto o aprofundamento da experiência vivida de um homem que, seguramente, viveu e em cuja vida foi feliz, da qual tudo nos indica haver sido atravessada por todas as solicitações e todas as paixões. Que há o drama de Shakespeare por trás de Hamlet isso é secundário em relação ao que compõe a estrutura. É essa estrutura que responde ao efeito de Hamlet. E isso ainda mais que o próprio Hamlet, como se expressam metaforicamente os autores. Depois, afinal de contas, é um personagem sobre o qual não é simplesmente em razão de nossa ignorância não conhecermos as profundezas. De fato, é um personagem que é composto por alguma coisa que é o lugar vazio, para situar – pois aí está o importante – nossa ignorância.

Uma ignorância situada é outra coisa que alguma coisa de puramente negativa. Essa ignorância situada, afinal de contas, não é outra coisa senão essa presentificação do inconsciente. Ela dá a Hamlet seu alcance e sua força.

Eu penso ter conseguido comunicar-lhes com mais nuanças, sem descartar nada, sem negar a dimensão propriamente psicológica interessada numa peça como essa, que é uma questão daquilo que chamamos psicanálise aplicada. Sendo totalmente o contrário, no nível onde estamos. É de psicanálise teórica o de que se trata, e em relação à questão teórica que apresenta a adequação da nossa análise a uma obra de arte, toda espécie de questão clínica é uma questão de psicanálise aplicada. Há pessoas que me escutam e que precisarão, sem dúvida, que eu fale sobre isso um pouquinho mais, num certo sentido em que me colocam questões...

Se Hamlet é realmente aquilo que lhes digo, a saber, uma composição, uma estrutura tal que aí o desejo pudesse encontrar seu lugar suficientemente, corretamente, rigorosamente colocado para que todos os desejos, ou mais exatamente, todos os problemas da relação do sujeito ao desejo possam aí se projetar, bastaria, de certa forma, lê-lo. Eu faço, portanto, alusão às pessoas que poderiam me colocar a questão da função do ator. Onde está a função do teatro, da representação?

É claro que não é nem um pouco a mesma coisa ler Hamlet e vê-lo representado. Eu não penso também que isso seja um problema para vocês por muito tempo, e que na perspectiva que é aquela que busco desenvolver diante de vocês no que diz respeito, em suma, à função do inconsciente – a função do inconsciente que definí como discurso do Outro – não podemos ilustrá-la melhor do que na perspectiva que nos dá uma experiência como aquela da relação da audiência com Hamlet. Fica claro que aí o inconsciente se presentifica sob a forma do discurso do Outro, que é um discurso perfeitamente composto. O herói só está aí presente por esse discurso, da mesma forma que o poeta. Morto há muito tempo, afinal de contas, é o seu discurso que ele nos lega.

Mas, é claro, essa dimensão que acrescenta a representação, a saber, os atores que vão atuar esse Hamlet, é estritamente análoga daquilo pelo que nós mesmos estamos interessados no nosso próprio inconsciente. E, se lhes digo que aquilo que constitui nossa relação com o inconsciente é isso pelo que nosso imaginário, quero dizer nossa relação com nosso próprio corpo (ignoro, dizem, a existência do corpo, que tenho uma teoria da análise incorporal, é o que se descobre, pelo menos, ao se ouvir a irradiação daquilo que articulo aqui, a uma certa distância!), o significante, para dizer a palavra, somos nós que fornecemos o material disso (é isso mesmo o que ensino e que passo meu tempo dizendo-lhes), é com nossos próprios membros – o imaginário é isto – que fazemos o alfabeto desse discurso que é inconsciente e, evidentemente, cada um de nós em relações diversas, pois não nos servimos dos mesmos elementos para sermos tomados no inconsciente.

E é o análogo, o ator empresta seus membros, sua presença, não simplesmente como marionete, mas com seu inconsciente de fato bem real, a saber, a relação de seus membros com uma certa história que é a sua. Cada um sabe que se há bons e maus atores, é na medida, creio, em que o inconsciente de um ator é mais ou menos compatível com esse empréstimo de sua marionete. Ou ele se presta ou não, é isso que faz com que um ator tenha mais ou menos talento, gênio, ou até mesmo que seja mais ou menos compatível com certos papéis, porque não? Mesmo aqueles que têm o leque mais amplo, afinal de contas, podem atuar certos papéis melhor do que outros. Em outros termos, é claro, o ator está aí. É na medida da conveniência de algo que, de fato, pode bem ter a relação a mais estreita com seu inconsciente, com aquilo que ele tem para nos representar, que ele dá a isso uma ponta que acrescenta incontestavelmente alguma coisa, mas que está longe de constituir o essencial daquilo que é comunicado, a representação do drama.

