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Mire veja - o grau zero da escrita?

                                                          

DULCINEA  SANTOS


Dedico a Jucy Barbosa,
com estima e admiração.

 

 

 

Cinqüenta anos do Grande Sertão: Veredas¹... Muitas são as leituras, dentre estas, a que me suscitou idéias para fazer esse texto aqui foi a do nosso Colega Paulo Medeiros, em sua arguta análise em o Divã na rede.

Já se disse que Guimarães Rosa criou um estilo no seu romance Grande Sertão: Veredas... Criou? Ora, claro que não. Estilo não se cria não. Estilo se nasce humano é com ele. Então, perguntamos, o que seria estilo?

Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov², teóricos da análise do discurso, entendem estilo como escolha que todo texto deve operar entre um certo número de disponibilidades contidas na língua. Ora, essa escolha na língua não é seara do sujeito falante quando assume a linguagem numa relação simbólica com o sistema? Não é ela que o constitui? Logo, podemos entender estilo como efeito, efeito da experiência, efeito do vivido. Precisamos ter cuidado para não o confundir com a técnica, tal como adverte Lacan sobre esta em Função e campo da fala e da linguagem³: a técnica reduzida a receitas, suprimindo da experiência qualquer alcance de conhecimento e mesmo qualquer critério de realidade (p.241).

 O estilo é marca na nossa alma e é dela que se origina; resulta de uma aliança: um pacto, o pacto que recebemos com o nome, dom que carregamos a vida inteira... Rege uma escrita autônoma, insubmissa, escrita nos Gerais do Sertão, lugar do sujeito na travessia... Travessia... água de rio que arrasta (G.S., p.177)... Travessia arrastando juntos o corpo e a alma... Riobaldo, personagem rosiano, diz:

 

 Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só do que um se pensa (G.S., p.22).

 

 O Um do Inconsciente? Travessia entre o corpo e a alma... E penso num alemaquém, alemaquém na linguagem... e lembro de novo Riobaldo:

 

 Apre, o que eu ia dizendo, no meio do som de minha voz, era o que o umbigo de minha idéia, aos ligeiros pouquinho, manso me ensinava. E era o traçado (G.S., p.426).

 

Sobre o estilo, Barthes nos diz que as suas referências estão no nível de uma biologia ou de um passado, não de uma História: ele é a “coisa” do escritor, seu esplendor e sua prisão, sua solidão ( p.19)4. Assim entendido, então, estilo não seria justo o que transporta o traço, o traço unário? Pois, conforme sabemos, este não é a marca mínima que possibilita ao humano a dimensão simbólica? Logo, a parte privada do ritual, como o conceitua Barthes? Numa linguagem ainda mais compreensível entre psicanalistas: o estilo não seria a tradução poética da letra que toca a vida humana, com a primeira entrada no mundo da falta, falta que anuncia o desejo, pois palavra não se diz dela que é morte da coisa, não é mesmo? Não é desejo no nome? Sendo assim, então, estilo não seria o que traz a letra, a letra além do simbólico? Na escrita, grau zero da escrita, não seria o lugar onde se permitem os vôos e revôos dos tempos? Então, estilo é a forma da letra, que emerge na singularidade dos gestos, na singularidade do discurso.

Mas, e então, como vamos ver nosso Guimarães Rosa aí no Grande Sertão: Veredas? Como sua escrita o conduz pelas veredas do Grande Sertão? Mire veja: este, o lugar da escrita rosiana. É aí que vamos encontrar Riobaldo como locutor-ouvinte, privilegiando o ouvido seus ouvidos na escuta silente de um interlocutor: o locutor virtual... Riobaldo enuncia:

 

Mirei e vi: o que desde de antes me invocava (G.S., .p.377).

 

Mire veja: escrita rosiana, veredas rosianas...

