Página da Biblioteca  Sigmund  Freud

                                  

 

                                                           ...Ou Pior e Paulo

 

 

 DULCINEA SANTOS

 

            Quatro anos de leitura e estudos em grupo. Começamos com um número quantitativamente expressivo, depois uma tétrada vingou: Dirce Valença, Maria Adelaide Câmara, Zélia Alves, Dulcinea Santos (eu) e Paulo Medeiros, o mais um. É claro que aí podemos pensar no fato de que a soma não faz a unidade: sobramos qualitativamente obsessivos. Cada um de nós, em cada sexta-feira, entretecidos nos bem-dizeres de Lacan, e por Paula, nossa noumen-gourmet, a transgredirmos as regras da boa-forma... Assim, alegremente enveredando todos não pelo pior, não o adjetivo, é claro!, mas pelo ...Ou Pior, assim, adverbialmente bom para fazer argumento: um excelente organon para a análise da Lógica lacaniana, e ficará evidente mais adiante por quê.

            Quatro anos de leitura e estudos. Sem pressa. -E para que pressa? costumava perguntar Paulo. Primeiro, esse grupo é – sim, é, porque continua, a sementeira há lançada, inscrita - , é um grupo de tradução: cada palavra com seu vago, o vago das palavras, como no dizer de Rosa, tão apreciado pelo nosso Paulo, o vago das palavras pedindo-nos vagar: - Como escrever Outroposer? Outro-pôr-se? Outropor-se? E aí lembrando o Outrar-se do poeta português Fernando Pessoa com seus heterônimos, no nada a ver com o Outroposer lacaniano. E, nesse entrepor-se, daí resvalando para o termo homoizune: - Como o traduzir numa forma mais fidedignamente compreensível, conforme o ensino de Lacan? E aí a questão teórica sendo abraçada: entre centro e ausência, eis a figura da mulher...

Foi assim, claro, queridos amigos da Psicanálise, que o tempo foi-se esvaindo, no império dos signos. Lembra-me a alegria de Paulo, feliz, rindo de puro contentamento, quando nós nos aproximávamos de alguma idéia que supúnhamos bem traduzir o que dissera Lacan neste seminário ...Ou Pior. O riso moldado: cabeça jogada para trás, queixo proeminente para cima e a risada estourando em virtuose movimento – num gutural continuum, em crescendo e largo rá-rá-rá. Era o encanto da pomba-gira, tal, uma das vezes, ele proferira, assim lembrando a Colega Dirce.

            A atenção que Paulo dava, quando tentávamos articular alguma coisa trazida por Lacan, indicava seu modesto interesse, na escuta reverente, sempre tentando apreender alguma coisa a mais que pudesse auxiliar na compreensão. Às vezes, contrariado, reclamava quando fazíamos o que chamava essas conversas paralelas, e a mim, algumas vezes, diretamente, num modo afetuoso, chamando-me lebrinha saltitante, também contrariado com a minha pressa em querer dizer as coisas. Mas perguntemos, de novo, aqui: - Por que o lento, vagaroso, movimento mesmo?

            Ora, é neste seminário ...Ou Pior que Lacan aborda a questão, por excelência, do Um, numa apresentação axiomática: Il y a de l’Un, Y A D’L’Un, Y en a, Há do Um, HÁDUM, Há, ou seja, na báscula parmenidiana: o Um é, o Um não é. Esse tema, sabemos, constitui um dos mais difíceis pontos da filosofia platônica. Com esta questão – Há do Um –, temos a dimensão do universo da linguagem, aquela pela qual cada um de nós se constitui sujeito, aquela por meio da qual nós, humanos, nos enredamos como falasserparlêtre. E aqui evoquemos Platão: - Quanto tempo teria passado com seus discípulos enredados em noções que giravam em torno deste Um linguageiro, noções tais como semelhança, similitude, participação – a famosa metéxis –, harmonia, ou seja, noções que se voltavam para a Idéia do pensável? Que tempo gastaram os acadêmicos platônicos para tentar compreender as idéias dialéticas fundadoras: o ser, o movimento, o repouso, o mesmo, o outro, ou seja, esse lugar onde o Um é, o Um não é? Que tempo então deveríamos levar para entender o conceito sujeito, gênero supremo que subjaz habitando nesse universo linguageiro? Lembremos que Charles Sanders Peirce passou quarenta anos de sua vida exclusivamente dedicado ao estudo dos signos... E de que é mesmo feita, então, a matéria de nossa Psicanálise, essa ciência e arte da parturição, caros ouvintes amigos, senão de signos, palavras que dão suporte ao demasiadamente humano?

Em Il y a de l’Un, Há do Um, Há Um, temos aí simplesmente a grande e essencial diferença que há entre o homem e o animal, distinção tão bem ilustrada nesta famosa frase histórica de Lacan, inaugural de sua Lógica, revolucionariamente posta diante da Lógica tradicional aristotélica: Todo animal que tem pinças não se masturba. Aí está explícita a questão parmenidiana: o Um é, o Um não é. Aí se mostra, apresenta-se, um certo signo, um signo siderante – não -  que descortina um incerto saber...

            O texto O divã na rede, que faz parte do livro de Paulo, cujo título se refere a esse saber – Um incerto saber –, e que, hoje, aqui, no Gabinete de Leituras Psicanalíticas Paulo Medeiros, em sua homenagem, está sendo lançado, e ressaltemos todos, envaidecidos, em dupla homenagem - a Instituição, em apoteose, acolhe-o em seu próprio nome -, remete às questões que enredam esta estrutura da linguagem - Há Um -, que advém de um certo lugar. Assim escreve:

 

Por isso tem sido a Psicanálise denominada de ciência do desejo, sendo, no entanto, sua ciência aliar-se à arte de indicar ser o desejo do sujeito proveniente desse Outro enquanto lugar de inscrições enigmáticas a serem decifradas na fala, como um texto a ser lido num outro sistema linguageiro.

 

            Diante de todo esse fecundo legado, como, como ter pressa? Como?!

            E Paulo assim vagueava conosco, pelas veredas, pelas veredas freud-lacanianas, pelas veredas que tanto nos animavam, pelas muitas veredas que muito nos embaralhavam, pelas muitas veredas que a outras nos levavam, e nunca veredas que pudessem alargar a estrada por inteiro, conhecimento último, derradeiro...

 

Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu seu, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo.

                                                                                                      (Guimarães Rosa)

 

 


Texto apresentado em Maceió, no Gabinete de Leituras Psicanalíticas Paulo Medeiros, em 19 de setembro de 2008, em homenagem póstuma.


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