Isso, creio, nos escancararia a porta para a psicologia do ator. Evidentemente há leis de compatibilidade geral, a relação do ator com a possibilidade da exibição é alguma coisa que apresenta um problema de psicologia particular ao ator, o problema que pôde ser abordado da relação entre certas texturas psicológicas e o teatro. Alguém escreveu há alguns anos um artigo que dava esperança sobre aquilo que ele chamava A histeria e o teatro. Eu o revi recentemente. Nós teremos talvez a oportunidade de falar a respeito com interesse, senão, sem dúvida, com um certo consentimento.

Fechado esse parêntese, retomemos o fio do nosso propósito. Qual é, portanto, essa estrutura em torno de que se compõe a colocação no lugar que é essencial naquilo que busco lhes fazer entender do efeito de Hamlet? Essa implantação do interior, no interior de que o desejo pode e deve tomar seu lugar.

No primeiro aspecto vamos ver aquilo que é dado comumente no registro analítico como articulação, compreensão daquilo que é Hamlet, como alguma coisa que parece ir nesse sentido.

Será que é para alcançar as temáticas perfeitamente clássicas, ou até mesmo banais, que eu lhes fiz todas essas observações introdutivas? Vocês vão ver que não é nada disso. No entanto, começamos a abordar as coisas por aquilo que nos é costumeiramente apresentado. E não creiam que isso seja tão simples, nem tão unívoco, uma certeza rígida é tudo o que há de mais difícil para se manter para os próprios autores no desenvolvimento de seu pensamento, pois o tempo todo há um tipo de evasão, de oscilação, do qual vocês vão ver alguns exemplos em torno daquilo que vou lhes enunciar.

Numa primeira aproximação, que é aquela à qual todo mundo está de acordo, Hamlet é aquele que não sabe o que quer, aquele que amargamente pára no momento em que ele vê partir as tropas do jovem Fortimbras, que passam, num certo momento, no horizonte da cena, e que é, de repente, abalado pelo fato de que eis pessoas que vão fazer uma grande ação por quase nada, por um pedacinho da Polônia, e que vão sacrificar tudo, sua vida, sendo que ele está aí, que não faz nada, enquanto tem tudo para fazê-lo, “a causa, a vontade, a força e os meios”. Como ele próprio diz: “Eu permaneço sempre a dizer, é a coisa que resta para ser feita”[8].

Eis o problema que se apresenta para cada um: porque Hamlet não age? Porque esse will, esse desejo, essa vontade é alguma coisa que nele parece suspenso, que, se vocês quiserem, alcança aquilo que Sir James Paget escreveu da histérica! “Uns dizem que ele não o quer; ele diz não pode; aquilo de que se trata é que ele não pode querer”[9]. O que nos diz sobre isso a tradição analítica? A tradição analítica diz que tudo repousa nessa ocasião sobre o desejo para a mãe, que esse desejo é recalcado, que é isso a causa, que o herói não saberia avançar na direção da ação que lhe é encomendada, a saber, a vingança contra o homem que é o atual possuidor, ilegítimo, ou a que preço, já que criminal! do objeto materno; e que se ele não pode bater, aquele que é designado para sua punição, é na medida em que ele mesmo, em suma, já teria cometido o crime de que se trata vingar.

É enquanto, dizem-nos, que no pano de fundo, há a lembrança do desejo infantil para a mãe, do desejo edipiano da morte do pai, é nessa medida que Hamlet se encontra, de certa forma, cúmplice do atual possuidor, esse possuidor que é, a seus olhos, um beatus possidens, ele que é cúmplice disso, ele não pode, portanto, atacar esse possuidor sem atacar-se a si próprio. Mas será que é isto que queremos dizer, ou que ele não pode combater a este possuidor sem despertar nele o desejo antigo, isto é, um desejo sentido como repreensível, mecanismo que, no entanto, é mais sensível?

Mas, afinal de contas, será que tudo isso não permite (fascinados diante de um tipo de insondável ligado a um esquema que para nós é cercado de uma espécie de caráter intocável, não dialético), que nós possamos dizer que tudo isto, em suma, se inverte? Eu quero dizer que poderíamos também - se Hamlet se precipitasse de imediato sobre seu sogro -, dizer que ele aí encontra, então, a oportunidade para estancar sua própria culpabilidade, encontrando fora dele o verdadeiro culpado; que, no entanto, ao contrário, para chamar as coisas pelo seu nome, tudo o leva a agir, e vai no mesmo sentido, pois o pai volta do além sob a forma de um fantasma para lhe ordenar este ato de punição, disto não se duvida. O comando do sobre-eu está aí, de certa forma, materializado e provido de todo caráter sagrado, daquele mesmo que volta de além-túmulo com o que lhe foi acrescentado de autoridade, sua grandeza, sua sedução, o fato de ser a vítima, o fato de ter sido realmente, atrozmente, despossuído não somente do objeto de seu amor, mas de sua potência, de seu trono, da vida mesmo, de sua salvação, de sua felicidade eterna.