 

Trago aqui, como objeto de estudo, a análise estrutural dos personagens do Grande Sertão, no campo do Discurso, com questões remetidas à Psicanálise, em sua maioria, em forma de pergunta, objetivando uma articulação sistêmica nessa área do Saber; visando a tal fim, distribuí em partes os temas aqui tratados, assinalando os seminários lacanianos que lhes correspondem.  Nesse contexto, abordarei o sistema onomástico desse texto rosiano, fazendo uma análise sêmica dos nomes dos personagens, fundamentalmente, aí presentes; veremos que tais nomes desempenham, nesse espaço romanesco do Grande Sertão, função importante: marcam o lugar ocupado pelo sujeito no lugar da enunciação –sujeito da fala, cuja travessia se dá no movimento arbitrário pelos Gerais, que tem como signo o Sertão... Sertão... Grande Sertão: Veredas - o espaço da consagração rosiana. Sertão, feliz metáfora rosiana para o Inconsciente.  Riobaldo conta como nele fez sua travessia:

 

Remei vida solta. Sertão: estes seus vazios (G.S.., p.27)... / o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem. Mas, aonde lá, era o sertão churro, o próprio, mesmo (G.S., p.289).

 

Tal nominação consiste num código hermenêutico, composto pelos enigmas que justificam o título do romance rosiano, Grande Sertão: Veredas. Por aí, nesses lugares, veremos o humano emergir ao acaso, no acaso do verbo, acaso verbal, o acaso assinalando o humano marcado em Nome... Eis alguns dos topônimos:

 

Rio Carinhanha- este é preto, o Paracatu é moreno, o  Urucuia – este é belo, paz das águas, É vida! (G.S., p.24), o Chapadão do Urucuia – este é o lugar aonde tanto boi berra (G.S., p.27), o Liso do Sussuarão – este aí, o demo, é o mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos (G.S.p.29).

 

 

  1. Análise estrutural dos apodos

 

a)      Tatarana

 

O nome Tatarana carrega uma mensagem anagramática. Tatarana remete ao período em que Riobaldo – sem nada entender - andava atarantado, estonteado, aturdido pelos sertões, assim, sem aceitar comando, chefia, tal como expressa neste dito:

 

Homem anta como anta: viver vida. Anta é o bicho mais boçal... e eu, soberbo exato, de minha vitória! (G.S..,p.423)./ Sei quem é chefe? Só o gatilho de arma-de-fogo e os ponteiros do relógio.

 

Assim Riobaldo significa seu mundo aí; assim ele diz:

 

            Sou de ser e executar, não me ajusto de produzir ordens... (G.S., p.64)

 

 Esse é seu processo de identificação, de subjetivação, em que está mergulhado. Tatarana não é lagarta-de-fogo que só queima, queima sem matar? Esse efeito de sentido que memória discursiva arrasta? O nome Tatarana, palavra-valise, é composto de atar+anta, o que, para Riobaldo, significa, como o professa, destino preso, atado à anta. Tatarana, como narra o personagem, anda montado no cavalo Selorico (Selo+rico) - meio sendeiro e historiento, como diz ele; Padrim Selorico assim o batiza (p.287). Frustração? Desejo aí alienado? Tal nominação, no campo do Discurso, é indicativa de estabilização. Aí, como podemos ver, há uma relação parafrástica, uma relação de equivalência, ou seja, do retorno aos mesmos espaços do dizer (p.36, Orlandi)7; tal relação é constituída por  diferentes formulações do dizer sedimentado (idem, ibidem). Ilusão, como a explicita Eni Orlandi, de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes (p.35), conforme a fala do personagem indica. Cruzamento do Imaginário com o Simbólico?8 Inibição... Sentido...

 

b)      Urutu Branco

 

Mas Riobaldo Urutu Branco este se assume como rei – o chefe dos jagunços – assim construindo esse nome... Esse é motivo que também o leva a trocar o nome de seu cavalo; como conta, o cavalo que monta mesmo é o cavalo Siruiz - graúdo, farto e manteúdo... (p.326), e assim, como diz, é que anda:

 

            Só eu mesmo, meu silêncio, cantava (p.412).

