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A ESTÉTICA DO EROTISMO E A ÉTICA DO DESEJO

                Laura Ward da Rosa

"Entre todas as formas de expressão humana a
estética é aquela que,mais do que qualquer ou-
tra, é responsável pela nossa felicidade".
 
Domenico de Masi - O Ócio criativo


                                                                                                                                                            





                  O momento atual do mundo contemporâneo nos impele a repensar Eros e o processo criador no diferentes campos da cultura, como, talvez, uma tentativa de decifrar o enigma da não-criação, ou da repetição das cópias, das estereotipias do supérfluo e do descartável, que tanto sucesso fazem no marketing da sociedade de consumo. Como produzir uma obra de arte que permanece valendo milhões nos leilões disputados, como compor uma sinfonia que durante séculos continua maravilhando multidões que lotam as salas de concertos ao redor do mundo? Qual é o segredo desta força erótica que une gerações em torno desses gênios da arte e, igualmente, qual o mistério desse processo criador?
                     A palavra criação nos chega impregnada da tradição filosófica e religiosa judaico-cristã, já que a Criação é o ato divino de criação do mundo, conforme  registra o Velho Testamento. Para a nossa terrena condição humana, porém, a criação  consiste numa produção original de uma obra ou idéia, de algo inédito,  a partir de coisa pré existente, que o artista  "dá vida" através de uma realização concreta e que será capaz de despertar no outro uma experiência estética . Pensar  a criação é pensar um espaço-tempo gerador de intercâmbios e ligações, terreno de Eros( pulsão de vida) mas também em caos e angústia (pulsão de morte), terreno de Tânatos. O destruir -criar caracteriza a experiência humana do espaço lúdico, que se manifesta na brincadeira das crianças, bem como na vida adulta consiste na área de transformação dos objetos arcaicos em composições diversas na obra de arte. É interessante ouvirmos o que diz Van Gogh, em uma de suas cartas ao irmão Théo:

                 "Eu mesmo não sei como pinto. Venho sentar-me com uma tela branca frente ao local que me impressiona, vejo o que tenho diante dos olhos Coloco-a de lado  e depois de ter descansado eu a olho com certa angústia e continuo insatisfeito porque aquela maravilhosa natureza está muito na minha cabeça para que eu possa estar satisfeito .No entanto, vejo na minha obra um eco do que me impressionou, vejo que a natureza me contou algo, falou comigo e que anotei isso em estenografia. No meu estenograma pode haver algumas palavras indecifráveis, erros ou lacunas, no entanto resta alguma coisa do que o bosque, a praia ou a figura disseram (Van Gogh,1914,p96-7)."
           