A isto, e além do mais, viria atuar no mesmo sentido alguma coisa que poderíamos chamar, no caso, “o desejo natural de Hamlet”. Se, de fato, é alguma coisa que ele não pôde sentir, ainda que ele esteja separado dessa mãe, incontestavelmente, o mínimo que podemos dizer, conta para ele que lhe seja fixado à sua mãe – é a coisa mais certa e a mais aparente do papel de Hamlet. Portanto, esse desejo que eu chamo, no caso, “natural”, e não sem intenção, pois no momento em que Jones escreve seu artigo sobre Hamlet, ele ainda está no ponto de ter de defender diante do público essa dimensão do recalque e da censura, e todas as páginas que ele escreve, na ocasião, tendem a dar a essa censura uma origem social.

“É, no entanto, curioso – curiously enough –, diz ele, que as coisas que evidentemente são as mais censuradas pela organização social, sejam os desejos mais naturais”. Na verdade, isto apresenta, de fato, uma questão. Por que, afinal de contas, a sociedade não se organizou para a satisfação desses desejos, os mais naturais, se é realmente da sociedade que surge a dimensão do recalque e da censura? Isto poderia, talvez, nos conduzir um pouco mais adiante, a saber, que é algo de perfeitamente sensível que as coisas das quais nunca parecemos perceber, as necessidades da vida, da vida do grupo, as necessidades sociológicas não são nem um pouco exauridas para explicar esse tipo de interdição de onde surge, nos seres humanos, a dimensão do inconsciente.

Isto basta tão pouco que foi preciso que Freud inventasse um mito original, pré-social, não o esqueçamos, já que ele que funda a sociedade, a saber, Totem e Tabu, para explicar os princípios mesmo do recalque. E o comentário de Jones, na data em que ele o fez, e onde, curiosamente, infelizmente ele a conserva, essa gênese sociológica dos interditos no nível do inconsciente, mui exatamente, a saber, da censura, mui exatamente da origem do édipo, é um erro da parte de Jones. É um erro talvez tão deliberado, apologético, o erro de alguém que quer convencer, que quer conquistar um certo público de psico-sociólogos, não é nem um pouco alguma coisa que não apresente problema.

Mas voltemos ao nosso Hamlet. Nós o vemos, afinal de contas, com duas tendências: a tendência imperativa que é para ele duplamente comandada pela autoridade do pai e o amor que ele lhe dedica, e a segunda de querer defender sua mãe e de guardá-la para si, que devem fazê-lo ir no mesmo sentido, para matar Claudius. Portanto, duas coisas positivas, coisa curiosa, dariam um resultado zero. Eu sei muito bem que isto acontece. Eu havia encontrado um exemplo muito bonito num momento em que tinha acabado de quebrar a perna: um encurtamento mais um outro encurtamento, aquele da outra perna, e não há mais encurtamento! É um exercício muito bom para nós, pois lidamos com coisas desta ordem. Será que é disto o de que se trata? Não, eu não o creio.

Eu creio sim, que nos engajamos numa dialética ilusória, que nos satisfazemos com algo que, afinal de contas, sem dúvida, não se justifica, a saber, que Hamlet está aí, que é preciso explicá-lo. Que nós tocamos, no entanto, algo de essencial, a saber, que há uma relação que torna esse ato difícil, que torna a tarefa repugnante para Hamlet, que o põe de fato num caráter problemático perante sua própria ação, e que isso seja seu desejo, que de certa forma, isso seja o caráter impuro de seu desejo, que atua o papel essencial, mas sem que Hamlet o saiba [à l'insu d’Hamlet]. Que, de certa forma, é enquanto sua ação não é desinteressada, que ela é kantianamente motivada, que Hamlet não pode cumprir o seu ato, creio que, grosso modo, aí está alguma coisa, que de fato, nós podemos dizer, mas que é, na verdade, então, quase acessível diante da investigação psicanalítica, e da qual temos os traços – é o interesse da bibliografia Jones mostrá-la. Alguns, muito antes que Freud tivesse começado a articular [o édipo], em seus escritos de 1880 ou 1890, alguns autores entreviram-no.

No entanto, creio que podemos, analiticamente, formular alguma coisa de mais correto e ir mais longe do que aquilo a que, creio, se reduz o que foi formulado analiticamente sobre esse plano. E, creio que para fazê-lo só devemos seguir realmente o texto da peça, e nos apercebermos do que vai seguir. O que segue consiste em fazer-lhes observar que aquilo com que Hamlet lida, e o tempo todo, aquilo que Hamlet enfrenta é um desejo que deve ser observado, considerado ali onde ele está na peça, isto é, muito diferente, muito longe do seu, que é o desejo não pela sua mãe, mas o desejo de sua mãe. É só o de que se trata. O ponto pivô, aquele sobre o qual seria preciso que, com vocês, eu lesse toda a cena, é aquele do encontro com sua mãe depois da play scene, a cena da peça que ele fez atuar e com a qual ele surpreendeu a consciência do rei, e onde todo mundo, cada vez mais angustiado a propósito de suas intenções para com ele, Hamlet, decidimos fazê-lo chamar a ter uma entrevista com sua mãe.