 

Na encruzilhada, Veredas Mortas, o sumo tenenteréptil venenoso com cruz na cabeça matando o ódio, dominando o medo, daí correndo pelos Gerais:

 

Nasci para ser. Esbarrando aquele momento, era eu, sobre vez, por todos, eu enorme, que era, o que mais alto se realçava. E conheci: ofício de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter medo nenhum. Não tive! Não tivesse, e tudo se desmanchava delicado para distante de mim, pelo meu vencer: ilha em águas claras.... Conheci. Enchi minha história. Até que, nisso, alguém se rio de mim, como que escutei. O que era riso escondido, tão exato em mim, como o meu mesmo, atabafado. Donde desconfiei. Não pensei no que não queria pensar: e certifiquei que isso era idéia falsa próxima; e então, eu ia denunciar nome, dar a cita: ... Satanás! Sujo!... e dele dissesse somente – S... – Sertão.... Sertão.... (pp.447-448).

 

            Esse fonema aí, sibilante - /s/ - não representa apenas o som físico, objeto da Fonética; ele representa a possibilidade de se escapar do sentido, da metalinguagem, uma maneira de permitir que Algo fale, que se diga disto: Sertão... Lacan, no seminário ...Ou Pior7, explica como se pode fazer isto: basta fazer bascular a letra que começa a palavra “pior”, isso faz “dizer”; logo adiante, acrescenta: ao esvaziar, portanto, esse verbo, faço dele argumento, ou seja, alguma substância; isso não é “dizer”, é “dizer disso”  (cap.1). Ou seja, é na escuta do som - como algo que determina o sentido do sujeito na historicidade dos acontecimentos - que a Verdade se produz.

É como Urutu Branco que Riobaldo vai romper com um processo de significações, ocupando o lugar do deslocamento - a polissemia - lugar da ressignificação, lugar do equívoco, aí onde nova combinatória é trazida no jogo entre a paráfrase e a polissemia, entre o já-dito e o a se dizer, entre o mesmo e o diferente (p.36)6, no enodamento do Simbólico com o Real8...  Se bem escutarmos a camada sonora desse nome composto e quisermos descobrir sua motivação fônica, é preciso ver na história de Riobaldo a marca dos vazios do Sertão, que é exatamente o que ela conduz na imitação feita pelos fonemas. No apodo Urutu-Branco podemos observar o seguinte: veremos que, seguido do fonema fechado – escuro, profundo – presente na vogal /u/, que se repete no nome Urutu, irrompe, na articulação do nome seguinte, Branco, forte bramido, efeito da cadeia sonora que consta na composição do nome, pois a união daquele som fechado com o grupo consonantal /br/, seguido do dígrafo vocálico /an/, fonema médio, nasal, articula-se em movimento crescente, o que resulta no movimento do básculo fechado/aberto presente na cadeia sonora deste nome composto: Urutu Branco. Alethéia? Lugar do velamento-desvelamento?* [N.R.Há um artigo meu, “Do título ‘...Ou Pior’”, publicado nos Anais da IX Jornada Freud Lacaniana, 2003, que trata desse tema.] É o que sugerem... Esse movimento afeta o sujeito e o sentido na sua relação com a história... Passagem do Real? Do sentido ao não-sentido? Riobaldo conta:

 

 pois, quem era que ordenava, se prazia e mandava? Eu, senhor, eu: por meu renome, o Urutu-Branco... (G.S., p.335).

 

Mas explicava:

 

Chefe não era para arrecadar vantagens, mas para emendar o defeituoso G.S.,p.373).

 

Sintoma... Equívoco... Efeito de sentido...

 

Riobaldo lembra:

 

Fui o chefe Urutu-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o jagunço Riobaldo (p.412).

 

Lembramos:

 

Tatarana... Urutu Branco... R.S.I. lacaniano.

 

Na nominação, a razão rosa- riobaldiana:

 

O que é pra ser – são as palavras! (G.S., p.39).