                Através desse relato de Van Gogh e da maneira como observa a tela em branco para depois reunir ,ouvir ou "ver um eco", como ele diz, os elementos que o impressionaram, vindos da natureza, que falaram como "palavras indecifráveis, erros ou lacunas" fez-me pensar no trabalho do psicanalista que também colhe as palavras do analisando, no discurso em livre associação, detecta seus atos falhos, registra as lacunas da fala  e vai, passo a passo, reunindo os elementos significantes com os quais constrói o entendimento do que está sendo dito, vindo do inconsciente, de uma outra cena, como falava Freud, para depois comunicar a interpretação, Criamos na tela do espaço analítico uma nova paisagem para a vida do analisando, possibilitando inscrições e outras trilhas subjetivas. Também a sessão de análise é um campo de destruição dos fantasmas que atormentam o sujeito que sofre, incapaz que estava, antes, de reconhecê-los sozinho. Para poder analisar é fundamental  o desejo do analista e a demanda do analisando, como também é indispensável que o analista ocupe o lugar que lhe é designado por este, o que vem constituir a transferência, que legitima a relação de intimidade, confiança e crença no Outro e no saber desse Outro, como nos ensinou Lacan, condição ética da psicanálise, ao conduzir o analisando ao encontro de seu desejo inconsciente, seguindo a descoberta de Freud.
                  No ato de criação o artista, inicialmente, se conecta com um outro, que aguça suas percepções, memórias, percepções, desejos. É um momento de passividade frente à inspiração nascente. Inquietação, dúvida, angústia, tentativas, erros e acertos nos traços iniciais, vacilações em jogo ante o desejo imperioso. Jean Guillaumin pensa num complexo jogo de atividade-passividade que levaria o artista a endereçar suas moções pulsionais ao outro, como uma reação à autodestruição da pulsão de morte. O ato criativo consistiria num endereçamento ao outro, no caso o público, como uma maneira adequada de dar conta do movimento pulsional, mais elementar do que o recalcamento, no caso "transformação no contrário" - atividade- passividade, um dos tipos de vicissitudes da pulsão. Neste caso ele considera um outro caminho, diferente de descreveu  Freud .
                  Para Freud a criação artística configuraria o quarto destino da pulsão, no qual  "tanto o objeto como o objetivo são modificados". É no texto "Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância", de 1910, que Freud descreve duas vertentes para a sublimação: a artística e a intelectual-científica. Em ambas a energia sexual sofreria recalcamento e a corrente dessexualizada seria canalizada para a criatividade. Porém, enquanto o cientista busca dominar o objeto, o artista parece, de início, ser  por ele dominado. A sexualidade, para Freud, inscreve-se na fantasia insconsciente ou fantasma, segundo Lacan, e esse é o campo por excelência do erotismo. Através da construção fantasmática do corpo erógeno o ser humano se diferencia dos outros animais e das técnicas comportamentais defendidas pela sexologia, centrada no corpo biológico. A possibilidade de constituição do corpo erógeno, através de uma relação como o Outro, é o avanço em direção à vida erótica criativa onde o velamento excita e incita ao deciframento do enigma que, por sua vez, nunca se alcança e sempre é mantido pela força da pulsão, num deslizamento  metonímico do objeto do desejo. Este é  o ponto central da genial descoberta de Freud, já que até o século XIX a sexualidade era identificada com o registro da reprodução biológica.
                    Joel Birman(1999) concebe a idéia de que, a partir do momento em que Freud descreve um outro objeto para a pulsão, que canalizaria a energia sexual perverso polimorfa da infância para a criação, abriria a possibilidade para o  erotismo e para a sublimação, através da feminilidade e da diferença, antes impossibilitada pela prevalência do falo. Afirma ele:

                       "A sublimação e o  erotismo são derivações de Eros, afirmações da vida e maneiras de tornar a existência possível. Sublimar não é a produção do belo mas a realização do sublime. Sublimar implica uma ação sublime, logo, uma sublime ação. Entretanto. a ação sublime implica a ruptura com o belo, com a reprodução, isto é, com a transgressão de seus limites. O belo ,por excelência, em psicanálise pelo menos, é figurado pelo falo. A sublime ação implica a ruptura com o imperialismo do falo, entreabrindo a subjetividade para a possibilidade do erotismo e da criação. É justamente isso que é possibilitado pela feminilidade."

                     A obra de Danúbio Gonçalves nos impressiona pelo erotismo das formas e das cores, principalmente. Na série Erótica-Erotíssima, Danúbio, emociona justamente pelo resgate do feminino e do erótico, tão esquecido em meio aos temas abstratos ,por vezes agressivos e chocantes ,que dominam as galerias pós modernas. A partir do momento em que a Estética, através de  Baumgarten, liberta-se da idéia de copiar o belo, repetindo  a clássica arte grega entendida como mimesis da realidade, cria-se a possibilidade de deixar fluir a inspiração ,podendo espelhar com liberdade a alma do artista, que, em Danúbio, denuncia a simplicidade, a emoção e a ação criadora verdadeira. Nascido nas planícies de Bagé e recebendo o nome de rio, ouviu a natureza lhe segredar tertúlias e o eco do minuano a soprar no inverno, enrijecendo-lhe os dedos, que por teimosia ou intuição, transformaram todo o frio em calor e em criação erótica que, para alegria nossa, inspirou esta  reunião nesta noite.

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