Ele mesmo, Hamlet, é tudo o que ele deseja. Na oportunidade ele vai, diz ele, revirar o ferro na ferida, ele fala de “adaga[10]” no coração de sua mãe. E acontece essa longa cena, que é uma espécie de ápice do teatro, esse algo a respeito de quê, da última vez, eu lhes dizia que esta leitura está no limite do suportável, quando ele vai adjurar pateticamente sua mãe de tomar consciência do ponto em que ela está – lamento não poder ler toda essa cena, mas façam-no, e como o fazemos na escola, com a caneta na mão. Ele lhe explica: com o que é que isso parece, essa vida! E depois, você não é da primeiríssima juventude, então isso deve se acalmar um pouco em você! São coisas dessa ordem que ele lhe diz nessa língua admirável. São coisas que não cremos poder ouvir de um modo que seja mais penetrante e que responda melhor àquilo que, de fato, Hamlet partiu como um dardo para dizê-lo à sua mãe, a saber, das coisas que são destinadas a lhe abrir o coração, e que ela sente como tais. Isto é, que ela mesma lhe diz: você me abre o coração[11]! E ela geme, literalmente, sob a pressão.

Estamos mais ou menos certos de que Hamlet está com trinta anos. Isto pode se discutir, mas podemos dizer que há na cena do cemitério uma indicação, alguma coisa da qual podemos deduzir que Hamlet tem um pouquinho menos; a mãe tem, pelo menos, quarenta e cinco; se Hamlet tem um pouquinho menos fica claro que, como ele se lembra do pobre Yorick que morreu fazia uns trinta anos e que ele o beijou na boca, podemos dizer que ele tem trinta anos; é importante saber que Hamlet não é um pequeno, jovem homem.

Depois ele compara seu pai com Hyperion, aquele sobre quem “os deuses marcaram todos os seus selos”. E, ao lado, eis essa espécie de dejeto, rei de trapos e de cifras perdidas, um lixo, um cafetão, um rufião esse outro, e é com isso que você se rola no lixo! Só se trata disso, e há lugar de articulá-lo, vocês verão mais adiante, o de que se trata, mas seja como for, trata-se do desejo da mãe, de uma adjuração de Hamlet, que é uma demanda do estilo: retome essa via, domine-se, tome, lhe dizia da última vez, a via dos bons costumes, comece por não se deitar mais com o meu tio[12]. As coisas são ditas assim. E depois cada um sabe, diz ele, que o apetite vem comendo, que esse demônio, o hábito, que nos liga as coisas, às piores, se exerce também no sentido contrário, a saber, aprendendo a se portar melhor, isto lhe será cada vez mais fácil[13].

Nós vemos o quê? A articulação de uma demanda que é feita por Hamlet, manifestamente em nome de alguma coisa que é da ordem, não simplesmente da lei, mas da dignidade, e que é levada com uma força, um vigor, uma crueldade mesmo, sobre o que o mínimo que se possa dizer é que isso desencadeia principalmente a vergonha. Pois chegado aí, sendo que a outra está literalmente palpitante, ao ponto que podemos nos perguntar se a aparição que se produz então do espectro – pois vocês sabem que o espectro reaparece na cena do quarto de dormir – não é alguma coisa que consiste em dizer a Hamlet: Pega, vá! Em frente, continua! Mas também, até um certo ponto, a trazê-lo à ordem de proteger sua mãe contra não-sei-o-quê que seria uma espécie de transbordamento agressivo que é aquele diante do qual a mãe, ela mesma, em um certo momento, tremeu: “Você quer me matar? Até onde você vai?”[14]. Sendo que seu pai acabara de lembrá-lo disso: “insinue-se entre ela e sua alma, que está fletindo”[15].

E, chegado nesse ápice de que se trata, há em Hamlet uma brusca recaída que lhe faz dizer: e depois, afinal de contas, agora que eu lhe disse tudo isso, faça como você quiser, e vá contar tudo isso para o titio Claudius! É, a saber, que você vai se deixar levar um beijinho na bochecha, uma coceirinha na nuca, e uma pequena coceira na barriga, e que tudo vai acabar como de costume, na bagunça! É exatamente o que é dito por Hamlet[16].

Isto é, vemos aí a oscilação entre isso que, no momento da recaída do discurso de Hamlet é alguma coisa que está nas palavras mesmo, a saber, o desaparecimento, o evanescimento de seu apelo em alguma coisa que é o consentimento ao desejo da mãe, as armas rendidas diante de algo que aparece inelutável; é, a saber, que o desejo da mãe retoma aqui, para ele, o valor de alguma coisa que, de qualquer forma e de forma alguma, saberia ser sublevado.