 

            2. Análise estrutural do nome próprio

 

Guimarães Rosa inicia o discurso romanesco com a palavra, aparentemente enigmática, Nonada, apresentando de imediato a enunciação do sujeito:

 

            Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja (G.S., p.9)

 

            Desse modo, o personagem Riobaldo começa narrando a um outro personagem a sua história, e esse endereçamento se dá por meio de um pronome de tratamento - senhor: o pronome no lugar do nome. Nonada pode ser entendido aqui com o significado seguinte: escrever no nada, e escrever no nada significa escrever num lugar vazio onde as funções simbólicas substituem as figuras, as imagens que representam as pessoas, os indivíduos, aí onde elas são eludidas para dar lugar ao sujeito, o sujeito aí se constituindo em sua interpelação; a função marcada pelo texto então não é a do simples relato, mas a da formação discursiva, como explica Orlandi (p.  ), em que ele na sua interpelação pela ideologia para produzir o dizer vai ser, paradoxalmente, por ela mesma interpelado.

 Veremos então que cada nome dos personagens, tal como ocorre com os topônimos, indica uma função específica no espaço da enunciação; por meio deles, podemos situar o locutor – Riobaldo - na posição invertida do ouvinte, narrando/escutando, à procura de que algo enuncie a sua história como Verdade. Aí ele se endereçará a um lugar desconcertantemente vazio em movimento - movimento riobaldiano - contingente, casual, nas suas andanças sob o signo Sertão...

 

a) Compadre meu Quelemém e o senhor.

 

O compadre meu Quelemém é corruptela do nome Clemente – função que exerce como par de oposto em relação ao outro personagem do romance:  o amigo estranho tratado por senhor. Baldo, inútil, é o tipo de saber que o compadre meu Quelemém oferece a Riobaldo, um saber que não contém a Verdade do sujeito; esse é um tipo de saber que não franqueia a via onde o sujeito habita: a via inconsciente (cap.I)7. Esse tipo de saber não leva Riobaldo a reconhecer-se em sua história, em sua fala, logo, a ele não interessa. O saber que o compadre meu Quelemém oferece é o saber próprio ao discurso no qual o universo se encontra sob signos fechados, numa relação imutável entre seu significante e significado, assim trazendo a significação já dada; esse é, pois, o discurso do pequeno mundo familiar do compadre meu Quelemém que assegura: isso é certo, isso é errado. Assim é o compadre meu Quelemém, conforme conta Riobaldo: 

 

Compadre, clemente – Compadre meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis (p.10). / Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio – essa é que é a regra do rei! (p.20).

 

 Assim sendo, o compadre meu Quelemém representa o personagem que ocupa o lugar do sujeito representante da lógica clássica. Aquele sujeito que se permite julgar, afirmando sempre que o que é falso não pode ser tido como uma referência de Verdade... Esse tipo de saber não interessa a Riobaldo, pois este assim acha: Tudo é e não é... (p.12); e esse é precisamente o motivo pelo qual elege o amigo estranho para que seu ouvido seus ouvidos ouça suas perguntas que respostas já tinham, então assim apela:

 

Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente (p.79) / Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino? Teima, eu sei. Deu de. O senhor não me responda (p.86).

 

Esse é então o motivo pelo qual assim Riobaldo o adverte:

 

Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem...(p.27) / o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só saiba: o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade – feito pessoa! (p.42).

 

Como diz Lacan – o qual curiosamente traz no seu nome o anagrama canal, via que elejo aqui para fazer a ponte com a Literatura  -,  o lugar vazio é o lugar hiante no qual o Nada [nos interroga] sobre nossa existência (cap.VI),  

 

E Riobaldo escolhe, então, a melhor forma de contar sua história:

 

Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe (G.S., p.78).

 

Pois, como diz:

 

Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa (G.S., p.78.

 

Associação livre... acaso das palavras que nada mais fazem senão produzir laços de efeitos transportando a falta, os vazios do Sertão...

 

Em relação a esse tipo de discurso, Lacan assim introduz os sofistas:

 

É o limite – por que não dizê-lo – da crítica que o sofista, a todo aquele que enuncia o que é sempre posto como verdade, que o sofista lhe demonstra que ele não sabe o que diz. Está mesmo ali a origem de toda dialética (cap.III)7.

 

            Com efeito, iremos encontrar os sofistas apontando o falso no verdadeiro, mesmo sem que essa Verdade a sustentem. Ao citá-los aí, Lacan faz justiça a esses mestres do saber, pois eles não foram bem vistos ao longo da história das idéias... Foram eles, os sofistas, quem primeiro apontou, com o recurso da Retórica, para tal campo da linguagem: a dialética... os acontecimentos incorporais...

