O momento atual do mundo contemporâneo nos impele a repensar Eros e
o processo criador no diferentes campos da cultura, como, talvez, uma tentativa
de decifrar o enigma da não-criação, ou da repetição
das cópias, das estereotipias do supérfluo e do descartável,
que tanto sucesso fazem no marketing da sociedade de consumo. Como produzir
uma obra de arte que permanece valendo milhões nos leilões
disputados, como compor uma sinfonia que durante séculos continua
maravilhando multidões que lotam as salas de concertos ao redor do
mundo? Qual é o segredo desta força erótica que une
gerações em torno desses gênios da arte e, igualmente,
qual o mistério desse processo criador?
A palavra criação nos chega impregnada da tradição
filosófica e religiosa judaico-cristã, já que a Criação
é o ato divino de criação do mundo, conforme registra
o Velho Testamento. Para a nossa terrena condição humana, porém,
a criação consiste numa produção original
de uma obra ou idéia, de algo inédito, a partir de coisa
pré existente, que o artista "dá vida" através
de uma realização concreta e que será capaz de despertar
no outro uma experiência estética . Pensar a criação
é pensar um espaço-tempo gerador de intercâmbios e ligações,
terreno de Eros( pulsão de vida) mas também em caos e angústia
(pulsão de morte), terreno de Tânatos. O destruir -criar caracteriza
a experiência humana do espaço lúdico, que se manifesta
na brincadeira das crianças, bem como na vida adulta consiste na área
de transformação dos objetos arcaicos em composições
diversas na obra de arte. É interessante ouvirmos o que diz Van Gogh,
em uma de suas cartas ao irmão Théo:
"Eu mesmo não sei como pinto. Venho sentar-me com uma tela branca
frente ao local que me impressiona, vejo o que tenho diante dos olhos Coloco-a
de lado e depois de ter descansado eu a olho com certa angústia
e continuo insatisfeito porque aquela maravilhosa natureza está muito
na minha cabeça para que eu possa estar satisfeito .No entanto, vejo
na minha obra um eco do que me impressionou, vejo que a natureza me contou
algo, falou comigo e que anotei isso em estenografia. No meu estenograma
pode haver algumas palavras indecifráveis, erros ou lacunas, no entanto
resta alguma coisa do que o bosque, a praia ou a figura disseram (Van Gogh,1914,p96-7)."
Através desse relato de Van Gogh e da maneira como observa a tela
em branco para depois reunir ,ouvir ou "ver um eco", como ele diz, os elementos
que o impressionaram, vindos da natureza, que falaram como "palavras indecifráveis,
erros ou lacunas" fez-me pensar no trabalho do psicanalista que também
colhe as palavras do analisando, no discurso em livre associação,
detecta seus atos falhos, registra as lacunas da fala e vai, passo
a passo, reunindo os elementos significantes com os quais constrói
o entendimento do que está sendo dito, vindo do inconsciente, de uma
outra cena, como falava Freud, para depois comunicar a interpretação,
Criamos na tela do espaço analítico uma nova paisagem para
a vida do analisando, possibilitando inscrições e outras trilhas
subjetivas. Também a sessão de análise é um campo
de destruição dos fantasmas que atormentam o sujeito que sofre,
incapaz que estava, antes, de reconhecê-los sozinho. Para poder analisar
é fundamental o desejo do analista e a demanda do analisando,
como também é indispensável que o analista ocupe o lugar
que lhe é designado por este, o que vem constituir a transferência,
que legitima a relação de intimidade, confiança e crença
no Outro e no saber desse Outro, como nos ensinou Lacan, condição
ética da psicanálise, ao conduzir o analisando ao encontro
de seu desejo inconsciente, seguindo a descoberta de Freud.