Eu fui ainda mais lentamente do que podia supor. Eu serei forçado a parar as coisas em um ponto que, vocês o verão, vai nos deixar diante do programa de decifragem de Hamlet, talvez ainda por dois dos nossos encontros.




Fig. 14

 

Para concluir hoje, vou tentar lhes mostrar a relação daquilo que estou articulando com o grafo. Aí onde quero lhes levar, é isto que, além do discurso elementar da demanda -  na medida em que ele submete a necessidade do sujeito ao consentimento, ao capricho, ao arbitrário do Outro como tal, e que assim ele estrutura a tensão e a intenção humana no fracionamento significante – se o que se passa além do Outro, se o discurso do sujeito, que é aquele que prossegue enquanto além dessa primeira etapa, dessa primeira relação ao Outro, aquilo de que se trata para ele, de encontrar nesse discurso que o modela, que o estrutura, nesse discurso já estruturado, é de reencontrar no interior disso o que ele quer realmente... pois é a primeira etapa e a etapa fundamental de toda referência do sujeito em relação àquilo que chamamos seu will, sua própria vontade.

Sua própria vontade é primeiro essa coisa, nós o sabemos, nós analistas, a mais problemática, a saber, o que ele deseja realmente. Pois fica claro que além das necessidades da demanda, na medida em que ela fraciona e fratura esse sujeito, o reencontro do desejo no seu caráter ingênuo é alguma coisa que é o problema com o qual constantemente lidamos. A análise nos diz que além dessa relação ao Outro, essa interrogação do sujeito sobre o que ele quer não é simplesmente aquela do gancho interrogativo que está aqui desenhado no segundo plano do grafo, mas que há sobre isso alguma coisa para se reencontrar, a saber, que, como no primeiro nível, há, em algum lugar, instalada, uma cadeia significante que se chama propriamente falando o inconsciente, e que dá já a isso o seu suporte significante, que podemos situar aí em algum lugar, havendo aí inscrito um código que é a relação do sujeito com sua própria demanda. Há já um registro que é instaurado, graças ao que o sujeito pode perceber o quê? Não como se diz, que sua demanda é oral ou anal, ou isto ou aquilo, pois não é disso o de que se trata; ele está numa certa relação privilegiada enquanto sujeito. E é por isso que escrevi aqui, com uma certa forma de demanda, essa linha do além do Outro, onde se apresenta a interrogação do sujeito. É uma linha consciente. Antes que haja tido uma análise e analistas, os seres humanos se colocaram a questão, e se a colocavam sem cessar, podem crer, como no nosso tempo, como desde Freud, de saber onde estava sua verdadeira vontade.

E é por isso que esta linha, nós a traçamos com um traço cheio, um traço pleno. Ela pertence ao sistema da personalidade, chamem-na consciente ou pré-consciente, por enquanto eu não vou entrar em mais detalhes.

Mas, o que é que nos indica aqui o grafo? É que, evidentemente, sobre esta linha, em algum lugar, vai se situar o x que é o desejo; que esse desejo tem uma relação com alguma coisa que deve se situar sobre a linha de retorno, em frente desta linha intencional. É nisto que ele é homólogo à relação do eu [moi] com a imagem. O grafo nos informa que esse desejo, flutuando aí, em algum lugar, mas sempre nesse além do Outro, esse desejo é submetido a uma certa regulação, a uma certa altura, se assim podemos dizer, de fixação – que é determinada. Determinada pelo quê? Por alguma coisa que se desenha assim, a saber, de uma via de retorno do código do inconsciente em direção à mensagem do inconsciente sobre o plano imaginário. Que o circuito pontilhado, dito de outra forma, inconsciente, que começa aqui (1), e que passando no nível da mensagem S (A) (2), vai, no nível do código inconsciente $ à D (3), em frente da demanda, volta na direção do desejo, d (4), daí para o fantasma, S à a (5); que está, em outros termos, essencialmente em relação àquilo que regula sobre esta linha, a altura, a situação do desejo, e numa via que é uma via de retorno em relação ao inconsciente (pois se vocês notarem como é feito o grafo, vocês verão que o traço não tem retorno). É nesse sentido que se produz o circuito da formação do desejo no nível do inconsciente.

O que é que podemos articular a respeito disso, e nos manter nessa cena de Hamlet frente à sua mãe? Essencialmente isto: não há momento em que, de modo mais completo, e que anule mais o sujeito, a fórmula de que o desejo do homem é o desejo do Outro não esteja aí sensível, manifesta, cumprida.