 

            b) Riobaldo

 

O nome do personagem Riobaldo é um nome composto pelos elementos Rio+baldo: baldo, linguagem popular, remete a baldio = baldo + io = Adj. 1. inculto, agreste; S. m. 3. terreno por cultivar9. Fazendo aqui uma leitura no campo da Lógica – Lógica lacaniana – vemos que este elemento – baldo – funciona, no campo da linguagem, como operador do lugar vazio, onde, como ensina Lacan, o sujeito colocará o mesmo significante em todos os lugares reservados vazios (cap.I)7. Diz-nos ele: O lugar vazio consiste na única maneira de dizer alguma coisa com a ajuda da linguagem (cap.I)7. Diz-nos, ainda, que esse é o único lugar que possibilita a Coisa de que se trata ela mesma enunciar (cap.I)7. Essa é precisamente a razão - nesse enfoque psicanalítico - que aqui opera a articulação deste segundo elemento do nome composto  baldo - com o primeiro – Rio -, como veremos adiante. Lembremo-nos da intermitência dos rios do Sertão... A fala do personagem Riobaldo aponta a necessidade dessa articulação:

 

            Para mim, o indicado do dito, não era sempre completa verdade G.S., p.116).

 

 

 

Na toponímia e na vegetação podemos observar, sob o viés psicanalítico, o processo trazido metaforicamente pelo escritor Guimarães Rosa para significar o sistema linguageiro. A função significante vai ser exercida pelo buriti, o elemento significante que representa o sujeito, no espaço romanesco, conforme a fala do personagem Riobaldo:

 

O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mansas replantam; daí o buritizal, de um lado e de outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo G.S., p. 28)./ O que é que buriti diz: É: - Eu sei e não sei... Que é que o boi diz: - me ensina o que eu sabia.... Bobéia de todos. Só que esta coisa o senhor guarde: meia-légua dali, um outro corgo-vereda, parado, sua água sem cor por sobre de barro preto. Essas veredas eram duas, uma perto da outra; e logo depois, alargadas, formavam um tristonho brejão, tão fechado de moitas de plantas, tão apodrecido em escuro: marimbus que não davam salvação. Elas tinham um nome conjunto – que eram as Veredas Mortas. (...) Uma encruzilhada, e pois! (G.S., pp.303/4)./ O coqueiro se mesmando (G.R., p. ).

 

                Buritis, cadeia significante: S1 ® S2... Veredas Mortas: dimensão simbólica da linguagem...

 

 

É o termo Rio, primeiro elemento do composto, que exercerá a função da Verdade como um meio-dizer, fazendo básculo com o lugar vazio e seus significantes aí postos. pois, como explica Lacan, se trata, em suma, de que a outra metade diga pior7. Esse, como poderemos averiguar, é um lugar que sustenta a contradição como referência de verdade. O Rio é o lugar que sustenta o movimentodas correntes contrárias e convergentes, pois não? É o lugar onde ocorre o movimento dialético... Como diz Riobaldo:

 

O rio não quer chegar a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo...( G.S., p.) /O Urucuia não é o meio do mundo? (G.S., p. )O meu Urucuia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital (G.S., p.235).

 

Logo, Rio, do nome Riobaldo, refere ao lugar do Saber onde a Verdade é um possível; lugar da possibilidade de afirmação da existência; conforme Lacan: se a existência for afirmada, o Não-Todo se produz (cap.I)7.  Como entende Riobaldo:

 

O senhor acreditando que alguma coisa humana é de todo impossível, então é que o senhor não pode ser chefe de jagunço, nem na menor metade só de diazinho, nem somente nos vastos imaginados (p.369)./ Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar (G.S., p.260).

 

 

b) Otacília e Diadorim

 

Otacília e Diadorim também desempenham uma função de opostos; assim, representam, respectivamente, uma, a estrutura ideológica dada pelo imaginário da cultura e a outra, o lugar daquela que se inscreve como Outro - o Outro do lugar simbólico - o entre de que se trataria na relação sexual, mas deslocado, como nos explica Lacan, no ...Ou Pior (cap. VI)7.