No ato de criação o artista, inicialmente, se conecta com um
outro, que aguça suas percepções, memórias, percepções,
desejos. É um momento de passividade frente à inspiração
nascente. Inquietação, dúvida, angústia, tentativas,
erros e acertos nos traços iniciais, vacilações em jogo
ante o desejo imperioso. Jean Guillaumin pensa num complexo jogo de atividade-passividade
que levaria o artista a endereçar suas moções pulsionais
ao outro, como uma reação à autodestruição
da pulsão de morte. O ato criativo consistiria num endereçamento
ao outro, no caso o público, como uma maneira adequada de dar conta
do movimento pulsional, mais elementar do que o recalcamento, no caso "transformação
no contrário" - atividade- passividade, um dos tipos de vicissitudes
da pulsão. Neste caso ele considera um outro caminho, diferente de
descreveu Freud .
Para Freud a criação artística configuraria o quarto
destino da pulsão, no qual "tanto o objeto como o objetivo são
modificados". É no texto "Leonardo da Vinci e uma lembrança
de sua infância", de 1910, que Freud descreve duas vertentes para a
sublimação: a artística e a intelectual-científica.
Em ambas a energia sexual sofreria recalcamento e a corrente dessexualizada
seria canalizada para a criatividade. Porém, enquanto o cientista
busca dominar o objeto, o artista parece, de início, ser por
ele dominado. A sexualidade, para Freud, inscreve-se na fantasia insconsciente
ou fantasma, segundo Lacan, e esse é o campo por excelência
do erotismo. Através da construção fantasmática
do corpo erógeno o ser humano se diferencia dos outros animais e das
técnicas comportamentais defendidas pela sexologia, centrada no corpo
biológico. A possibilidade de constituição do corpo
erógeno, através de uma relação como o Outro,
é o avanço em direção à vida erótica
criativa onde o velamento excita e incita ao deciframento do enigma que,
por sua vez, nunca se alcança e sempre é mantido pela força
da pulsão, num deslizamento metonímico do objeto do desejo.
Este é o ponto central da genial descoberta de Freud, já
que até o século XIX a sexualidade era identificada com o registro
da reprodução biológica.
Joel Birman(1999) concebe a idéia de que, a partir do momento em que
Freud descreve um outro objeto para a pulsão, que canalizaria a energia
sexual perverso polimorfa da infância para a criação,
abriria a possibilidade para o erotismo e para a sublimação,
através da feminilidade e da diferença, antes impossibilitada
pela prevalência do falo. Afirma ele:
"A sublimação e o erotismo são derivações
de Eros, afirmações da vida e maneiras de tornar a existência
possível. Sublimar não é a produção do
belo mas a realização do sublime. Sublimar implica uma ação
sublime, logo, uma sublime ação. Entretanto. a ação
sublime implica a ruptura com o belo, com a reprodução, isto
é, com a transgressão de seus limites. O belo ,por excelência,
em psicanálise pelo menos, é figurado pelo falo. A sublime
ação implica a ruptura com o imperialismo do falo, entreabrindo
a subjetividade para a possibilidade do erotismo e da criação.
É justamente isso que é possibilitado pela feminilidade."
A obra de Danúbio Gonçalves nos impressiona pelo erotismo das
formas e das cores, principalmente. Na série Erótica-Erotíssima,
Danúbio, emociona justamente pelo resgate do feminino e do erótico,
tão esquecido em meio aos temas abstratos ,por vezes agressivos e
chocantes ,que dominam as galerias pós modernas. A partir do momento
em que a Estética, através de Baumgarten, liberta-se
da idéia de copiar o belo, repetindo a clássica arte
grega entendida como mimesis da realidade, cria-se a possibilidade de deixar
fluir a inspiração ,podendo espelhar com liberdade a alma do
artista, que, em Danúbio, denuncia a simplicidade, a emoção
e a ação criadora verdadeira. Nascido nas planícies
de Bagé e recebendo o nome de rio, ouviu a natureza lhe segredar tertúlias
e o eco do minuano a soprar no inverno, enrijecendo-lhe os dedos, que por
teimosia ou intuição, transformaram todo o frio em calor e
em criação erótica que, para alegria nossa, inspirou
esta reunião nesta noite.