Em outros termos, aquilo de que se trata é de que, na medida em que é ao Outro que o sujeito se dirige, não com sua própria vontade, mas com aquela da qual ele é, nesse momento, o suporte e o representante, a saber, aquela do pai, e também aquela da ordem, e também aquela do pudor, da decência – eu voltarei a esses termos, eles não são dados aí para ser chique; eu já fiz intervir o demônio do pudor e vocês verão qual lugar ele terá no decorrer – e que é na medida em que ele mantém esse discurso diante da mãe, além dela mesma, que ele recai disso no nível estrito desse Outro diante do qual ele só pode se curvar. O traçado, se assim podemos dizer, o movimento dessa cena é mais ou menos esse, que além do Outro a adjuração do sujeito tenta alcançar o nível do código, da lei, e que ele recai, não na direção de um ponto em que algo o detém, onde ele próprio se reencontra com seu próprio desejo – ele não tem mais desejo, Ofélia foi rejeitada, e nós veremos da próxima vez qual é aí a função de Ofélia – mas tudo se passa, se vocês quiserem, para esquematizar, como se essa via de retorno voltasse pura e simplesmente da articulação do Outro, como se ele não pudesse receber outra mensagem senão o significado do Outro, a saber, a resposta da mãe. “Eu sou o que eu sou, comigo não dá para fazer nada, eu sou uma verdadeira genital (no sentido do primeiro volume de A Psicanálise hoje), eu não conheço o luto”.

A refeição dos funerais serve, no dia seguinte, às núpcias: “Economia, economia!”, a reflexão é de Hamlet. Para ela, ela é simplesmente uma vagina aberta. Quando um saiu, o outro chega, é disso o de que se trata. O drama de Hamlet, a articulação de Hamlet, se é o drama do desejo, é, nós o vimos ao longo dessa cena, o drama (porque não dizê-lo, é muito curioso que nos servimos o tempo todo de palavras como “objeto”, mas que a primeira vez em que o encontramos, não o reconheçamos, do início ao fim não se fala de outra coisa!), que há um objeto digno e um objeto indigno: “Senhora, um pouco de limpeza, eu lhe peço. Há uma diferença entre esse deus e esse lixo!”. É disso o de que se trata, e nunca ninguém falou de relação de objeto a respeito de Hamlet. Permanecemos confundidos, só se trata, no entanto, disso! O discurso ao qual fiz alusão há pouco, no que diz respeito à verdadeira ou ao verdadeiro genital, é um discurso coerente, pois vocês poderão ler ali que a característica do genital é que ele tenha o luto leve. Está escrito no primeiro volume de A Psicanálise hoje. É um maravilhoso comentário da dialética de Hamlet.

Ora, não podemos senão ficar impressionados com isso. Eu vou um pouco rápido porque é preciso que lhes dê um apanhado dos horizontes para os quais tendo – que se é bem um problema de luto de que se trata, eis que nos vemos entrar pelo intermediário, e ligado ao problema do luto, o problema do objeto, o que talvez nos permitirá fazer uma articulação a mais àquilo que nos é trazido em Trauer und Melancholie[17]. É, a saber, que se o luto ocorre – e nos é dito que é em razão de uma introjeção do objeto perdido – para que seja introjetado talvez haja uma condição prévia, isto é, que ele seja constituído enquanto objeto, e que, então, a questão da constituição enquanto objeto talvez não seja pura e simplesmente ligada à concepção, às etapas co-instintuais como isso nos é dado.

Mas há algo que, de imediato, nos dá o índice que temos aí, no coração do problema. É aquele algo sobre o qual eu terminei a última sessão, e sobre o que vai se desenrolar todo o decorrer de nossos encontros. É isto: é que o ponto chave, o ponto decisivo, a partir de que Hamlet, se assim podemos dizer, fica mordido – pois de fato, o observamos muito bem, depois de ter longamente hesitado, de repente Hamlet comeu tigre, ele se lança num negócio que se apresenta sob condições inverossímeis. Ele deve matar seu sogro, alguém vem lhe propor manter para esse sogro um tipo de desafio, que vai consistir em esgrimir, sem dúvida com um senhor sobre o qual ele sabe que a menor das coisas para ele é que na hora em que isso se passa esse senhor não lhe quer muito bem. Não é nem mais nem menos senão o irmão de Ofélia que acaba de pôr fim aos seus dias, nitidamente num abalo em que ele não deixa de ser responsável; ele sabe, em todo caso, que esse senhor não gosta dele. Ele, Hamlet, gosta muito desse senhor, e ele lhe diz isto, e nós aí retornaremos, e, no entanto, é com ele que vai cruzar o ferro por conta da pessoa que ele deve, em princípio, massacrar. E, nesse momento ele se revela um verdadeiro assassino, absolutamente sem precedente, ele não deixa nem mesmo o outro tocar uma vez (é uma verdadeira evasão para diante que está aí perfeitamente manifesta) o ponto sobre o qual Hamlet fica mordido, é aquele sobre o qual terminei com o meu pequeno plano do cemitério, e dessas pessoas que brigam no fundo de uma tumba, o que é, no entanto, uma cena engraçada, própria da lavra de Shakespeare, pois nos pré-Hamlet não há traços disso.