 

a)      Otacília

 

Otacília é a mulher idealizada, encontrada nas identificações que a linguagem determina pela via fixa, imutável, dos significados dados... Essa mulher, definida na dimensão imaginária da linguagem, é aquela que dá consistência à sua fala, que a ele revela sentido; resulta do óbvio produzido pela ideologia, ou seja:

 

Corresponde a processos de identificação regidos pelo imaginário e esvaziados de sua historicidade. Processo em que se perde a relação com o real, ficando-se só com (nas) imagens. No entanto há sempre o incompleto, o possível pela interpretação outra. Deslize, deriva, trabalho da metáfora (Orlandi, p.55).6.

 

Como relação dual, na intersubjetividade, a partir da presença desse outro, é que Riobaldo vê Otacília em sua vida:

 

uma mulher para viver o imaginário da paixão: uma mulher ministrada, da vaca e do leite (G.S., p.240)./ Mas, Otacília, era como se para mim ela estivesse no camarim do Santíssimo (G.S., 236).

 

 

            b) Diadorim

 

 Diadorim, ao contrário, é a mulher que desempenha um papel outro, aí onde Riobaldo desliza... Diadorim é Reinaldo, Reinado... um tesouro... O Outro? Diadorim é o que aponta para o não-sentido: Admiração...

 

Para ele olhei, o tanto, o tanto, até anoitecer em meus olhos. Eu não era eu. Respirei os pesos (G.S., 246)./ Eu era dois diversos? (G.S., p.369)/ O Reinaldo – que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe da minha vida (G.S., p.242).

 

 Ora, como nos diz Lacan, O Outro não é o par sexual? (cap. VI)7; logo, não é Outro em relação a Outro, assim então uma conexão entre dois diferentes lugares, o do sujeito e o do outro significante? Aí onde o entre a um implica o outro na perda assim: De Um Outro ao Outro?...** Diadorim é A mulher, a mulher, como diz ele, que dessa figura do Outro nos dá a ilustração a nosso alcance, por ser, como o escreveu um poeta, “entre centro e ausência”* (cap. VI)7. Ilustração, uma escritura lógica... Diadorim não é aquela mulher da pura existência, do ao-menos-um, da barra - Não-Toda aberta à função fálica? Diadorim não é o feminino, gozo-ausência? Não é o lugar do dessemelhante- ausência - no encontro, invertido, com a identificação primordialcentro?Alteridade... Não-Todo... Como explica Aurélio Sousa10, ao tratar da noção de estrutura no ensino de Lacan:

 

__________

N.R. Aqui remeto à leitura e estudo desse seminário de Lacan.

 

 

Desde que cada elemento só se define a partir de sua relação com um outro, explicita-se não só um binarismo como essa condição de que cada um deles tem sua identidade fora de si mesmo (p.27).

 

Diadorim é, compreendendo Lacan, estatuto do Outro feito de não ser universal... (Cap VI)7. Diadorim, A mulher, é par sexual que se Outrando, o que é o mesmo, Outropondo-se, colocando-se entre, é separação, distância. Aurélio Sousa sobre a separação nos diz que a separação e a alienação são duas operações linguageiras, e esclarece:

 

Se na “alienação” o sujeito é “forçado” a escolher a linguagem como sua casa, através dessa segunda operação – a separação - , ele realiza uma intervenção “ativa”, atacando a própria rede de significantes para poder separar-se dela. Nessa operação de separação, ele expulsa, coloca para “fora” desse conjunto inicial um determinado significante que passa a representá-lo (Ib., p.43).

           

Uma estilística da existência?... *

 

[*N.R. Encontramos esse tema em Por uma estilística da existência, de Joel Birman.]

 

 No romance rosiano, essa separação é experimentada no nojo que Riobaldo sente face à Diadorim:

 

De Diadorim eu devia de conservar um nojo.  De mim, ou dele?As prisões que estã refincadas no vago, na gente (p.240). / O Amor de alguém, à gente, muito forte, espanta e rebate, como coisa sempre inesperada (p.335).

 

Conservar um nojo... Manter-se em distância... Espanto... Admiração... Lugar de estranhamento é estar entre o desejo e a frustração, entre a demanda e a renúncia...

 

Como que eu estava separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por profundo valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi (p.374).

 

É assim que nos deparamos com Diadorim, aí exercendo seu fantástico papel ao longo de toda a trama (e aqui ressalto a alegria que senti ao descobrir o anagrama que há em seu nome, confirmando a direção do meu pensamento): Diadorim, com todas as letras, quer dizer Admirado; logo, sua função operatória consiste na Admiração - separação. Diadorim, pois, é duplo de Riobaldo, Riobaldo em Espanto, em Admiração... Algo ultrapassando o que está presente, manifesto. Numa forma poética, barthesiana: Diadorim representa o Amor que nasce sem poder ser nomeado porque é um impossível... Traço... Diadorim nada revela, apenas deixa passar algo tenebroso... grau zero da escrita... Todos aqueles momentos de ternura, de ciúme, de zelo que há entre Riobaldo e Diadorim são apenas expectativas que remetem para o vazio; logo, o modo de escrever Nonada... Ou seja: Nada é um lugar onde não habita sentidos... Não é possível escrever tropos... apenas denotativamente escrever, conforme Barthes... Nonada... Nada... Nada... - assim como define Heidegger: A Coisa é. Caso contrário, paradoxalmente, como explica Barthes: implica preencher imediatamente o nada, em desmenti-lo (p.103).  Assim, vemos que este Nada é colhido no entre, tendo A mulher como ilustração, ou seja, articulação lógica que aponta para o Real: Não-Todo. Aurélio Sousa, aludindo ao fato de estar Lacan às voltas com o Imaginário, afirma que não lhe passou despercebido a necessidade de uma referência “terceira”, como uma condição que viesse assegurar a presença da função simbólica (Ib., p.29); então afirma:

 

[Lacan] Rompia com a condição de um “sujeito recíproco” que se manifestaria nesse tipo de relação imaginária. Assim, deveria existir “pelo menos um”, “ao menos um” que pudesse impedir que a relação dual se realizasse como uma condição de intersubjetividade”. [Aí acrescenta] Se, num primeiro tempo, o sujeito não se distingue da imagem que o aliena, em seguida, haveria um segundo tempo “de identificação ao outro”, que se realizaria num lugar da imagem. Por fim, um terceiro tempo, quando ocorre uma identificação ao “eu” [Je] e não mais ao eu [moi] (Ib., p.29).

 

            Esta é a demanda de Riobaldo: o Outro do significante: lugar do Não-Todo na alteridade, o impossível da linguagem. A Verdade aí emerge de forma invertida: Riobaldo odeia o pai... dirigindo-se ao Grande Outro, representado por Diadorim, a verdade desse enunciado é-lhe suspensa: Diadorim ama o pai: esse é o testemunho, o lugar da enunciação do Inconsciente... Troca simbólica: um eu fala a um tu que tem um ele como destinatário... destinatário impossível... ab origine... Assim como diz então A. Sousa: O Outro é a condição necessária e lógica para todo ato de fala (Ib., p.3) Não será essa então a ocasião propícia em que Riobaldo pergunta:

 

            O diabo existe e não existe? (p.11)

 

Ou o que é o mesmo:

 

                        A Mulher existe e não existe?

 

 Diadorim, o par heterogêneo de Riobaldo, tem, com este, destino preso (p.201): fazendo par com o Outro na mesma historicização dos acontecimentos - em busca do pai. Diadorim segue Joca Ramiro, seu pai, Sertão adentro, cumprindo destino: o pai destinara aquele varão para assumir comando... Ramiro, cujo anagrama é Arrimo, ou seja, escora, apoio... É apoio de Riobaldo em nome do pai, pois lhe falta o próprio do nome, este lhe fora desautorizado:

 

Antes isto, que sei, para se ter ódio da vida: que força a gente a ser filho-pequeno de estranhos... (G.S., p.249)./ O ódio – é a gente se lembrar do que não deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da gente (G.S., p.273).