O que é que se passa e por que Hamlet foi se meter aí? Por que ele não pôde suportar ver um outro senão ele mesmo apregoar, expor justamente um luto transbordante? As palavras que lhes digo, seria preciso dar-lhes suporte, cada qual com uma leitura de Hamlet, mas é bastante longo para que eu possa fazê-lo. Não há uma só dessas palavras que não seja sustentada por alguma coisa substanciada no texto. Ele o diz: Eu não suportei que ele faça tanto exibicionismo em torno de seu luto[18]. Ele o explica depois, para se desculpar de haver sido tão violento. Isto é, diante daquilo que Laerte fez, de pular no túmulo para abraçar sua irmã, de saltar ele, atrás dele, para abraçar [Ofélia]. É preciso dizer que se faz uma curiosa idéia do que deve se passar no interior; eu a sugeri da última vez, com o meu pequeno quadro imaginário.

É pela via do luto, dito de outra forma, e do luto assumido nessa mesma relação narcísica que há entre o eu e a imagem do outro. Está em função daquilo que lhe representa de repente, num outro, esta relação passional de um sujeito com um objeto que está no fundo de um quadro – a presença de $, que põe diante dele, de repente, um suporte onde esse objeto que, para ele, é rejeitado por causa da confusão de objetos, da mistura de objetos – é na medida em que alguma coisa aí, de repente, o pega, que esse nível pode, de repente, ser restabelecido, que dele, por um curto instante, vai fazer um homem. A saber, alguma coisa que vai fazer dele alguém capaz – por um instante, sem dúvida alguma, mas um instante que basta para que a peça termine – capaz de brigar e capaz de matar.

O que quero lhes dizer não é que Shakespeare, evidentemente, se disse todas essas coisas bonitas! Mas é que, se ele pôs em algum lugar, na articulação de sua peça, alguma coisa de tão singular quanto o personagem de Laerte, para fazer atuar no momento crucial da peça esse papel de exemplo e de suporte para o qual Hamlet se precipita num abraço apaixonado, e de onde ele sai literalmente outro – esse grito acompanhado de comentários que vão tanto no sentido que lhes disse que é preciso lê-los – que é aí em Hamlet que se produz o momento em que ele pode reapreender seu desejo.

O que lhes prova que estamos aí no coração da economia daquilo de que se trata. Evidentemente isso só tem quase um interesse limitado, afinal de contas, e para nos mostrar na direção a que ponto são traçadas todas as avenidas da articulação da peça. E é nessas avenidas que a todo instante para nós nosso interesse é mantido, é o que faz nossa participação no drama de Hamlet. Evidentemente isso não tem senão interesse de chegar aí, porque houve antes quatro atos que precederam essa cena do cemitério. Nesses quatro atos houve outras coisas que vamos rever agora, retornando.

No primeiro plano há o papel da play scene. O que é que é essa representação, o que é que ela quer dizer? Porque será que Shakespeare a concebeu como indispensável? Ela tem mais de um motivo, mais de um pretexto, mas o que nós tentaremos ver é seu pretexto mais profundo.

Em suma, penso hoje e está suficientemente indicado em que sentido da experiência, de articulação da estrutura se apresenta para nós o problema do estudo de Hamlet, a saber, aquilo que nós, quando terminarmos, poderemos guardar para nós de utilizável, de manuseável, de esquemático para nossa própria referência, no que diz respeito ao desejo – qual? - eu lhes direi, o desejo do neurótico a cada instante de sua incidência. Eu lhes mostrarei esse desejo de Hamlet. Nós o dissemos, é o desejo de um histérico. Talvez seja bem verdade. É o desejo de um obsessivo, podemos dizê-lo. É um fato que ele está recheado de sintomas psicastênicos, mesmo severos, mas a questão não é esta.

Na verdade ele é os dois, ele é pura e simplesmente o lugar desse desejo. Hamlet não é um caso clínico. Hamlet, claro, é evidente demais lembrá-lo, não é um ser real, é um drama que permite situar, se vocês quiserem, como uma placa giratória onde se situa um desejo, onde poderemos reencontrar todos os traços do desejo, isto é, orientá-lo, interpretá-lo no sentido daquilo que se passa desconhecido de um sonho para o desejo do histérico, a saber, esse desejo que o histérico é obrigado a se construir. É por isso que direi que o problema de Hamlet está mais próximo do desejo do histérico, porque, de certa forma, o problema de Hamlet é de reencontrar o lugar de seu desejo. Isso parece muito com aquilo que um histérico é capaz de fazer, isto é, de se criar um desejo insatisfeito.