 

Perguntamos: -E o medo? Riobaldo explica:

 

Tem diversas intenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia...  (G.S., p. 118).

 

 Diadorim, ausência... Riobaldo, centro...  Angústia...

 

O pássaro que se separa do outro, vai virando adeus o tempo todo (G.S., 335).

 

Não há relação...

           

Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio é bravo? É, toda a vida, de longe a longe, rolando essas braças águas, de outra parte, de outra parte, de fugida, no sertão. E uma vez ele mesmo tinha falado: -“Nós dois, Riobaldo, a gente, você e eu... Por que é que separação é dever tão forte?...” Aquilo de chumbo era. Mas Diadorim pensava em amor, mas Diadorim sentia ódio. Um nome rodeante: Joca Ramiro – José Otávio Ramiro Bettancoutrt Marins, o Chefe, o pai dele? Um mandado de ódio. No que eu sabia. Não venci as ácidas picuinhas, no relembrar:

-Aquele, hora destas, deve de andar lá por entre o Urucuia e o Pardo... O Hermógenes....” (G.S., p.324).

 

O Hermógenes... Sim... Ouvimos... /morg/ - o Severo-Mor... (p.321) Esse sim, o mensageiro... O mensageiro conduzindo ao logos analogante a que eles, Riobaldo e Diadorim, analoga: o nome do pai... O Um do logos analogante que analoga o dessemelhante à identificação primordial... 

 

Era um nome. Por cima de mim e dele, Joca Ramiro. Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta (G.S.,p.115)./ Do demo? Não gloso./ Quem muito se evita, se convive. (G.S., p.9)/Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem (G.S.p.11). O senhor sabe? Diadorim me veio, de meu não-saber e querer. Diadorim – eu adivinhava (G.S., p.236)./ O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.... (G.S., p.374).

 

E agora, para classificar a escrita desse grande romance, perguntamos:

 

 Afinal, Diadorim existia, existia? Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins esta sim existia, mas, afinal, como descobre Riobaldo:

 

            O Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu (236).

 

Enfim, essa escrita rosiana se mantém no grau zero: ela se sustenta o tempo todo no registro da fala onde apenas ocorre o movimento dialético riobaldiano, trazido pelos signos vazios do Sertão... Aí, como vimos, as palavras têm uma duração: o tempo da gestação feita no acaso... o acaso das palavras... É assim que Riobaldo narra: sem começo... Nonada... sem fim...

 

Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a pedra de topázio para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, por mimo; e hoje ela se possui é em mão de minha mulher! (p.49)

 

Ou seja:

 

Um homem é um homem, no que não vê e no que consome. Ah, não. Otacília, eu não merecia. Diadorim era um impossível. Demiti de tudo (p.371)./E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:

“ Meu amor!” ( 454).

 

 

 

 

REFERÊNCIA

 

1.      João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas. 5a ed., SP: José Olympio, 1982.

2.      Oswald Ducrot, Tzvetan Todorov. Dicionário Enciclopédico das      

     Ciências da Linguagem, SP: Ed. Perspectiva, 1972. 

3.      Jacques Lacan. Escritos. RJ: Jorge Zahar Ed., 1988.

4.      Roland Barthes. O Grau Zero da Escrita. SP: Edições 70.

5.      ____________. Novos Ensaios Críticos seguidos de O Grau Zero da Escritura. SP: Ed. Cultrix, 1993.

6.      Eni P. Orlandi. Análise de Discurso. SP: Pontes, 1942.

7.      Jacques Lacan. Seminário XIX. 1971-1972. Documento interno do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise. Tradução Paulo Roberto Medeiros, revisão Maria Adelaide Câmara.

8.      J. Lacan. R.S.I. O Seminário. 194/1975.

9.      Dicionário Aurélio.

10.  Aurélio Sousa. Os Discursos na Psicanálise. RJ: Companhia de Freud, 2003.

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X Jornada de Estudos do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise

Recife, 27 de maio de 2006

 

 


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