Mas é também verdade que é o desejo do obsessivo, na medida em que o problema do obsessivo é de se suportar sobre um desejo impossível. Não é totalmente a mesma coisa. Os dois são verdadeiros. Vocês verão que faremos revirar, tanto de um lado quanto do outro, a interpretação dos propósitos e dos atos de Hamlet. O que é preciso que vocês consigam captar é alguma coisa mais radical do que o desejo de tal ou qual, que o desejo com o qual vocês alfinetarão um histérico ou um obsessivo.

 

[......] quando ele se dirige ao personagem do histérico ele diz que cada um sabe que um histérico é incapaz de amar. Quando leio coisas assim tenho sempre vontade de dizer ao autor, e você, você é capaz de amar? Ele diz que o histérico vive no irreal, e ele? O médico fala sempre como se estivesse bem calçado em suas botas, as do amor, do desejo, da vontade e tudo que segue disso. É, no entanto, uma posição muito curiosa, e devemos saber, já há um certo tempo, que é uma posição perigosa. É graças a ela que tomamos posições de contra-transferência, graças às quais não entendemos nada do doente com o qual lidamos. É exatamente dessa ordem que são as coisas, e é por isto que é essencial articular, situar onde se coloca o desejo.

 



[1]    JONES, E., op.cit.

 

[2]    LŒNING, Die Hamlet-Trägödie Shakespeare (1893).

 

[3]     WILSON, D., Hamlet (1936). Trad. Fr., Paris 1992, Ed. Du Seuil.

[4] Semelhante.

[5] TRENCH, W. F., Shakespeare’s Hamlet: A new commentary (1913), p. 119, citado por Jones em Hamlet and Œdipus, p. 50. “Nos é difícil, apesar da ajuda de Shakespeare, entender Hamlet; é provável que o próprio poeta o compreendesse mal: é que o próprio Hamlet se encontrava na impossibilidade de compreender-se a si próprio. Mais dotado que os outros homens para ler o coração e os motivos dos outros, é, no entanto, incapaz de ler seus próprios motivos”. [NE: JONES, Ernest: Hamlet e o complexo de édipo, Jorge Zahar Editor, RJ, 1970, p. 51].

 

[6] JONES, E., ibid., p. 51.

 

[7] JONES, E., ibid., p.51.

[8]  Hamlet:       Why yet I live to say, This thing’s to do:

  Sith I have cause, and will, and strength, and means,

                         To do’t..

                                                                                             

Eu nem sei porque vivo e apenas digo

                                               Isso deve ser feito,

                                               Pois não faltam

                                               Razões, vontade e força e os próprios meios

                                               Para fazê-lo.

 

[9] Bis. JONES, E., op. cit., p.53.

[10]         I will speak daggers to her, but use none;”  (III, 2: 376)

            Adagass, só na língua, sem que delas me valha;

[11]         O, Hamlet! thou hast cleft my heart in twain.      

Oh, Hamlet! Tu me partes o coração em dois.

 

[12]  O, throw away the worser part of it,          Jogai fora a metade que não presta,

And live the purer with the other half.               para com a outra metade serdes pura.

Good night; bu go not to my uncle’s bed;          Boa noite. Mas evitai a cama do meu tio;

Assume a virtue, if you have it not.(III, 4: 157) fazei-vos de virtuosa, se não o fordes

 

[13]Refrain to-night;                                                   Abstende-vos por hoje

    and that shall lend a kind of easiness                   que isso há de conferir facilidade

  To the next abstinency: the next more easy” (III, 4: 157)   à próxima abstinência;

 

[14]What wilt thou do? thou wilt not murder me? Help, help, ho! (III, 4: 21)

   “Que pretendes fazer? Não vai querer matar-me? Socorro, socorro”

 

[15]O, step between her and her fighting soul” (III, 4: 113)

    Corre a interpor-te entre ela e a sua alma em luta

 

[16]Not this, by no means, that I bid you do:

Let the bloat king tempt you again to bed;                    

Pinch wanton on your cheek; call you his mouse;

And let him, for a pair of reechy kisses,            

Or padling in your neck with his damn’d fingers,

Make you to ravel all this matter out,               

That I essencially am not in madness,

But mad in craft.(III, 4: 181)                                  

 

 Nada do que vos disse neste instante.

Que outra vez para o leito do rei balofo

Vos conduza e no rosto nos belisque.

Vos chame de ratinha, e que dois beijos infectos.

E carícias com as mãos grossas em vossas costas,

pronto vos induzam a revelar-lhe

que estou bom do juízo,

Mas que finjo a loucura.

 

[17] FREUD, S., Luto e melancolia, SB, vol. XIV, Imago, RJ

[18] Hamlet: “[...] Mais je me suis cru bravé par l’ostentation de sa doleur, et c’est là ce qui a fait monter ma clère à cet excès”.